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O PÁSSARO DAS FLORES LILASES

Sexta-feira, 27.09.13

Era uma criança loira, de olhos azuis, cabelos ao vento, sorriso radiante e olhar sublime. Tinha um porte leve, digno e suave. Caminhava, como se voasse, sobre o aveludado das nuvens, sonhava com o brilho cativante das estrelas e sorria por entre o vidrado das madrugadas primaveris. A vida, o tempo e, talvez, até o destino, porém, haviam-na cravejado de terríveis e lúgubres dissabores. Vivia acorrentada entre os solavancos da inconstância, trilhava as mágoas das privações e caminhava por entre os estilhaços dos estigmas. Abria as janelas ao florir das madrugadas nuas, acomodava-se no sibilar incauto do vento e envolvia-se, ao relento, na obscuridade das tardes desertas. Colhia espigas em trigais putrificados, enfrentava o rigor de invernias tormentosas e atravessava, solitária, caminhos e veredas exsicados. Iluminava as noites com candeias trémulas e vacilantes, deitava-se, ao luar, sobre as lajes frias dos eirados e dormia embalada pelo cantar sussurrante de fontes estéreis. E quando o Sol se inquinava de luminosidade, trepava às árvores despejadas de frutos, subia as fragas irrigadas de regatos, saltava os barrancos apinhados de silvados mas sorria para as flores, mesmo que estivessem murchas. Alimentava-se de pão rijo, ressequido e o leite sabia-lhe a mel. Mas, apesar de todas as limitações e dissabores, surgia, em cada dia, em cada hora e em cada momento, radiante como a aurora, doce como a alegria, terna como a saudade, meiga como o perfume das flores e jovial como o canto das cotovias.

 De manhã, ao acordar, assomava às janelas e os raios volúveis da alvorada pareciam esboçar-lhe, no horizonte, um caminho sem luz e sem rumo. Mas levantava-se, vestia-se, penteava os seus cabelos de oiro e caminhava na procura do destino, transportando os encantos da infância, sulcando, à porfia, as intempéries da escuridão, demandando o rastro das aves sem ninhos. E quando, à tarde, o Sol desfazia a estranha fantasmagoria das nuvens, ela não mais regressava a casa. Corria sozinha, alegre e desinibida, carregando, por entre o encanto desregrado da beleza, a fascinação idílica do seu olhar azul, o brilho doirado dos seus cabelos loiros e a limpidez suave da sua virtude angélica. Mas encaminhava-se, fatal e impreterivelmente, para uma lúgubre e sinistra Floresta Oculta. Abria, com premeditado estrondo, o enorme e pesado portão daquele antro hierático, onde se aninhava, camuflada, a audácia heróica e valorosa da virtude. Depois, entrava, caminhava, seguia e penetrava, segura, destemida, serena e radiosa, deslizando sobre a candura infantil da sua beleza, rasteando a elegância do seu corpo humilde e pequenino mas nobre, esbelto, gracioso e atraente. Tudo lhe dava o ar soberbo, nobre e altivo duma deusa romana, em miniatura.

 

Um dia, a criança de cabelos loiros e olhos azuis, ao entrar na Floresta Oculta, olhou para o alto e viu, por entre o eirado aterrador dos abutres, empoleirado numa árvore de flores lilases, um pássaro, pequenino, inocente e encantador. Parou, estagnou e cantou-lhe uma canção. O pássaro das flores lilases ouviu-a e adornou-a da mais serena e emotiva fascinação. E, no dia seguinte, os raios da alvorada, doces e perfumados, pareciam vislumbrar, no horizonte, para aquela criança pura, inocente e bela, um caminho repleto de luz e com a esperança a assinalar-lhe o destino.

 Mas a esperança estava morta e o destino povoado de fantasmas porque os raios da alvorada, desenhados no horizonte, eram apenas sombras frias, incoerentes e enigmáticas de uma estagnada e inverosímil perplexidade.

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publicado por picodavigia2 às 09:18





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