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O CASTIGO DOS SOBERBOS

Sexta-feira, 23.11.18

“Os mais soberbos na prosperidade são os mais débeis na adversidade.”

 

Fénelon (Teólogo, poeta e escritor francês)

 

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publicado por picodavigia2 às 00:05

O CAIS DAS LAJES

Quinta-feira, 22.11.18

A ilha das Flores era a única ilha dos Açores em que o velhinho Carvalho Araújo, que as visitava mensalmente, atracava em duas localidades: em Santa Cruz , durante a manhã e nas Lajes, ao longo da tarde e até à noite.

Os habitantes da Fajã Grande que nele viajavam, como grande parte dos de toda ilha, normalmente desembarcavam em Santa Cruz. É verdade que a deslocação para a Fajã era um pouco mais longa, mas, em compensação era possível fazer o trajecto até aos Terreiros de carro. Além disso desembarcando da parte da manhã, os passageiros chegavam sempre mais cedo a casa. Pelo contrário, o embarque era quase sempre feito pelas Lajes, permitindo assim sair-se de casa no próprio dia, percorrendo o longo e sinuoso caminho, entre a Fajã e as Lajes, durante a madrugada e manhã.

Por isso no cais da Lajes, em dia de chegada do Carvalho, reinava uma confusão tremenda e uma barafunda descomunal. Homens, mulheres, crianças, malas, baús, grades, bidões, caixotes, barris, sacos de serapilheira, bois, vacas e até alguns cavalos amontoavam-se em desusada caldeação. Aguardava-se a chegada de mais uma das duas pequenas barcaças que iam e vinham, alternadamente, entre o cais e o enorme paquete ancorado a umas duas ou três milhas de terra. Eram lanchas pequenas, vagarosas e frágeis que iam e vinham à vez, chegando carregadíssimas, a abarrotar de pessoas e bagagens. Encostavam-se às escadas de acesso ao porto e dois marinheiros, de calças arregaçadas pelo joelhos e descalços, uma à proa e outra à ré, atiravam as cordas que traziam amarradas nas bordas da embarcação para cima do cais a fim de que as alças das pontas fossem presas nos moitões de ferro cravados no cais, permitindo aos passageiros saltar para terra com maior segurança. Só depois lhes era retirada a bagagem, que, a conta gotas, ia sendo atirada pelos marinheiros para cima do cais onde estavam os bagageiros que a apanhavam com mestria e a seguravam com perícia de forma a que nenhuma mala ou caixote caísse no chão ou escapulisse para o fundo mar. Assim que as lanchas ficavam livres das pessoas e das malas que traziam de bordo, seguia-se uma lufa-lufa medonha, por parte dos que estavam em terra e pretendiam embarcar. Acompanhados da respectiva bagagem, todos queriam ser os primeiros a entrar e a ocupar os melhores assentos nos pequenos batéis, enquanto as malas iam sendo arrumadas à proa e à ré das embarcações.

Mais fora, mas antes do molhe, dois botes maiores do que as lanchas e com motores mais potentes, carregados com sacos de farinha, de açúcar, de adubo, de cimento, caixotes de sabão e de bebidas, bidões de cal ou de petróleo, grades com garrafas de cerveja e de pirolitos e muita outra carga, também se iam, à vez, encostando ao cais. Em terra, um pequeno e desengonçado guindaste levantava, muito lentamente, toda aquela carga e colocava-a, desordenadamente, em cima do cais. Depois alguns homens entretinham-se a arrumá-la e ordená-la de acordo com os comerciantes da vila a quem se destinava e dos quais se destacavam: o Germano e a Firma.

 

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publicado por picodavigia2 às 00:05

ONÉSIMO ALMEIDA E O SÉCULO DOS PRODÍGIOS

Quarta-feira, 21.11.18

Numa altura em que a palavra “Descobrimentos’” dá origem a algumas discussões acesas, e que, para alguns, será politicamente incorreto usar, Onésimo Teotónio Almeida, em conversa com o PÚBLICO, disse que “descobrir não significa criar, inventar. Quando a Polícia descobre o criminoso, não o inventa. Os portugueses descobriram ilhas que não tinham ninguém nem estavam sequer mapeadas. Descobriram o caminho marítimo para a Índia, ninguém diz que os portugueses descobriram a Índia. Do resto são ‘Descobrimentos’ do ponto de vista europeu. Haja um pouco de senso. O papel do historiador não é condenar a História, é narrar os factos, e explicar. Na narrativa, lidamos com factos e com argumentos, não cabe absolver nem condenar a História.” Alguns dos ensaios inclusos em O Século dos Prodígios serviram como tentativa de corrigir a historiografia anglo-americana que teima em ignorar o que se passou em Portugal nesse período, sobretudo entre o final do primeiro quartel do século XV e os finais do segundo quartel do século XVI, com a chegada ao Japão. “Do ponto de vista propriamente de interesse para a ciência, teríamos de terminar [este período referido] um quartel mais cedo, com a viagem de Fernão de Magalhães”, escreve Onésimo na introdução ao livro. De facto, há poucas obras disponíveis de historiografia traduzidas para inglês. “Algumas foram traduzidas e publicadas, mas em edições muito antigas, e não foram reeditadas. Por tradição, os ingleses e também os americanos não conhecem outras línguas”, diz Onésimo Teotónio Almeida. “Nós não temos feito o bastante para tornar esse material, que existe, disponível em inglês.” E refere alguém que escreveu, num outro contexto, que “os portugueses não souberam contar a sua história”. Ainda sobre este assunto da falta de informação sobre este período da História, e como podem ser tecidas narrativas diferentes dos factos, conta como entre os americanos, também entre os franceses, “e no outro dia também na Suíça, corre a ideia ‘estúpida’”, posta a circular por um escritor americano de livros de ficção, de que Colombo foi ter com D. João II, oferecendo os seus préstimos, e lhe diz que a Terra é redonda, ao que o rei português responde ser plana. “Não foi nada disso”, diz Onésimo. “Os portugueses já sabiam que a Terra era redonda — qualquer indivíduo culto português, na altura, sabia que era redonda. O debate que acontecia era sobre o tamanho da Terra e sobre como era o hemisfério sul.” Por detrás destes ensaios, desta empolgante história de descobertas, está “o fascínio com o novo”, neste século de prodígios. Mas que prodígios foram estes? Para o professor da Brown, o prodígio, ou o conjunto de prodígios, foi tudo o que levou à descoberta do caminho marítimo para a Índia. Foi ter-se encontrado resposta à pergunta “como é que se vai por esse mar abaixo?”, foi fazer a cartografia do Atlântico do Equador para baixo, o mapeamento do céu, “porque foi preciso encontrar novas estrelas para se orientarem, a Estrela Polar desaparece abaixo da linha do Equador. Foi tudo feito com uma tenacidade absolutamente anormal para a época. O fascínio do novo aconteceu aqui.” Era pouquíssima a informação disponível na Europa sobre aquilo que os portugueses precisavam de saber, havia a dos gregos antigos, obviamente, imprecisa e enganosa. As informações sobre o que se encontraria da linha do Equador para baixo eram nulas e pejadas de mitos. Como seria da “parte de baixo” da Terra? “Talvez as gentes andem de pernas para o ar”, constava. E o mar Atlântico ligaria ao Índico? Não seria este um lago enorme sustido de um dos lados pela tal terra incognita do mapa ptolemaico? A tudo isto os portugueses tiveram que dar resposta para conseguirem descobrir o caminho marítimo para a Índia. A partir de determinada altura, “há um desinvestimento em procurar para sul a passagem para o Índico, e começa a aumentar o investimento em procurar, a partir dos Açores, um caminho por noroeste, porque vai ser mais barato, isto sempre dentro do paradigma de que a Terra é redonda”, nota Onésimo Teotónio Almeida. O que se torna inovador — um dos prodígios que titulam o livro — na chegada à Índia foi a maneira como tal aconteceu, dada a reduzidíssima informação existente. “Foi inovador do ponto de vista científico e tecnológico”, diz Onésimo. “Pela primeira vez, ciência e tecnologia andaram juntas. Mesmo mais tarde, no século XVII, em Inglaterra, quem fazia ciência não estava preocupado com a aplicação tecnológica do conhecimento que adquiria. A ciência em Portugal era então orientada para a resolução de problemas práticos. Como é que se vai para ali, e com que barcos, e quando se chegar ao Equador como é que vai ser? Eles sabiam que a Terra era redonda, mas pensavam ‘depois de se passar o Equador vamos cair onde?’, pois não havia a menor ideia da gravidade. Eles vão aos poucos, um barco vai até um cabo na costa de África, e volta para trás e informa os restantes.” A Lisboa daquele tempo fervilhava de gente vinda de todo o lado, isto é sabido dos livros de História. Há então uma nova mentalidade, os reis e alguns nobres interessam-se pelo saber, são curiosos. Procuram entre os estrangeiros aqueles que sabem, os assuntos são conversados e discutidos. As notícias do que acontecia em Lisboa passam as fronteiras do reino. “Lisboa era então uma espécie de pólo magnético que começava a atrair a gente com saber que vivia por essa Europa. A partir de certa altura, quem na Europa queria saber coisas vinha para Lisboa. O Garcia de Orta diz que em Lisboa se sabia mais num dia do que em Roma em cem anos. A Lisboa tudo chegava” diz Onésimo. “Os reis portugueses mandavam gente para a Europa para descobrirem quem sabia mais e depois traziam-nos. Isto é uma atitude completamente moderna. É quase como o exemplo de Palo Alto, na Califórnia, nos dias de hoje — atraem os jovens que sabem, pagam bem, e as pessoas vão para lá.” A nova mentalidade empírica entre a gente culta de Lisboa tem também implicações “tecnológicas”. A experiência, ou melhor, os seus resultados começam a ser tratados de maneira científica, e isso é atestado pelas espetaculares narrativas de Duarte Pacheco Pereira e de D. João de Castro, nos seus diálogos com os marinheiros. Tudo isto foi possível porque havia um grupo de gente muito culta que gostava de pensar, e outros que sabiam construir barcos e navegar, e havia dinheiro. “Não havia uma escola de Sagres, mas havia um escol de gente com muita curiosidade”, refere Onésimo Teotónio Almeida. “Começa a surgir um novo critério do que é que constitui a verdade. Há gente muito inteligente, muito culta, como o D. João de Castro, que põe os marinheiros a fazerem coisas [experiências] e a mandá-los tomarem nota de tudo — ‘vai experimentar, não dá certo, agora corrige’. Há problemas que surgem e que ele próprio resolve, mas há outros que não consegue e então pede ajuda ao Pedro Nunes, um matemático, um pensador, um teórico. O Pedro Nunes nunca viajou — era reconhecido como o maior matemático do século XVI.

NB - Texto retirado do Jornal Público on line

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publicado por picodavigia2 às 08:36

O MURMÚRIO DOS BÚZIOS

Terça-feira, 20.11.18

Ele vivia junto ao mar, numa casa simples, pequenina ornada com flores de algas e perfumada com os afagos oscilantes das marés. Mas se quisermos ser mais precisos, afinal, não era ele que morava junto ao mar. Era o mar que morava junto dele, que cercava o seu quotidiano duma maresia persistente, decalcada em ondas baloiçantes, a perderem-se num vaivém irrequieto, umas vezes embravecido outras ternurento, mas sempre a trazer-lhe uma salubridade adocicada, uma brisa inebriante, um resfolgo de liberdade.

Desde pequenino que a avó lhe segredava: o mar, para além de maior e de mais inquietante, também é mais rico do que a terra. Mas não eram os tesouros dos navios encalhados, nem o ouro das caravelas perdidas, nem os cofres dos piratas naufragados, nem sequer o pescado fluente, quotidiano, despejado sobre o cais, a ressuscitar o reboliço da lota. Por nada disso ansiava. Do mar, ele queria apenas os búzios.

Lembrava-se muito bem de ter lido no livro da quarta classe um poema que dizia: Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal. Era esse mar salgado, ali presente, paternal e amigo, que lhe atirava respingos de salmoura, o cobria de espuma e o transformava num escudo translúcido que o protegia de nevoeiros e caligens. Belo poema, uma espécie de cântico dos cânticos, um elogia da maresia, talvez o hino daquele torrão azulado, enorme, que, por vezes e em sonhos, lhe parecia tornar o nundo infinito. Mas do mar não queria nem o infinito, nem o azul, nem sequer as lágrimas dos seus heróis, transformadas em cristais de sal. Do mar, ele queria apenas os búzios.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu. Terminava assim aquele poema. Não sabia o nome do poeta que o escrevera, mas seria, decerto, um poeta grande, autor de muitos outros poemas, porque este era, deveras, belo, mesmo sublime. E um poeta nunca faz só um poema ao mar. E sobre o mar não faz versos apenas um poeta. Talvez até muitos outros poetas tivessem trovado sobre o mar. Quando morrer quero levar comigo um pedacinho do mar, para recuperar o tempo que vivi sem ele. Mas também do mar não queria os poemas, embora se deleitasse a apreciar alguns deles. Do mar, ele queria apenas os búzios.

Até nas madrugadas sombrias e enevoadas escapulia para junto do mar. Era um tormento, uma angústia, uma consumição, ver aquele enorme lençol de água, sem Sol, sem uma réstia de luminosidade que, ao menos, tivesse ficado esquecida do dia anterior, a aureolar-se para aos poucos se ir transformando num clarão, que trouxesse um respirar mais folgado às rochas, aos baixios, aos escolhos e até ao sargaço que, arrancado das profundezas pela força das correntes, flutuava suavemente sobre as águas. Mas não queria as rochas mesmo que o Sol as clarificasse em cada manhã, nem queria baixios, nem escolhos, nem sequer o sargaço, mesmo já postado em terra e a secar, no estio. Do mar, ele queria apenas os búzios.

Depois eram as ondas, umas vezes pequeninas, lisas, sonolentas, outras enormes, gigantescas, altivas, bravias, mas sempre a irem e a virem, num vaivém ritmado, umas vezes mais suave e embelecido outras, agreste, toldado e raivoso, a saltarem por entre os esconderijos das enseadas, repletos de sombras e de mistérios ou a enrolarem-se nos pedestais das baixas e dos ilhéus, cravejados de lapas e assolados por caranguejos. Mas do mar também não queria as ondas, por mais mansas e quietas que fossem, nem a arrogância ingénua dos ilhéus ou negrume basáltico dos baixios. Do mar ele queria, apenas, os búzios.

Estranha obsessão, esta, a dele, de nada mais querer do mar, para além dos búzios. E sabem porque do mar ele, apenas, queria os búzios? Simplesmente para os colocar junto ao ouvido e ali ficar, uma eternidade que fosse, a ouvir o suave sussurrar do oceano. É que dentro dos meandros cavernosos e enroscados das suas conhas, o mar nunca é revolto, não há tempestades nem bravezas e as ondas, ali, ouvem-se sempre, suaves e doces, como se fosse em eco, por que balançam sempre, num vaivém ternurento e meigo, semelhante, talvez mesmo igual, àquele com que as mães embalam os seus filhos.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

O IMPÉRIO DOS TRICICLOS

Domingo, 18.11.18

A abertura da estrada entre o Porto da Fajã e a Ribeira Grande, no lugar do Pessegueiro, veio alterar radicalmente os meios de transporte de produtos agrícolas fajãgrandenses. Até então e quando os produtos das terras não eram acarretados às costas, o corsão de madeira, puxado por bovinos e a arrastar sobre as pedras da calçada, era o tipo de transporte mais utilizado na Fajã Grande. Os carros de bois eram raros e os existentes pouco utilizados. Daí o frequente e contínuo recurso ao típico e tradicional corsão de bois. Mas na nova estrada, com piso de bagacina e, mais tarde, alcatroado, foi obviamente proibido o uso daquele veículo rastejante. É que, deslocando-se por arrasto, o corsão destruiria por completo o liso e fofo tapete da nova e moderna via de comunicação. Daí que toda a zona limítrofe da nova estrada, desde o Vale da Vaca ao Vale Fundo, ao Delgado, Cabaceira, Moledo Grosso, Lombega, Cancelinha, e até à Cuada ficasse impedida dos seus produtos serem acarretados em corsões.

Bem verdade é que a necessidade aguça o engenho! Foi precisamente nesta altura e por esta razão que surgiram, na Fajã, os célebres triciclos que dominaram e se impuseram no transporte dos produtos agrícolas da zona e lugares acima referidos. Muito provavelmente inspirados nos pequenos brinquedos das crianças com o mesmo nome, começaram a construir-se triciclos gigantes, do formato quase semelhante ao dos carros de bois, embora de tamanho bastante menor. Só que as rodas em vez do arco de ferro que as envolvia eram mais pequenas, mais leves e eram forradas e protegidas por uma tira de borracha ao seu redor, a fim de as proteger do desgaste, de tornar o seu deslizar mais suave e o seu peso menor. O cabeçalho era mais grosso do que o dos carros de bois e sobre ele existia um assento de forma triangular, para o condutor. Na extremidade do mesmo em vez do buraco da chavelha e da canga havia um orifício onde se enfiava e no qual rodava o guiador, e que se articulava a roda da frente. Os triciclos eram munidos de travões nas rodas de trás.

O primeiro triciclo que houve na Fajã foi construído pelo José Furtado ao qual se seguiram muitos e muitos outros. Por vezes era impressionante o número de triciclos que deslizava pela Assomada abaixo, carregados com lenha, fetos e cana roca, incensos para o gado e até milho e batatas. No entanto os triciclos tinham um senão: é que só deslizavam “de volta a baixo”, enquanto na subida tinham que ser empurrados pelo próprio dono, o que, por vezes, tornava o seu uso mais difícil, incómodo e pouco abonatório. Havia, no entanto, quem na subida os atrelasse a um burro, resolvendo assim o problema. Direito a baixo, porém, eram um regalo. Desciam velozes, bem carregadinhos lá vinham os próprios donos todos prazenteiros a conduzí-los. Alguns até timham uma corneta a servir de buzina, não fosse algum transeunte ser atropelado.

Paralelamente aos triciclos começaram também a surgir os "carros de mão",  estes sim, uma espécie de miniatura dos carros de bois, mas empurrados e puxados pelo próprio dono. Nestas espécies de miniaturas dos carros de bois o cabeçalho não tinha, obviamente, o buraco da chavelha mas sim, de um lado e outro, um pequeno pau encravado a que se agarravam as mãos de quem os puxava ou conduzia.

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publicado por picodavigia2 às 00:00

TIA LUCINDA

Sábado, 17.11.18
Logo no princípio da Assomada, a seguir à Praça, em frente à minha casa, do outro lado da rua, morava uma velhinha, a Tia Lucinda. De tantos anos que já tinha, da muita doença que a apoquentava e de tanto que se havia cansado da vida, a Tia Lucinda já não ia trabalhar para os campos, nem levar a moenda ao moinho, nem lavar roupa à ribeira, nem sequer apanhar garranchos de lenha, na ladeira que ficava atrás da sua casa, a fim de com eles acender o lume para aquecer o café ou ferver o leite, nem ia às compras às lojas, nem sequer à missa aos domingos, apesar de nem as lojas nem a igreja ficarem muito longe da sua casa. Numa palavra, a minha vizinha Lucinda, ou a viúva de Ti Manuel Rosa, como também lhe chamavam, já não saía de casa a não ser para assomar ao portão do seu pátio, a fim de dar dois dedos de conversa a quem passava pelo caminho ou para chamar minha mãe e pedir-lhe que me deixasse ir comprar-lhe um litro de petróleo, um quarto de barra de sabão, meio quilo de café ou qualquer outra coisa que lhe fizesse falta. Claro que recebia de imediato o beneplácito da minha progenitora e lá ia eu todo vaidoso e contente, a correr, agarrando com quantas forças tinha, para as não perder, as moedas de um escudo ou de cinquenta centavos que a minha vizinha me havia colocado na mão, recomendando-me que tivesse cuidado para não me escapulirem. O que seria de mim se tal acontecesse!... Ia num pé e vinha no outro. É que para além daquele pequeno mandalete não me desagradar absolutamente nada, sabia que no fim seria sempre recompensado pela generosidade da minha vizinha. Mesmo que não trouxesse troco resultante do pagamento da compra de que fora incumbido, ao voltar e ao entrar na casa da Tia Lucinda para lhe entregar as compras, ela suspendia o que estava a fazer e ia buscar uma moedinha de dez centavos que parecia ter sempre guardada de propósito para me dar como recompensa. Se por acaso alguma vez, o que raramente acontecia, não encontrasse a moedinha, não me deixava sair de mãos a abanar. Dava-me uma fatia de pão de trigo barradinha com doce de pêssego, o que também não me desagradava.

A Tia Lucinda, no entanto, trabalhava muito dentro de casa. É que vivia com dois filhos, ambos solteiros, que se dedicavam ao cultivo dos campos e à criação vacas e era ela que cozinhava, lavava a roupa, limpava a casa, cozia o bolo e o pão, tratava das galinhas e do porco e fazia muitos outros trabalhos caseiros, apesar de bastante doente, muito velhinha e excessivamente enfraquecida e de “já não poder fazer nada”, como ela própria reconhecia.

- Quantos anos tem, Tia Lucinda?

- Ui! Muntos, muntos! Já lhes perdi a conta!...

Tia Lucinda, talvez porque não soubesse, nunca me dizia quantos anos tinha, nem há quantos se casara.

Mas o mais interessante é que apesar de nem o marido, (Manuel Furtado Luís Júnior) nem sequer o pai do marido (Manuel Furtado Luís) terem nos seus nomes o apelido de “Rosa”, mas apenas e tão somente porque o avô do marido, nascido há mais de cento e cinquenta anos, se chamava José Furtado Rosa, a minha vizinha Lucinda era tratada por quase toda a gente da Fajã pela “viúva de Ti Manuel Rosa” e os seus filhos o Fernando e o Luís de Ti Manuel Rosa.

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publicado por picodavigia2 às 00:51

A SENHORA D’ALVA

Sexta-feira, 16.11.18

Todas as manhãs a “Senhora d’Alva” aproava ao velho cais, um tapete agreste, rústico e crispado, feito de cimento amassado com areia e misturado com pedregulhos, atirados e colados sobre as pedras negras e virgens do baixio, bem visíveis nos buracos que se haviam aberto com o passar dos anos, com o cirandar das pessoas e com o rolar de pipas e mercadorias. Depois o mar, ali ao lado, com o constante marulhar das suas ondas, umas vezes revolto, agressivo e destruidor, outras meigo e pacato, mas sempre a agastar, sempre a desfazer, sempre a destruir, numa erosão contínua, permanente e afanosa. 

Alheia às asperezas e desgastes do cais, a “Senhora d’Alva” cruzava o oceano, sulcando as suas águas, umas vezes bravas e altivas, outras mansas e suaves, mas sempre tingidas de um azulado enternecedor, a embalá-la com um misto de afeição e suavidade. Carregava sobre si homens, mulheres, velhos e crianças, uns emaranhados nas tarefas do seu labutar quotidiano, outros encastoados nos caprichos de devaneios e lazeres, mas todos a alcandorarem-se num enlevo maravilhoso, num encanto sublime, num êxtase transcendente. A “Senhora d’Alva”, ao rasgar as águas azuladas do oceano, carregava consigo, à mistura com o feitiço das madrugadas, a magia sublime de um navegar mavioso, deslumbrante e enternecedor. 

Depois e já encostada ao cais, prendia-se a ele como se não tivesse medo. Os velhos e enferrujados moitões, ali plantados há séculos, abraçavam-se a ela, seguravam-na nos seus grossos cabos, roçando-os nos beirais agrestes e nas escadas desgastadas, num vaivém embalador, contínuo e mavioso. Homens, mulheres, velhos, jovens, crianças e até alguns doentes, viajando em macas ou em cadeiras de rodas, evaporavam-se pelo portaló fora, como se o entardecer do mundo inteiro os estivesse a perseguir. Depois era um evadir-se de malas, caixotes, sacos, encomendas e mercadoria diversa. Uma miscelânea de recursos! Uma enchente perplexa que urgia esvaziar. A “Senhora d’Alva”, só, vácua, triste e plangente, emitia sons de sirene, magoados, esbaforidos, que se prolongavam como que em eco e se perdiam sobre o cais, mas logo, sedenta, querençosa e desdenhada, abria-se a abrigar, em nova enchente, os que até então, ali se a haviam postado, à espera de um novo lamento de partida.

E lá ia, noutro recortar de águas, noutro embalar de sonhos, noutra aurora de encantos, noutro desgaste de trabalhos e canseiras. E o mar sempre ali, a seu lado, a bafejá-la com o seu sopro, a acariciá-la com a simulada agressividade das suas ondas e, sobretudo, a encorajá-la com a extravagante força de segurar e prender o seu destino, muitas vezes, cerceado pelas nuvens ou desfeito pelo vento.

Um dia, porém, os homens decidiram que o destino da “Senhora d’Alva” havia de se alterar. Agora atirada, dias e dias a fio, para terras distantes, para mares longínquos, esquecia o velho cais, só o demandando, quando a abarrotar de pescado, sob as ordens de uns marinheiros desconhecidos e estranhos, de calças de cotim arregaçadas pelo joelho, chapéus de palha a contrariar o vento, Urgia aliviar-se e, por isso mesmo, agarrava-se a um cais deserto e abandonado, sem homens, sem mulheres, sem velhos e, sobretudo, sem crianças. Era apenas um patamar seco e árido, sem vida, sem emoção e sem deslumbramento.

Não durou muito este martírio doloroso, apesar de decalcado de esperança inútil. A “Senhora d’Alva”, hoje, jaz em terra, distante do cais, do seu fadário quotidiano, separada daquele mar de ondas bravias mas azuladas, de espuma enfadonha mas adocicada que durante anos a fio lhe traçou as rotas e lhe norteou um destino gratificante, complacente, mavioso e sublime.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

A PEQUENA VENDEDORA DE FÓSFOROS

Quinta-feira, 15.11.18

(UM CONTO DE HANS CHRISTIAN ANDERSEN)

 

Fazia um frio terrível; caía a neve e estava quase escuro; a noite descia: a última noite do ano. Em meio ao frio e à escuridão uma pobre menininha, de pés no chão e cabeça descoberta, caminhava pelas ruas.

Quando saiu de casa trazia chinelos; mas de nada adiantavam, eram chinelos tão grandes para seus pequenos pzinhos, eram os antigos chinelos de sua mãe.

A menininha os perdera quando escorregara na estrada, onde duas carruagens passaram terrivelmente depressa, sacolejando.

Um dos chinelos não mais foi encontrado, e um menino se apoderara do outro e fugira correndo.

Depois disso a menininha caminhou de pés nus – já vermelhos e roxos de frio.

Dentro de um velho avental carregava alguns fósforos, e um feixinho deles na mão.

Ninguém lhe comprara nenhum naquele dia, e ela não ganhara sequer um níquel.

Tremendo de frio e fome, lá ia quase de rastos a pobre menina, verdadeira imagem da miséria!

Os flocos de neve lhe cobriam os longos cabelos, que lhe caíam sobre o pescoço em lindos cachos; mas agora ela não pensava nisso.

Luzes brilhavam em todas as janelas, e enchia o ar um delicioso cheiro de ganso assado, pois era véspera de Ano-Novo.

Sim: nisso ela pensava!

Numa esquina formada por duas casas, uma das quais avançava mais que a outra, a menininha ficou sentada; levantara os pés, mas sentia um frio ainda maior.

Não ousava voltar para casa sem vender sequer um fósforo e, portanto sem levar um único tostão.

O pai naturalmente a espancaria e, além disso, em casa fazia frio, pois nada tinham como abrigo, exceto um telhado onde o vento assobiava através das frinchas maiores, tapadas com palha e trapos.

Suas mãozinhas estavam duras de frio.

Ah! bem que um fósforo lhe faria bem, se ela pudesse tirar só um do embrulho, riscá-lo na parede e aquecer as mãos à sua luz!

Tirou um: trec! O fósforo lançou faíscas, acendeu-se.

Era uma cálida chama luminosa; parecia uma vela pequenina quando ela o abrigou na mão em concha…

Que luz maravilhosa!

Com aquela chama acesa a menininha imaginava que estava sentada diante de um grande fogão polido, com lustrosa base de cobre, assim como a coifa.

Como o fogo ardia! Como era confortável!

Mas a pequenina chama se apagou, o fogão desapareceu, e ficaram-lhe na mão apenas os restos do fósforo queimado.

Riscou um segundo fósforo.

Ele ardeu, e quando a sua luz caiu em cheio na parede ela se tornou transparente como um véu de gaze, e a menininha pôde enxergar a sala do outro lado. Na mesa se estendia uma toalha branca como a neve e sobre ela havia um brilhante serviço de jantar. O ganso assado fumegava maravilhosamente, recheado de maçãs e ameixas pretas. Ainda mais maravilhoso era ver o ganso saltar da travessa e sair bamboleando em sua direção, com a faca e o garfo espetados no peito!

Então o fósforo se apagou, deixando à sua frente apenas a parede áspera, úmida e fria.

Acendeu outro fósforo, e se viu sentada debaixo de uma linda árvore de Natal. Era maior e mais enfeitada do que a árvore que tinha visto pela porta de vidro do rico negociante.

Milhares de velas ardiam nos verdes ramos, e cartões coloridos, iguais aos que se vêem nas papelarias, estavam voltados para ela. A menininha espichou a mão para os cartões, mas nisso o fósforo apagou-se. As luzes do Natal subiam mais altas. Ela as via como se fossem estrelas no céu: uma delas caiu, formando um longo rastilho de fogo.

“Alguém está morrendo”, pensou a menininha, pois sua vovozinha, a única pessoa que amara e que agora estava morta, lhe dissera que quando uma estrela cala, uma alma subia para Deus.

Ela riscou outro fósforo na parede; ele se acendeu e, à sua luz, a avozinha da menina apareceu clara e luminosa, muito linda e terna.

 - Vovó! – exclamou a criança.

 - Oh! leva-me contigo!

Sei que desaparecerás quando o fósforo se apagar!

Dissipar-te-ás, como as cálidas chamas do fogo, a comida fumegante e a grande e maravilhosa árvore de Natal!

E rapidamente acendeu todo o feixe de fósforos, pois queria reter diante da vista sua querida vovó. E os fósforos brilhavam com tanto fulgor que iluminavam mais que a luz do dia. Sua avó nunca lhe parecera grande e tão bela. Tornou a menininha nos braços, e ambas voaram em luminosidade e alegria acima da terra, subindo cada vez mais alto para onde não havia frio nem fome nem preocupações – subindo para Deus.

Mas na esquina das duas casas, encostada na parede, ficou sentada a pobre menininha de rosadas faces e boca sorridente, que a morte enregelara na derradeira noite do ano velho.

O sol do novo ano se levantou sobre um pequeno cadáver.

A criança lá ficou, paralisada, um feixe inteiro de fósforos queimados. – Queria aquecer-se – diziam os passantes.

Porém, ninguém imaginava como era belo o que estavam vendo, nem a glória para onde ela se fora com a avó e a felicidade que sentia no dia do Ano­ Novo.”

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publicado por picodavigia2 às 00:05

SINOPSE DE “O SÉCULO DOS PRODÍGIOS” DE ONÉSIMO ALMEIDA

Quarta-feira, 14.11.18

O Século dos Prodígios: a ciência no Portugal da Expansão.

Neste livro, Onésimo Teotónio Almeida presta especial atenção aos séculos XV e XVI, afastando-se de qualquer perspetiva nacionalista, na qual alguns historiadores portugueses incorrem, ora pecando por excesso, ao exagerarem as nossas pretensões em matéria de ciência, ora por defeito ao ignorarem o papel que de facto tivemos. Ao mesmo tempo, tenta corrigir a historiografia anglo-americana que não prestou a devida atenção ao ocorrido em Portugal nesse período. Com efeito, durante o final da Idade Média foram surgindo em Portugal sinais de um inovador interesse pela natureza e pelo conhecimento empírico dela, assim liderando um dos grandes momentos de viragem na História da Ciência. Este livro é uma revisitação dos anos de ouro da história portuguesa: O Século dos Prodígios é a revelação de como no nosso país, durante o chamado período da Expansão, surgiu e cresceu um núcleo duro de pensamento e trabalho científico verdadeiramente pioneiro, sem o qual as viagens desses séculos teriam sido impossíveis.

In Internet

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publicado por picodavigia2 às 00:50

DEA IGNOTA

Terça-feira, 13.11.18

Menina de tranças, de bonecas e de sonhos!

Sonhava, como sonham todas as crianças,

Com aquilo que havia de ser um dia.

Cedo os seus sonhos se realizaram,

Transformando-se, num equilíbrio de apetências,

Em realizações de desejos e vontades.

 

Senhora, de sonhos domados,

Peregrina de estigmas, acompanhante de angústias e sofrimentos.

De noite, de dia, em turnos, ou no silêncio das madrugadas,

Na abnegação duma entrega persistente,

Transformavas o trabalho em amor, reconstruías destinos desfeitos.

 

Em pose de donzela serena,

Irradiavas alegria, bem-estar, felicidade.

E na cumplicidade de um envolvimento compassivo,

Cativavas, com o doce perfume das tuas palavras,

Atraías, com a suave doçura das tuas atitudes

 

Aureolada de um eterno bem-querer,

Não esbanjavas a ternura dos teus abraços,

Nem aprisionavas a suavidade dos teus sorrisos.

Porque eram as dádivas sublimes e perenes

Com que envolvias e acariciavas quantos te rodeavam.

 

Nem o desconforto dos dias mais enevoados,

Nem o negrume das noites mais turbulentas

Ou sequer as horas de serviço mais urgente,

Te traziam mágoa, dor, sofrimento,

Ou destruíam uma nesga da tua indomável persistência.

 

Circulavas, caminhavas, rodopiavas

Por corredores, salas e enfermarias.

Ortopedia, Otorrino, Anestesia - um desfilar de melodias!

Ornavas-te de delicadeza, revestias-te de bondade,

Impunhas-te por uma nobre e singela competência.

 

Baluarte de bondade e paciência.

Anestesia – Circulante – Instrumentista.

Cativavas os adultos e gravavas no coração de cada criança,

Com o encantamento do teu cativante olhar,

A sublime leveza das madrugadas sem dor.

 

Nunca esqueceremos os afetos com que nos fortalecias!

E se, algum dia, vacilarmos frente à adversidade,

Se desesperarmos perante os amargos da vida

Ou se cambalearmos perante o desencanto, o insucesso, o infortúnio,

O testemunho da tua amizade e a força da tua dedicação,

Serão o baluarte das nossas vitórias, o remanso da nossa persistência.

 

Nova caminhada te espera!

Continua a desenhar o teu sorriso no coração dos que te rodeiam

A oferecer o teu carinho aos mais carenciados.

A partilhar a tua coragem com os que não sabem lutar.

Estaremos contigo, no abraço que riscamos sobre as nossas existências

E que o espaço e o tempo nunca apagarão.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

PRÉMIO PARA ONÉSIMO ALMEIDA

Segunda-feira, 12.11.18

O Século dos Prodígios vence Prémio História da Presença de Portugal no Mundo

Um ensaio de Onésimo Teotónio Almeida, que se debruça sobre o carácter pioneiro da ciência portuguesa no período dos Descobrimentos, recebe prémio da Fundação Calouste Gulbenkian

O Século dos Prodígios, ensaio de Onésimo Teotónio Almeida, que se debruça sobre o carácter pioneiro da ciência portuguesa no período dos Descobrimentos, venceu o Prémio História da Presença de Portugal no Mundo, foi esta quinta-feira anunciado.

"O livro O Século dos Prodígios - A Ciência no Portugal da Expansão, de Onésimo Teotónio Almeida, foi anunciado, pela presidente da Academia Portuguesa de História (APH), Manuela Mendonça, como vencedor do Prémio Fundação Calouste Gulbenkian, História da Presença de Portugal no Mundo", revelou a Quetzal, chancela que editou o livro.

O livro será lançado nesta sexta-feira e a cerimónia de entrega do prémio ocorrerá a 5 de Dezembro, nas instalações da APH, em Lisboa.

Trata-se de um prémio instituído pela APH e patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian, que visa galardoar obras históricas de reconhecido mérito.

LUSA 9 de Novembro de 2018, 15:26/ Jornal Público

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publicado por picodavigia2 às 10:06

O “TRANCÃO”

Sábado, 10.11.18

Integrar o elenco das companhas dos botes da baleia na Fajã Grande não era tarefa fácil, nem qualquer um conseguia tal desiderato. Era necessário possuir a arte, a perícia e o engenho de andar no mar, era imperioso ter força e desimpedimento para remar, exigia-se cédula ou carta de marítimo que não era passada a qualquer um – só depois de prestadas as devidas provas - e, além disso, os candidatos eram muitos e as vagas poucas, uma vez que os lugares de marinheiro dos dois únicos botes e da lancha ancorados na Fajã estavam, sistematicamente, preenchidos, época após época. Mas integrar o elenco baleeiro fajãgrandense com a arrojada, dificultosa e destemida função de trancador, era ainda muito mais difícil, para não dizer quase impossível. Para a maioria dos candidatos que a ela aspiravam, não passava de um sonho efémero ou de um desejo esvanecido. É que o Francisco Inácio e o Urbano estavam ali para durar! Não havia concorrente que os destituísse.

O trancador de baleias, que em pé, à proa do bote, à espera de atirar certo e seguro o arpão ao primeiro cetáceo que lhe aparecesse pela frente, tinha que ser forte, destemido, ágil e dotado de excelente pontaria. Acertar à primeira na baleia e acompanhá-la na corrida desenfreada, louca e acelerada que a dita cuja encetava, logo após ser arpoada, era tarefa arrojadíssima, extremamente arriscada e muito perigosa. Apesar de tudo, muitos rapazes sonhavam com ela, pretendendo assim imitar e seguir as pisadas dos dois melhores trancadores de sempre da Fajã Grande: o Francisco Inácio e o Urbano Fagundes.

Alto, esguio mas bastante desajeitado José, como muitos outros da sua idade, sonhou com a pesca à baleia. E sonhou não apenas ser baleeiro. Sonhou mais, muito mais. Sonhou ser trancador. Era safar-se de andar dia e noite agarrado à enxada e ao sacho, libertar-se de percorrer caminhos e veredas atrás das vacas, acarretar molhos e cestos às costas, tirar esterco e despejar a poça, numa palavra era abandonar o árduo e quotidiano trabalho agrícola, quase de escravo, para se dedicar a uma profissão digna, nobre e grandiosa – trancador de baleias.

Consciente das suas limitações, mas convicto das suas possibilidades, José entendeu que era preciso treinar. “Treinar muito” – ouvira ele vezes sem conta. Pois então! Se treinasse, se treinasse muito… seria contratado. Talvez o Francisco Inácio com uma boa junta de bois a dar dias para fora, mais hoje, mais amanhã, abandonasse aquela nobre e arriscadíssima tarefa. Seria ele, José, a suceder-lhe… “É preciso treinar, treinar muito” - pensou com os seus botões. Se bem o pensou melhor o fez. E a primeira oportunidade proporcionou-se. Foi ali perto, mesmo à beira do caminho, quando as abóboras do cerrado das Furnas amadureceram e enquanto aguardavam que as trouxessem para casa, para alimentar os porcos e para o gado… que José decidiu começar os treinos. Muniu-se de um bom pau com um ferro amarrado na ponta a simular o arpão… e vai disto! Começa a desancar, a atirar, a arpoar, a torto e a direito, nas abóboras, acertando numas e falhando noutras, mas desfazendo-as quase por completo!

Nada ganhou com isso pois nunca deu em trancador.

Porém, como na Fajã Grande todos “se pelavam” por arranjar novos apelidos a uns e outros, o José não arpoou em vão nas abóboras e ganhou um apelido, ficando, a partir de então, conhecido por toda a gente e em toda a parte por  “José Trancão” ou simplesmente “O Trancão”.

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publicado por picodavigia2 às 00:02

MEU BISAVÔ E A MINA DE OURO DE SOIBAR NO CONDADO DE SISKIYOU, NO NORTE DA CALIFÓRNIA

Quinta-feira, 08.11.18

José de seu nome nasceu no longínquo ano de 1855, na Fajã Grande das Flores. Embora tivesse dois dos apelidos mais frequentes na freguesia - Fagundes e Silveira – herdados dos primeiros povoadores da ilha das Flores, foi sempre conhecido por José Bartolomeu, epíteto herdado de seu pai, ou seja de meu trisavô, Bartolomeu Lourenço Fagundes nascido em 1825, e que o povo, com a sua hábil capacidade linguística de facilitar a pronúncia das palavras, traduziu simplesmente por “Batelameiro”. Ainda criança, José começou a ceifar erva e acarretar molhos de lenha, a cavar a terra e a trepar a rocha, a lavrar os campos e a tirar o estrume do palheiro, a saltar paredes e maroiços no tratamento do gado e no amanho das terras. Trabalhava de sol a sol, à chuva, ao vento, durante as tempestades e nevoeiros, com o frio do norte a tolher-lhe os ossos, as brisas matinais a perfurarem-lhe o rosto, o cabo da enxada a desfazer-lhe as mãos e as pedras pontiagudas das canadas e caminhos a esmurrarem-lhe os pés descalços. Cedo porém se tornou objector de consciência às limitadas condições de vida que a freguesia e a ilha lhe proporcionavam e embarcou, às escondidas, fugindo aos tiros da guarda costeira, na Rocha dos Fanais, a bordo duma escuma indo parar à Costa Leste dos Estados Unidos. Mas não era ali o seu destino. O “El dorado” ficava longe, muito longe, do outro lado do Mundo, quase tão distante dali como distante estava ele da ilha onde nascera. E aventurou-se novamente. Atravessou a América de lés-a-lés, de comboio, descansou alguns dias no Colorado e foi parar à Serra Nevada. Aí pastoreou ovelhas, guardou ranchos, ganhou dólares, guardou-as quase todas que os gastos eram poucos e comprou terras. Passados alguns anos vendeu o que tinha comprado, juntou as águias até então guardadas e voltou à terra natal. Apaixonou-se e casou em 1880 com Maria da Conceição, a minha bisavó. Desse casamento resultaram cinco filhos: Maria 1883, José, o meu avô materno, 1886 e Ana em 1887. Novamente intrigado e descontente com a vida precária da ilha e sonhando com algo de melhor para os filhos, resolve regressar à Califórnia, desta feita, levando a mulher grávida de algumas semanas e os filhos ainda pequeninos. Mas a Serra Nevada não era destino aconselhável a quem emigrava com a família, sobretudo com uma mulher prenhe e com crianças de tenra idade. Por isso José tomou novo rumo e foi parar ao Norte da Califórnia, mais concretamente ao novo e promissor condado de Siskiyou que, apesar de ser um dos maiores em superfície era, nessa altura, um dos condados do estado da Califórnia mais pequeno em população. Fundado em 1858, o condado de Siskiyou já na altura fazia jus de grande prosperidade. Tinha fronteira a norte com o estado do Oregan, a leste com o Condado de Del Norte, a Sul com o Trinity e o Shasta e a Oeste com o Modos. Aí nascem mais dois filhos: Francisco, em 1892 e Maria do Céu 1895. José volta a comprar terras e gado. Floresce o negócio, granjeia prestígio e em 20 de Julho de 1892 torna-se cidadão Americano por decisão da “Superior Court” da cidade de Yreka, capital do Condado de Siskiyou. A doença da esposa, porém, obriga José a regressar aos Açores e às Flores, voltando a vender as terras a quem, para desgraça sua, nunca lhas pagou. Minha bisavó faleceu pouco depois do seu regresso à Fajã Grande e, no ano seguinte, José refaz a sua vida, voltando a casar-se, desta feita com Maria Rosa. Não demorou muito este casamento, falecendo a 2ª consorte do meu bisavô em 1904, juntamente com uma criança recém-nascida. Triste e desconsolado José volta a Siskiyou onde havia deixado casa, alguns bens e uma outra terra que não vendera. Aguardava-o ainda o sonho de recuperar o dinheiro perdido na venda das primeiras terras e que nunca lhe tinha sido pago. Esse sonho não se realizou porque como não possuía provas de venda, o verdadeiro devedor negou que tal facto jamais tivesse acontecido. Era a palavra de um contra a do outro e José ficou sem dinheiro e sem as terras. Apesar de tudo e porque era forte, resignado, de fibra rija e sem medo do trabalho, refez a sua vida e com o seu labutar digno e honrado pode recuperar, em parte, o que havia perdido com a vigarice e a desonestidade de outros. Voltou a comprar terras. Os filhos mais velhos, no entanto partiram para outras zonas da Califórnia. José voltou a ficar só, triste e desconsolado, decidindo voltar definitivamente para as Flores e para Fajã Grande, onde viveu sozinho durante alguns anos, dedicando-se novamente ao trabalho agrícola, até que em 1907, com 52 anos de idade casou, pela 3º vez, com Mariana Luísa da qual ainda teve mais três filhas, falecendo no ano de 1923.

Mas a “estória” de José não fica por aqui. Antes de partir para os Açores, sabendo que já não regressaria mais a Siskiyou, vendeu tudo o que ali possuía e também o que nem cuidava possuír. É que, como mais tarde se veio a saber, entre as terras vendidas pelo meu bisavô, havia uma, próximo de Soibar, no condado de Siskiyou, que tinha nada mais, nada menos, do que uma mina de ouro, que mais tarde, muito contribuiu, para o desenvolvimento daquele pequeno condado do Norte da Califórnia.

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publicado por picodavigia2 às 00:03

VIAJANDO NO CARVALHO ARAÚJO

Quarta-feira, 07.11.18

Era geralmente ao anoitecer que o Carvalho levantava ferro da baía das Lajes com destino ao Faial, onde chegava na manhã do dia seguinte. Uma noite inteirinha a marulhar o casco enegrecido contra as ondas, na escuridão e no silêncio do oceano, entrecortado apenas pelo tépido roncar das suas velhas mas portentosas máquinas. Os passageiros, ao lusco-fusco, logo que embarcavam debruçavam-se em chusma, à amarra do convés e entretinham-se a ver as manobras que os guindastes e roldanas da proa executavam a fim de levantarem do fundo do mar a pesada âncora que o prendera em frente às Lajes, durante várias horas. Alguns marinheiros levantavam a escada e fechavam o portaló, trancando-o com duas grossas cavilhas de ferro. O navio, sentindo-se liberto da pesada poita, guinava à retaguarda, apitava por três vezes, orientava-se rumo à saída da baia e zarpava em marcha lenta, em direcção ao Faial, deixando atrás de si, juntamente com o roncar estridente dos motores, uma enorme esteira de espuma esbranquiçada.

Alguns passageiros, sobretudo os que viajavam sem beliche, passavam a noite em vai e vens apreensivos e temerários entre a primeira e a segunda classe, ora subindo escadas ou penetrando em corredores ora entrando nas salas que ainda permaneciam abertas, procurando lugar apetecível para pernoitar. Outros mas afoitos e destemidos subiam ao convés da primeira na luta por descortinarem uma espreguiçadeira desocupada. Os que o não conseguiam voltavam à amarra para ver mais uma vez a ilha, agora já muito longe e de tal maneira confundida com o negrume da noite que quase não se via, apesar de estar perfeitamente assinalada pelos dois enormes e potentes faróis: a Sul o das Lajes e a Norte o do Albarnaz.

O Carvalho navegava durante toda a noite ronceiro e vagaroso mas sem parar balançando-se sobre as ondas, umas vezes altivas e temerosas outras calmas e tranquilas, enquanto ao longe muito tenuemente brilhavam, até desaparecerem por completo, os dois faróis das Flores. Dizia-se que havia um sítio a meio do canal entre as Flores e o Faial donde, em noites muito limpas e bem escuras, se viam ao mesmo tempo os faróis de ambas as ilhas.

Com o despontar da madrugada começavam a vagar cadeiras no convés da primeira. Era ali e pelos corredores ou até sobre o convés, ao lado do porão que se acomodavam os passageiros sem beliche, alheando-se, assim, dos solavancos rítmicos, acompanhados pelo som roufenho das máquinas do velho paquete. Os faróis das Flores desapareciam por completo, com o aproximar-se do Faial. Alta madrugada a maioria dos passageiros quer os sem beliche, quer muitos outros, aguardavam expectantes a aproximação da ilha, na esperança de conseguir vislumbrar, de longe, o vulcão dos Capelinhos.

Quem por ali passou a bordo do Carvalho, entre Setembro de 1957 e Outubro de 1958 afirmava que se via perfeitamente uma enorme e altiva coluna de fogo, a sair do mar. Tudo começara em Setembro 1957. Entre os dias dezasseis e vinte sete de Setembro registara-se uma grave crise sísmica no Faial e no Pico e que culminara com o rebentar de um vulcão, no final do mês, na parte norte da ilha do Faial. Uma enorme coluna de fogo emergira do seio da terra, espalhando uma chuva de cinzas sobre grande parte da ilha. Os abalos sísmicos foram prosseguindo e a coluna de fogo manteve-se bem viva e ameaçadora durante longos meses, pese embora, com o passar do tempo fosse perdendo a pujança e a força iniciais. Mas no início da crise, a lava emersa da terra era tanta e tão forte que até nas Flores, imune a todo o tipo de actividades sísmicas, ter-se-ia visto, por vezes, o céu mais enevoado e mais escuro devido às cinzas e aos fumos libertados pelo vulcão.

Quem viajava, nessa altura, no Carvalho tinha a oportunidade única de observar, aquele fenómeno telúrico, vislumbrando, lá ao longe, uma pequena e trémula coluna de fogo que saía da terra em espiral e se ia enrolando pelo céu acima até se perder no horizonte e na escuridão.

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publicado por picodavigia2 às 00:00

PEDRO DA SILVEIRA

Terça-feira, 06.11.18

Pedro da Silveira, “o Pedro das Senhoras Mendonças” como era conhecido pelos seus vizinhos, nasceu na Fajã Grande, na rua da Assomada,(1) a 5 de Setembro de 1922. Embora fosse meu vizinho, muito amigo dos meus pais e meus irmãos mais velhos, com quem conversava frequentemente e visitasse a Fajã quando eu era criança, apenas tive o privilégio de conversar com ele num encontro de habitantes das ilhas das Flores e Corvo, realizado em Castelo Branco, há alguns anos. Nessa altura tive a honra de lhe entregar um texto meu “Noite de Natal” que ele teve a delicadeza de ler e do qual mais tarde me enviou o seu comentário. Lamentavelmente não mais pude contactar com ele. Faleceu em Lisboa, no dia 13 de Abril de 2003.

Pedro da Silveira, talvez o mais ilustre fajãgrandense de sempre, foi poeta, crítico literário e investigador quer a nível da escrita quer a nível da tradição oral. Fez parte do conselho de redacção da revista “Seara Nova” e é autor de várias obras de poesia e de recensão literária e de duas antologias de poetas açorianos.

Depois de ter completado o ensino primário na Fajã Grande, tendo já demonstrado grande inteligência e interesse pelas letras, partiu para Angra, frequentando primeiro o Seminário e mais tarde o Liceu, o que lhe permitiu completar a sua formação básica e contactar com os mais lídimos representantes da literatura lusófona do tempo e onde, de acordo com as suas palavras «Havia, pelo menos em certos meios, um culto muito fiel por Jaime Brasil e por Aurélio Quintanilha, ambos terceirenses e ambos anarco-sindicalistas. Para aí me inclinei e ainda agora, se alguma ideologia política é capaz de me dizer alguma coisa, essa é o socialismo acrata(2) ou anarquismo.”(1987)

Alguns anos depois radicou-se em Ponta Delgada, cidade onde integrou o grupo intelectual que se formou em torno do jornal “A Ilha”, periódico no qual colaborou assiduamente.

Finalmente fixou-se em Lisboa, onde viveu o resto da sua vida, embora visitando a Fajã com alguma frequência, granjeando, de acordo com o testemunho de muitos dos seus vizinhos e conterrâneos, a simpatia de todos, com os quais partilhava ideias, princípios e conhecimentos. Foi delegado de propaganda médica, promovendo produtos farmacêuticos, iniciando simultaneamente um percurso de estudo e investigação histórico-literária. Mais tarde passou a trabalhar na Biblioteca Nacional, da qual foi director dos Serviços de Investigação e de Actividades Culturais, chegando a integrar a Comissão de Gestão da mesma.

 Foi um dos promotores da elaboração da Enciclopédia Açoriana e participou ainda em múltiplos estudos relacionados com a cultura açoriana e em especial com a história e a etnografia da ilha das Flores, com destaque muito especial para a Fajã Grande, onde recolheu variadíssimos textos da tradição literária oral, divulgados mais tarde na revista “Lusitana”. Iniciou a sua obra poética com A Ilha e o Mundo (1953) e prosseguiu com Sinais de Oeste (1962), Corografias (1985) e Poemas Ausentes (1999). Publicou um primeiro volume “Fui ao Mar Buscar Laranjas”, um conjunto de vinte poemas inéditos, escritos entre 1942 e 1946.

Pedro da Silveira revelou sempre um alto sentido de cidadania e uma formação ideológica e política muito firme, convicta e segura, iniciada na sua adolescência nas Flores, onde conheceu alguns exilados políticos, que “lhe revelaram quem era Salazar e ao que vinha”. Com eles, primeiro, e depois com o grupo anarquista em Angra, consolidou os princípios políticos e ideológicos essenciais que o acompanhariam por toda a vida e que fizeram com que os seus direitos políticos fossem apreendidos por  Salazar que chegou a retirar-lhe o direito de voto e também que fosse permanentemente perseguido e preso pela PIDE.

Notas – (1) Em recente visita à Fajã Grande, pude verificar que a casa onde ele nasceu foi vendida. Creio que poder-se-ia muito bem ter sido transformada em “Casa museu Pedro da Silveira”. Pior. A casa onde o pai nasceu, situada à Praça e que, na década de cinquenta, era um palheiro de gado e arrumos, foi totalmente destruída. Era esta a casa que ele descreve num dos seus mais belos poemas.

(2) Chama-se “acrata” a um partidário ou defensor da acracia. A acracia é uma forma de anarquismo, ou seja, uma ideologia politico-filosófica que não aceita a legitimidade de nenhuma imposição. Sendo assim, para que uma acção humana tenha valor moral deve emanar da decisão livre de quem a empreende e, por isso, todas as actividades humanas devem ser resultantes de compromissos voluntários, tomados por livre arbítrio. Na prática, os acratas defendem que as pessoas não nasceram para obedecer mas sim para decidir por si próprias.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

MANGÃO

Domingo, 04.11.18

Se consultarmos o site oficial da Câmara Municipal das Lajes das Flores e procurarmos em “freguesias” Fajã Grande, poderemos ver, entre outras informações, umas dez linhas dedicadas à gastronomia, nas quais, para além das filhós, do pão doce ou massa sovada e dos doces tradicionais (arroz doce e bolos caseiros) se referem os seguintes pratos típicos, também considerados “iguarias da freguesia da Fajã Grande”: Enchidos, Carne de Porco Salgada, Mariscos, Lapas, Peixe, Pão de Milho, Bolo de Milho, Batata-doce e Inhame.

Na realidade todos estes comeres não se podem considerar propriamente iguarias, ou seja comidas preparadas ou cozinhadas, mas sim produtos ou géneros alimentares com que se confeccionavam e muito provavelmente ainda se confeccionam os tais pratos típicos que o site não refere, embora, na realidade, excepcionando o marisco que não era usual nos cardápios de antanho, todos os outros alimentos indicados faziam parte da alimentação quotidiana fajãgrandense. Obviamente que numa terra pobre e tendo em conta as limitadas condições de vida da época e a falta de produtos, de meios e, até de tempo, não se pode falar de uma cozinha rica, variada e abundante. Apesar disso, confeccionavam-se alguns destes alimentos de forma própria, única, típica e talvez mesmo, nalguns casos, exclusiva da Fajã Grande. É a esses cozinhados ou aos pratos deles resultantes que se pode, em abono da verdade, chamar pratos típicos, como era o caso da caçoila e das sopas fritas ou até da linguiça já referenciados neste blogue.

Havia no entanto alguns outros pratos, um dos quais o célebre Mangão, em que o elemento base era a batata branca e geralmente preparado quando não havia conduto para acompanhar as próprias batatas, o que acontecia com muita frequência. Aliás e pela sua estrutura e ingredientes percebe-se que este é um prato que terá nascido simplesmente do facto de não se ter nada para comer, a não ser as batatas. Assim, duma limitação ou duma ausência cria-se um prato típico, o que não é inédito na culinária portuguesa, bastando para tal recordar a razão que levou os habitantes do Porto a inventar e confeccionar as tripas à moda do Porto: simplesmente porque durante as invasões francesas, os franceses comiam a carne, deixando-lhes apenas as tripas. Houve que inventar e que criar. O mesmo terá acontecido com o nosso Mangão, com a diferença de que não foram nem os franceses nem outro povo qualquer a comer-nos o conduto. Este simplesmente não existia.

Para confeccionar o Mangão, para além das batatas brancas cozidas, era necessária banha de porco, preferencialmente daquela que cobrira a linguiça, cebola e alho picados. Uma vez derretidas duas ou três colheres de banha, num caldeirão de ferro, alouravam-se a cebola e o alho. As batatas, previamente cozidas, eram bem esmagadas com um garfo até ficarem desfeitas e, quando o refogado estava pronto, adicionavam-se ao mesmo. Depois era tudo muito bem mexido para que as batatas e a cebola ficassem bem envolvidas e misturadas. O Mangão estava pronto e era servido directamente do caldeirão de ferro para os pratos, a fim de se comer bem quentinho.

Ainda não há muito tempo, através de um telefonema duma amiga dos meus tempos de infância, fui informado que na casa dos seus pais e possivelmente nalgumas outras, se comia o Mangão polvilhado com açúcar. Penso que este costume, por mim desconhecido, terá a sua origem numa “estória” que se contava, nos meus tempos de infância, de um navio carregado de açúcar que em tempos idos, naufragou na Fajã Grande. Tanto foi o açúcar que se espalhou pelo baixio que o povo encheu sacos e sacos e trouxe-o para as suas casas, utilizando-o como tempero em substituição do sal.

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O CULTO DAS ALMAS

Sábado, 03.11.18

O culto das almas, na Fajã Grande, era de tal modo intenso que durante o ano eram feitas, na freguesia, duas “derramas” ou seja recolhas ordinárias de ofertas a favor das Almas do Purgatório: em Janeiro, a das línguas do porco e em Novembro, a do milho. No que concerne à oferta das línguas dos porcos, fenómeno estranho e de esconsa clarificação, cada agregado familiar, se assim o entendesse, salgava a língua do seu porco e, algum tempo depois da matança, levava-a para a missa dominical, finda a qual, era arrematada, no adro da igreja, sendo o dinheiro resultante de cada leilão entregue ao mordomo das almas, que o guardava. A recolha do milho, por sua vez, era feita no dia de Todos os Santos. Grupos de homens munidos de cestos ou sacos de serapilheira percorriam as ruas da freguesia e, batendo à porta cada casa, gritavam: “Milho pr’ás almas”. O objetivo era recolher as ofertas de milho, cujo dinheiro resultante da venda, também era destinado às benditas almas. Esta atividade era devidamente planificada e programada pelo mordomo das almas, que, dias antes, requisitava os homens necessários para fazer o peditório. Convidava também uma grande quantidade de mulheres para, durante e após o peditório, recolher o milho, debulhá-lo e enchê-lo em sacos. O milho, posteriormente, era vendido e esse dinheiro, juntamente com o do leilão das línguas e o de outras ofertas, era entregue, ao pároco. Destinava-se a celebrar missas e rezar os responsos, todos os dias, durante o mês de Novembro, por alma dos defuntos de todas as famílias da freguesia. Além disso, ainda eram feitas, ao longo do ano, mas com maior incidência no mês de novembro e por iniciativas individuais, geralmente resultantes de promessas, outros peditórios e recolhas extraordinárias de produtos agrícolas que também eram vendidos ou leiloados, com o mesmo objetivo.

Assim e tendo em conta o dinheiro obtido através de todas estas derramas e ofertas, o pároco calculava o número de missas a celebrar. Depois dividia o número de casas da paróquia por esse número e estabelecia uma espécie de calendário, sendo que, em cada dia do mês de novembro a missa era celebrada por alma dos defuntos de um conjunto de famílias. Este conjunto era determinado, grosso modo, pelo quociente do número de casas a dividir pelo número de missas. Nenhuma casa era excluída, mesmo que tivesse contribuído com pouco ou nem sequer tivesse colaborado na oferta de géneros ou na recolha de donativos.

Na tarde do dia de Todos os Santos procedia-se à ornamentação e limpeza do cemitério, enfeitando cada família as sepulturas dos seus antepassados. No dia dois, de manhã cedo era celebrada a primeira missa, “Missa in die obito” com paramentos pretos, sendo inicialmente montada a essa no centro do cruzeiro, com seis castiçais ao redor e um tapete negro a cobri-la, como se de um funeral se tratasse. Finda a missa, o pároco trocava a casula preta pela capa de asperges da mesma cor e rezava os responsos dos defuntos. Seguia-se a procissão ao cemitério, durante a qual os sinos “dobravam a finados” e onde, novamente, eram rezados responsos e benzidas as sepulturas. De regresso à igreja eram celebradas mais duas missas, de acordo com as normas litúrgicas então vigentes. As Trindades da noite do dia um e da manhã e noite do dia dois eram acompanhadas do “dobrar a finados”.

Quando nós crianças, ainda indiferentes a tais celebrações, perguntávamos de quem era o enterro ou quem tinha morrido naquele dia, diziam-nos, os adultos, que era o enterro do “Velho Laranjinho”, figura mítica que, muito provavelmente, representava todos os finados da freguesia. Também era costume, no dia 2 de Novembro, cozer pão e assar abóboras no forno, em louvor das almas do purgatório, mas o forno deveria ser apagado sempre antes do toque das Trindades, caso contrário, dizia-se, as almas dos nossos antepassados continuariam a ser queimadas pelo “santo fogo” do Purgatório.

Creio que estas práticas e crenças eram comuns a todo a ilha das Flores, existindo, inclusivamente, uma paróquia – a Caveira – cujo orago era “As Benditas Almas”. Estranhamente o bispo diocesano da altura, provavelmente considerando que “As Almas” não eram santas, entendeu que não deviam ser as padroeiras da freguesia. Foram substituídas pela Senhora do Livramento.

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O MÊS DE NOVEMBRO E AS NOVENAS DAS ALMAS

Sexta-feira, 02.11.18

A devoção e o culto das almas ocupavam literalmente um lugar de relevo no top da religiosidade e das celebrações litúrgicas, na Fajã Grande. Havia entre toda a população uma muito acentuada espécie de “cultura do além”, repleta, por um lado, de mitos, lendas, tradições, extravagâncias, ingenuidades e medos, mas, por outro, eivada de convicções embora limitadas, certezas geralmente inconsequentes, esperanças inexplicavelmente obscuras e de quotidianas e convictas realizações. Daí que o mês de Novembro se tornasse um mês especial, uma espécie de mês mítico, do além, por ser o mês das almas. Todos os dias, com excepção dos dias um e dois e dos domingos, realizava-se, na igreja paroquial, a “novena das almas”. Tratava-se logicamente de uma expressão popular pouco correcta, uma vez que as celebrações não se limitavam aos tradicionais nove dias próprios das novenas, mas prolongavam-se por todo o mês. Por isso, o mês de Novembro também era chamado mês das almas.

Já noite escura a igreja enchia-se de gente como se de domingo se tratasse e era celebrada missa, geralmente missa dos defuntos, excepto nos dias em que tal não era permitido liturgicamente, por se tratar duma festividade de 1ª classe. A igreja permanecia propositadamente escurecida, sendo apenas iluminada pelas velas do altar-mor e por outras seis encravadas em outros tantos gigantescos castiçais colocados ao redor de um enorme tapete preto debruado a amarelo, estendido bem no centro do cruzeiro, logo a seguir à capela-mor. A escuridão do templo, por um lado, convidava e proporcionava aos crentes um ambiente mais propício à oração e à reflexão sobre o mistério da sua própria morte e, por outro encenava uma espécie de enquadramento daquilo porque todos, sem distinção, já tinham passado – a lembrança da morte de algum familiar.

De seguida o pároco envergando a capa de asperges preta e barrete de três quinas, colocava-se estrategicamente à cabeceira do tapete e, voltado para o povo, rezava um responso por cada um dos agregados familiares da Fajã, agrupados ao longo dos vários dias, desde o cimo da Assomada e até ao fim Via d’Água. Como as famílias obviamente eram muitas mais do que os dias do mês, o pároco agrupava em cada dia o número razoável e adequado de agregados familiares, sendo que, no entanto, rezava separadamente os responsos, ou seja um pelos defuntos de cada família. Entre a reza de cada responso o pároco pegando no hissope encharcava-o na caldeirinha da água benta que o sacristão lhe apresentava, dava uma volta ao tapete e aspergia-o em cruzes sucessivas dos quatro lados, enquanto os sinos dobravam a finados.

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ÚLTIMO OESTE

Quinta-feira, 01.11.18

 

(UM POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)

 

A terra acaba aqui.

Além é só o mar – e vento.

A terra acaba aqui…

Com ela tudo o que eu intento.

 

Às vezes imagino-me embalando:

Um porto, onde começa o meu destino.

Mas isso é só um desatino.

Até quando?

 

……………………

 

Lenha verde no lume,

Em sonho cada sonho se resume.

 

Pedro da Silveira, In “Primeira Voz”, Julho de 1942

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VIDA SOFRIDA

Terça-feira, 30.10.18

Meu pai não sabia ler nem escrever, mas acho que era um sábio. Eu fui dos seus filhos o que mais andei com ele a pé percorrendo não só os campos da Fajã Grande, mas até grande parte da ilha das Flores, de dia e de noite, com os pés descalços, de lés-a-lés. Meus irmãos mais velhos iam ceifar e lavrar os campos e meu pai, nas suas idas pelas vilas e freguesias da ilha, a tratar do que necessitava, às Lajes, à Vila, ao Mosteiro, a Ponta Delgada, levava-me com ele por companhia, apesar de eu ser, ainda, muito pequeno. Durante essas viagens aprendi muito. Foram grandes lições que ainda hoje recordo.

Ele era o filho mais novo de um grande grupo de irmãos. Os que sobreviveram, dado que muitos faleceram em criança, pisgaram-se todos para a América e ele ficou só, a acompanhar e tratar dos pais, já muito velhinhos e de uma irmã deficiente mental. O namoro com a minha mãe sofreu grande oposição por parte da família dela, que orgulhosa e altiva, sempre se opôs ao casamento, pois para além de meu pai ser pobre, entendiam os meus avós que ele só pretendia a filha para o ajudar no trabalho e para lhe tratar dos velhotes e da irmã tolinha. Meu pai chegou a ser impedido de entrar em casa de meus avós maternos. Já depois de casado e por solidariedade, minha mãe também deixou de lá ir. Deixaram de se falar, durante algum tempo. Meu pai não era de ir igreja nem sequer pela desobriga pascal. Isso agravou os desprezos que por ele nutriam.

Casaram e os filhos começaram a aparecer com uma “planificação familiar” de fazer inveja aos métodos mais modernos de controlo da natalidade. Os dois primeiros com um ano de intervalo, os restantes de três em três anos. Eu fui o quarto. Vieram mais dois, depois de mim.

Até à morte da minha mãe meu pai viveu, pobre mas feliz, sustentando os filhos com o pouco que as terras lhe davam e com o leite duma ou duas vacas, mas cuja maior parte tinha que ir para a Cooperativa, a fim de que com o dinheiro resultante do leite vendido, comprasse os produtos que a terra não lhe dava. Era o único dinheiro que entrava em casa, mas e infelizmente, só quando a Cooperativa pagava.

Meu pai, em jovem, desempenhou o papel principal numa peça de teatro feita na freguesia. Alguém lhe “soprou” o texto ao ouvido ou ele estudou-o cuidadosamente. Decorou-o todo com perfeição e apresentou-se em palco, com grande performance e competência. Anos mais tarde, já era eu criança, a mesma peça teatral foi representada por outros actores populares e lembro-me de ouvir dizer, às pessoas mais velhas, que a representação de meu pai teria sido muito melhor do que a do actor que agora representava o mesmo papel. E era uma personagem gago.

Meu pai metia-se na sua vida e não na dos outros, nunca o ouvi falar na vida alheia, nunca teve brigas nem zangas com ninguém, não devia nada nas lojas e comprava apenas o que podia e quando podia. Ensinou-me também que nunca deveria pegar em nada que não fosse meu e que devíamos sempre ser gratos para com as pessoas que nos fazem bem. Ensinou-me até a orientar-me nos matos de noite e com nevoeiro. Basta acariciar uma parede com as mãos, a que tiver mais verdura indica-nos o Norte, porque é a mais húmida, porque o Sol lhe bate menos. Meu pai tinha expressões e ditos interessantíssimos, muitos dos quais, lamentavelmente, esqueci. Quando eu, miúdo, me esquivava ao trabalho, o comentário dele era o seguinte: “Lá estás tu a fugir com o cu à seringa”. Perante um problema que surgia aqui ou acolá, comentava “Estamos no mato sem cordas”. Certa vez um fulano que chegara do Faial, com grande vaidade e ar garboso, contava à Praça, perante todos os que ali estavam e ouviam estupefactos, o que tinha visto na cidade da Horta, misturado com algumas mentiras. O meu progenitor comentou, num aparte: “Muito aprende quem sai desta terra, mesmo que vá só até ao Faial”. Outra vez, ele e um irmão dormiam sentados num botequim. Alguém, no gozo, pôs um caniço – símbolo burlesco de pescar sargos - na mão de cada um e, de seguida, acordou-os, simultaneamente. O meu tio, furioso e enraivecido, levantou-se, barafustou, “preguejou” e recriminou e, depois de partir o caniço e o atirar pelos ares, recolheu a casa. Meu pai, muito calmo e tranquilo, pegou no caniço e, simplesmente, disse com ar de felicidade subtil: “Já que mo deram vou aproveitar para continuar a pescar.” – e continuou a dormir, descansadamente.

Certa vez ao passar à frente da minha casa uma rapariga que ostentava um ar vaidoso e empolgante, meu pai saiu-se com esta quadra, não sei se de improviso ou que ele conhecesse de tempos idos:

Não há coisa como a morte,

Para acabar com a presunção,

Um laço de fita preta,

Sete palmos e um caixão.

O que veio irremediavelmente destruir a vida simples e desprendida dele e nossa foi a morte de minha mãe. Meu pai, além de tudo, acho que tinha um coração de oiro e gostava muito de nós e, após o falecimento da minha progenitora, preocupou-se tanto, connosco que acabou por adoecer, acometido por uma grave doença mental. Eu e meus irmãos, ainda eramos crianças. Assistimos e suportamos as trágicas consequências desse trágico descalabro. A tragédia, a desgraça e o infortúnio, desalmadamente e sem piedade, haviam-nos batido à porta e assolado, terrivelmente, o nosso quotidiano. Ainda ficou quase um mês à espera do Carvalho, a fim de se deslocar para a Terceira, sendo internado na Casa de Saúde de S. Rafael, então popularmente conhecida por “Casa Amarela”. Felizmente curou-se e passado algum tempo regressou às Flores, mas já não era o mesmo.

Alguns anos mais tarde e porque a angústia e a temeridade continuavam a açudar-lhe os dias, meu pai voltou a adoecer, sendo, de novo, internado na Casa de Saúde de S. Rafael, donde nunca mais saiu, até à sua morte, no dia 16 de Janeiro de 1966.

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A CASA DO CHILENO

Domingo, 28.10.18

A “Casa do Chileno” poder-se-ia, na realidade, considerar, na altura em que eu era criança, como o verdadeiro “ex libris”(1) da Fajã Grande.

Situada quase no termo da Via d’Água, à esquerda de quem descia, o deslumbrante e altivo edifício ficava sobranceiro ao caminho, logo a seguir à antiga casa do Senhor Arnaldo, aquela que existia na curva, em frente ao chafariz e que foi derrubada quando da construção da estrada Porto/Ladeira do Pessegueiro, a fim de desfazer e aligeirar aquela enorme curva em L, ali mesmo em frente à casa de José Furtado. O edifício impunha-se aos que por ali passavam, salientando-se entre os pequenos casebres que o rodeavam, ostentando uma imponente sumptuosidade e um soberbo encanto, envolvendo-se num misto de grandiosidade, de mistério e até de sonho.

Habitualmente desabitado, sabia-se que pertencia a um ilustre fajãgrandense que raramente visitava a freguesia e que ainda jovem partira para o Chile, na demanda de sorte e de fortuna, as quais supostamente e a julgar pela grandiosidade e riqueza do edifício, o haviam bafejado. Daí o seu epíteto de “Casa do Chileno”.

A fachada principal tinha três portas uniformemente distribuídas ao nível do piso térreo. A verga da porta central tinha inscrita a presumível data da sua construção - "1884". No piso superior e alinhadas por cima das portadas do inferior, a fachada tinha três vãos: uma janela de peito axial e duas janelas de sacada com guarda em ferro fundido. Lá bem no alto, por cima do restante casario, quase a desafiar em altura a torre da igreja e muito bem centrado, um belo torreão, raridade na freguesia, com duas janelas de sacada geminadas e com varanda comum, rematadas em arco de volta inteira.

A planta da casa era em forma de L correspondendo a fachada lateral esquerda ao braço maior daquela letra, tendo uma porta no piso térreo e outra ao nível do segundo, ao qual se tinha acesso através duma escada exterior, que dava para a cozinha.

A casa do Chileno, como a maioria das da Fajã, era construída em alvenaria de pedra rebocada e pintada de branco, excepto os cunhais, a cornija, as consolas das varandas e as molduras dos vãos. Apenas a fachada principal da torre era em alvenaria de pedra rebocada e caiada, dado que as laterais eram em ripas de madeira pintada de verde. Por sua vez a cobertura era igual à das restantes casas ou seja em telha de aba e canudo com beiral simples e telhão na cumeeira. A torre era rematada por um interessante elemento decorativo em madeira.

As madeiras interiores eram de pinho e dizia-se que era mobilada com luxuosas mobílias e recheada de louças e móveis também de grande valor, a contrastar com a pobreza e miséria da maioria das casa da Fajã Grande, na altura.

(1)“Ex libris” – é uma expressão latina que significa a “marca” ou a característica fundamenal de alguém, de alguma coisa ou lugar. Por exemplo, um dos “ex-libris” da cidade do Rio de Janeiro é a monumental estátua de Cristo-Rei e de Lisboa a Torre de Belém

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PALAVRAS, EXPRESSÕES E DITOS UTILIZADOS NA FAJÃ GRANDE (I)

Quinta-feira, 25.10.18

 

Anamudo – Aquele que não tem medo.

Andar ao deus-dará – Viver irresponsavelmente, sob as ordens de ninguém.

Apanhar sargos – Tontear ou dormitar sentado, deixando cair a cabeça de vez em quando.

Atira-te da roch’ábaixo – Desaparece da minha frente.

Barra – Cama.

Bicho da buraca – Pessoa muito envergonhada.

Bisca malina – Mulher muito má.

Bota sintide – Presta atenção.

Caninos da caixa – Pequena gaveta que existia num dos lados das caixas da roupa e servia para guardar linhas, agulhas, tesouras, dedais, etc.

Deitar as tripas p’la boca fora – Vomitar muito.

Entregar – Proferir o nome do Diabo.

Está muito somenos – Está muito mau tempo ou qualquer outro estado mal.

Estar à mão de semear – Estar a fazer algo que merece um castigo

Estar entre a cruz e a caldeirinha – Estar quase a morrer.

Estar no mato sem cordas – Ter um problema grande e não dispor de meios suficientes para o resolver.

Estar por de trás das raízes do Monchique – Estar perdido ou estar tão longe de algo que se torna impossível alcançar.

Eu me benzo do Coiso-Mau – Expressão de revolta contra algo que se julga errado.

Falquejar – Cortar um pau com uma navalha ou canivete.

Faz trás – Incentivo aos animais bovinos para voltarem no fim de um rego, quando se lavravam os campos, ou noutra situação.

In coire – Completamente nu.

Mulher escoimada – Mulher muito limpa.

Naitigão – Camisa de dormir.

Não parar em ramo verde – Não estar quieto.

Os diabes te levem – Expressão para recriminar  quem fez uma grande asneira.

Pagar com conchas de lapas – Não ter dinheiro para comprar algo.

Pronto pra ir ver os senhores de bengala – Animal bovino, suficientemente nutrido, para ser vendido e embarcado para Lisboa.

Repnicar – Comer pedacinhos de um alimento antes da refeição ser servida.

Ser como as terras do Areal que prometem muito e dão pouco – Prometer muito mas fazer pouco.

Ser da pele do Eira-má – Ser muito mau.

Tá mais à mão – Está mais perto ou está disponível para ser usado.

Ter o diabe no corpe –Ser muito mau.

Tirapuxas - Discussões.

Toca a baixe e/ou toca à riba – Saudação entre duas pessoas, quando passavam uma pela outra, um a descer e o outro a subir.

Toca a descansar – Saudação de alguém que passava por outro ou outros que estavam sentados.

Tremer como varas verdes – Ter muito medo.

Ua grandeza – Grande quantidade.

Ui monços piquenes – As crianças.

Valha-mo nam sei-que-diga. – Expressão usada para indicar grande atrapalhação.

Xisqueiro – Casota do porco, anexa ao curral.

Xou pa trás – Incentivo ao porco ou às galinhas para se afastarem a fim de se lhes poder dar a comida.

 

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CORSÕES DE MILHEIROS E BOIS DE SABUGO

Quarta-feira, 24.10.18

Na Fajã Grande das Flores, como naturalmente em quase todas as freguesias açorianas, no início dos anos cinquenta, não se compravam brinquedos, por duas razões muito simples: primeiro porque não havia dinheiro e, em segundo lugar, rareavam os brinquedos nas tradicionais lojas daqueles tempos.

Assim, excetuando um ou outro automóvel de baquelite ou alguma boneca de loiça que vinham da América muito bem embrulhados nas roupas que traziam as encomendas, éramos nós próprios, crianças de então, que construíamos, por vezes de maneira tosca e rudimentar, todos os nossos brinquedos, a maioria dos quais se baseava ou imitava objetos e utensílios utilizados pelos adultos na sua principal faina quotidiana – a agricultura.

Ora um dos objetos mais imitado na elaboração dos nossos brinquedos era o corsão com que brincávamos em cada dia, em cada hora e em cada minuto. Fazíamos corsões minúsculos com uma rapidez, uma competência e uma agilidade fantásticas. Por vezes fazíamo-los de madeira mas, como esta era rara e mais difícil de trabalhar, utilizávamos habitualmente e como alternativa, as canas do milho. Pegávamos num milheiro ou em dois e cortávamo-los em dois pedacinhos do mesmo tamanho. Depois aguçávamos em forma de proa de navio uma das extremidades de cada um dos pequenos troncos do milho e arranjávamos cinco ou seis “fochos” a fazer de travessas que cravejávamos nos milheiros, formando assim um verdadeiro corsão em miniatura. Faltavam apenas os fueiros, tarefa também muito fácil de concretizar pois bastava apenas fixar mais uns pauzinhos na parte de cima dos milheiros e lá estava o corsão completo. Depois era só carregá-lo com lenha, incensos, ervas, casca de milho, produtos que eram sempre bem presos e amarrados com cabos de espadana e apertados com arrochos, como se de um corção de verdade se tratasse.

E o cabeçalho? Bem o cabeçalho era feito com um fio de espadana bem grosso que se prendia a uma canga, também de espadana com duas laças nas pontas onde se enfiavam dois sabugos a fazer de bois que assim ficavam verdadeiramente “encangados”. E então se conseguíssemos um sabugo vermelho!...

E assim nos entretínhamos horas e horas a brincar, tão felizes e alegres, com estes brinquedos tão simples, apesar da pouca durabilidade de que eram dotados, pois o corção desfazia por completo assim que os milheiros secavam.

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A ANTIGA FREGUESIA DAS FAJÃS DESCRITA PELO PADRE CAMÕES

Segunda-feira, 22.10.18

Continuando a percorrer a ilha de Ponta Delgada para Oeste, segue-se à distância, dizem, de 4 léguas, pouco mais ou menos, a freguesia das Fajãs, de que é orago Nossa Senhora dos Remédios. Te vigário, com o ordenado de 7 moios, 4 alqueires 1/4 8 de trigo e 11$666 reis em dinheiro; cura com 4 moios, 57 alqueires de trigo e 8$000 reis em dinheiro; e tesoureiro, com 1 moio de trigo e 6$000 reis em dinheiro; paga El-Rei à fábrica (da Igreja) 3$000 reis.

Esta freguesia é dividida em 6 povoações que, começando do Norte para o Sul são:

A Ponta da Fajã é a primeira a que se chega de Ponta Delgada, tem "juíz pedoneo" ou da "vintena", com seu escrivão, porteiro, "rendeiro do verde" e jurado, sujeitos à jurisdição de Santa Cruz; os soldados da Ordenança que nela existem são subordinados ao capitão da primeira companhia de Ponta Delgada; há nela 30 fogos onde residem 165 almas, a saber 81 homens e 84 mulheres; tem 50 cabeças de gado bovino, 160 de gado ovino, 40 de gado caprino e 80 porcos; nela existe 1 carpinteiro e 1 fragueiro. Não tem monte algum, pois é situada numa breve planície onde fica eminente uma disforme e altíssima rocha, que excede o dobro da largura da povoação. Dão à dita rocha 300 barças de altura. Esta mesma rocha continua e cerca toda a freguesia e suas povoações, à exceção da Caldeira do Mosteiro, que ficam fora, e para a parte Sul, e finda a dita rocha numa ponta a que chamam o Pontal, para cá da Ponta dos Bredos, bem conhecida nos mapas. Há na localidade 2 casas de telha e nenhum homem calçado. Existe nela um fortezinho muito antigo com uma casinha da guarda e outro chamado "a Mesquita", com uma casinha de guarda.

A Fajã Grande, passada a Ribeira das Casas, onde começa a jurisdição da Vila das Lajes, segue a povoação da Fajã Grande onde há uma ermida da invocação de S. José, na qual, havendo-o sempre os moradores desse lugar e os da Ponta, têm capelão, que lhes diga a missa, aos Domingos e dias de preceito, a quem pagam à sua custa. Isto por não lhes ser possível chegarem à paróquia (da Fajãzinha), principalmente nos meses de inverno, por impedimento da caudalosa Ribeira Grande - que separa aquelas localidades - e que certamente é a mais "brava e furiosa" de todas as ribeiras desta ilha. Desta grande consternação e urgente necessidade, têm feito várias súplicas a Sua Majestade, para lhes dar para lá um cura pároco, mas até aqui não houve decisão sobre este assunto, e a razão, ao que se conjetura, é por não terem chegado aos reais ouvidos de Sua Alteza os seus justíssimos clamores, por falta de agentes. Tem esta povoação da Fajã Grande 136 fogos, onde residem 495 almas, 240 homens e 255 mulheres. Tem "juíz vintenário" com seu escrivão, porteiro, "rendeiro do verde" e jurado, sujeitos à jurisdição da Vila das Lajes.

Tem 25 casas de telha, entre elas a melhor e mais bem edificada de toda a ilha e 12 homens calçados.

A Cuada segue-se sobre uma eminência a terceira povoação da freguesia, quase sobranceira ao mar, na qual há 122 almas - 61 homens e 61 mulheres - 2 casas de telha e nenhum homem calçado.

A Fajãzinha, passada aquela povoação encontra-se logo a Ribeira Grande, que divide a freguesia, como já se disse, e se registou a sua força e impetuosidade que certamente é grande.

Cai a referida ribeira de uma formidável cascata, eminente à freguesia da Fajãzinha, a que dão de altura 200 braças; a ela vêm sucessivamente incorporar-se e ajuntar-se todas as águas da rocha, que serve de demarcação à freguesia, desde Leste a Sudoeste - que vem a ser a Ribeira dos Ferreiros, 4 grotas, sem nome, provenientes da Rocha do Velho, a grota do Enchente, a grota da Santinha, a grota da Laje Negra e a grota da Picada, a engrossam e "enfurecem" tanto que no Inverno, e ainda mesmo, havendo chuvas, de Verão, a fazem inultrapassável. Basta dizer-se que tendo-se feito quase ao fim dela, perto do mar, por dirção do já referido Juíz de fora, Doutor José Gonçalves da Silva, em 1789, uma ponte de pedra - que para a ilha foi uma construção formidável, uma vez que continha 80 palmos de vão, 50 palmos de altura e 30 palmos de largura; era uma ponte muito bem feita, ao uso do Reino. Todavia, houve tal inundação e enchente, no dia 9 de Setembro de 1794, que não só derrubou a dita ponte, como nem sequer ao menos dela ficou o menor vestígio, nem rasto. A referida ribeira, saindo do seu leito natural ao desembocar no mar, deixou um largo areal com mais de 30 braças, uma perda para inestimável para os pobre lavradores que possuíam terras a ela contíguas, que foram todos arrastadas para o mar. Logo além da Ribeira Grande, a uma curta distância, sobre uma pequena eminência, fica a povoação da Fajãzinha, lugar assente da igreja paroquial de toda a freguesia, onde residem vigário e cura, que no princípio já se falou. Tem "juíz vintenário", escrivão, porteiro, "rendeiro do verde" e jurados sujeitos à jurisdição da Vila das Lajes. Há nela 142 fogos, onde residem 505 almas, 250 homens e 255 mulheres.

Há nesta freguesia duas lagoas que produzem belíssimas "eirozes" (ou enguias) e patos bravos ou marrecos. À primeira chamam Poço da Alagoinha e fica ao pé da rocha a Sul-sudoeste; tem uma pedra ao meio, é rasa com a terra e há-de ter 150 braças e a largura 100 braças, pouco mais ou menos. A segunda, a que chamam o Poço da Ribeira do Ferreiro, situa-se ao pé da rocha, onde cai a mesma ribeira a Leste; é também rasa com a terra, e há-de ter pouco mais ou menos 50 braças de comprimento e 30 de largura. Está formada nas três povoações - Fajãzinha, Fajã Grande e Cuada - uma companhia de ordenanças, com 1 capitão, 1 alferes, 5 tenentes, 3 sargentos e 218 soldados.

Já se disse que estas 4 povoações - Ponta, Fajãzinha, Fajã Grande e Cuada - são rodeadas por uma formidável rocha. Esta começa ao Norte e finda ao Lés-Sudoeste, ficando as ditas povoações numa grande profundidade, que configura uma caldeira quebrada, como se faltasse, até ao fundo, a terceira parte da sua circunferência.

A Caldeira. Saindo-se da Fajãzinha para a parte do Lés-Sudoeste por uma íngreme ladeira chamada a Ladeira do Portal, além da conhecida Ponta dos Bredos de que atrás se falou, a uma pequena distância fica uma pequena povoação chamada Caldeira, com 5 fogos, contendo 20 almas, 9 homens e 11 mulheres. Nela há 3 casas de telha e nenhum homem calçado.

Mosteiro, muito pouco para diante, ao Sul, segue-se a povoação do Mosteiro, em que há 31 fogos, nos quais residem 175 almas, 83 homens e 92 mulheres, que fica numa eminência muito alta. Tem 8 casas de telha e nenhum homem calçado. Há nela "juíz vintenário", com seu escrivão, sujeitos à jurisdição da Vila das Lajes. Os soldados da ordenança que há na referida aldeia são subordinados à 2ª companhia da Vila das Lajes. Tem duas ribeiras, uma chamada Ribeira do Mosteiro e a outra designada por Ribeira dos Ladrões, mas que os moradores conhecem como a Ribeira do Fundão, onde acaba a paróquia dos Remédios e começa a de Nossa Senhora do Rosário das Lajes.

Na freguesia dos Remédios, no ano de 1814, casaram 15 casais, nasceram 78 crianças e morreram 44 pessoas.

 

Padre José António Camões in "Memória da Ilha das Flores" (1815-1822) transcrição de Ana Monteiro in FB

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A FESTA DE ESPÍRITO SANTO

Domingo, 21.10.18

Durante toda a semana, quer a que antecedia a festa da Casa de Cima, no domingo de Pentecostes, quer a da Casa de Baixo, no da Trindade, na Fajã Grande das Flores, nos anos cinquenta, cantavam-se, à noite, às terças, quintas e sábados, as Alvoradas.

Um foguete, lançado por um dos cabeças, logo ao anoitecer, indicava que a partir daquele momento a Casa estava aberta. Os que iam chegando aos poucos, após entrar, rezavam por um momento em frente ao altar do Divino, iluminado e enfeitado, onde estava a coroa e, de seguida, sentavam-se em bancos dispostos de forma rectangular, contra as paredes laterais da enorme casa, ou ficavam a conversar pelo meio do amplo salão, enquanto a garotada ia fazendo jogos como o de descobrir um objecto a toque de tambor, o jogo do lenço, o burrinho do Lamé e muitos outros.

À hora marcada e com a casa à cunha, anunciada por um segundo foguete, principiava a Alvorada. Numa fase inicial a cantoria começava no pátio, fora da porta da Casa. De seguida, os foliões, um dos quais tocando tambor e outro, “testos” ou pratos, entravam na Casa, formavam uma roda e iniciavam uma dança típica, durante a qual cantavam,  “Alvorada Santa” e outros cânticos apropriados. Curiosamente e durante a dança, cada um ao passar em frente ao altar, onde estava a coroa, rodopiava sobre si próprio e invertia a sua postura habitual na roda, de modo a ficar, durante os segundos que por ali passava, voltado de rosto para o altar, a fim de que ao andar em frente ao Divino Espírito Santo, não o fizesse de costas voltadas, sinal óbvio do respeito devido à Terceira Pessoa da Santíssima Trindade.

De seguida, o grupo parava, postava-se em frente ao altar e cantava as sete “Ave Marias”, seguindo-se o “Oferecimento” das mesmas, após o qual a Alvora terminava.

Após a cerimónia, a maior parte do povo, sobretudo os mais jovens, permanecia pela noite dentro na Casa, fazendo jogos de roda diversos, entre os quais o do Anel e outros jogos tradicionais em que todos paricipavam. Estes jogos, durante os quais todas as brincadeiras eram permitidas e as manifestações amorosas toleradas, eram uma excelente ocasião de se iniciarem ou até se solidificarem muitos namoricos, noutros lugares e noutros espaços proibidos pelos pais.

Na sexta-feira, antes da festa, de tarde, matava-se o gado. Os cabeças haviam elaborado antecipadamente uma lista com a quantidade de carne que cada mordomo, pertencente ao Império, desejava. Depois de tudo somado, era imperioso apalavrar, de seguida e atempadamente, umas duas ou três reses que perfizessem em quilos o total de carne desejado pelos mordomos.

O gado previamente seleccionado era levado para junto da Casa do Espírito Santo, onde aguardava a organização do cortejo, assim constituído: à frente os animais e a garotada, depois a bandeira branca, as duas vermelhas e a coroa, atrás da qual caminhavam os foliões a cantar, seguidos duma enorme chusma, mais de meia freguesia. Na torre da igreja os sinos em alegres repiques e o estalejar dos foguetes juntavam-se à procissão, que caminhava, lesta, em direcção ao sítio onde gado seria abatido – o Matadouro. Este situava-se no fim da rua da Via  d’Água, já quase no Porto, ali mesmo à beirinha da Baía d’Água, num pequeno rolo que separava o baixio do caminho e no qual havia um nicho apropriado, onde era colocada a coroa, ladeada pelas bandeiras, durante o tempo que demorava a matança, esfola e esquartejamento dos animais. Quanto às vísceras, o fígado, o coração e a língua ficavam para os matadores, com os quais normalmente guiavam uma apetitosa “caçoila”, o sangue era dado a quem o quisesse para fazer um saboroso sarapatel, assim como o bucho com o qual, depois de muito bem lavadinho, se fazia dobrada. Os bofes e  a cabeça eram dados aos cães e as tripas atiradas ao mar, para gáudio dos peixinhos.

Terminadas todas estas operações, o cortejo regressava à Casa. A carne das rezes era espetada pelos tendões em grossos paus, de palanca, transportados por homens, aos ombros, suspensa, ainda a escorrer os últimos pingos de sangue, enquanto os sinos, os foguetes e o cantar dos foliões, as pessoas, a coroa e as bandeiras enchiam as ruas de som, de cores, de desejos, de festa e de alegria. Colocada no chão da Casa, devidamente forrado com folhas de cana roca, a carne ficava ali a arejar e a aguardar que as mãos experientes de um grupo de homens, durante a noite, a desmanchasse e cortasse aos pedaços e com eles fizessem montinhos, de acordo com os pedidos formulados pelos mordomos e outros para os pobres, escrevendo num papelinho que lhe colocavam em cima, o nome do destinatário.

No sábado de tarde distribuía-se a carne pelas casas dos mordomos que a haviam solicitado na segunda-feira de Páscoa, anterior. Nesse dia, as duas coroas em conjunto e acompanhadas pelos cabeças e foliões de ambas as Casas, haviam percorrido todas as moradias da Fajã, de um ponta à outra, a fim de “atestar” os mordomos de cada uma, ou seja, saber de qual das casas pretendiam a carne, se apenas de uma ou das duas, assim como a quantidade que desejavam.

A cerimónia iniciava-se pela manhã, com a bênção da carne e do pão, este cozido por promessas de alguns dos mordomos e que seria distribuído pelos pobres juntamente com alguma carne. O pároco dirigia-se para a Casa do Espírito Santo de sobrepeliz e estola branca, acompanhado pelo sacristão com a caldeirinha e o hissope. Colocava-se em frente aos montículos de carne e às pilhas de pão, aspergia-os com o hissope, rezava algumas orações em latim e depois de fazer um cruz sobre tudo e todos, retirava-se.

Competia às crianças da freguesia, da parte da tarde, levar carne a casa dos mordomos. Munidas de pequenas cestinhas ou travessas, aos pares e em constante rodopio, uns levando o pão e a carne aos pobres e outros a carne aos mordomos, de acordo com o nome indicado no papelinho e que um dos cabeças, à medida que partiam, ia riscando no rol elaborado na 2º feira de Páscoa. Acompanhavam-nas os foliões, as bandeiras, a coroa e algumas pessoas. A coroa entrava nas casas de todos os mordomos, juntamente com as oferendas, para que cada elemento da família beijasse a pombinha, símbolo do Divino Espírito Santo, encravada numa das extremidades do ceptro.

A distribuição iniciava-se no cimo da Assomada. Seguia-se o Alagoeiro e a Fontinha, o Caminho de Baixo, as Courelas, a Rua Direita, a Rua Nova, a Tronqueira e terminava, já ao início da tarde, no fim da Via d’Água. Os sinos tocavam durante todo o dia, logo de manhã durante a bênção e pela tarde fora, enquanto demorava a distribuição, alternando o seu alegre repicar com os sons do tambor e dos testos e com o cantar dos foliões.

Meu tio era o sacristão, cargo a que estava anexo o de sineiro. A sua pouca disponibilidade para um e outro cargo, obrigara o pároco à contratação de um ajudante, tendo a escolha recaído sobre mim. Por isso me iniciei cedo no papaguear do latim da liturgia e no tocar dos sinos, tarefa esta em que me orgulhava e ufanava, pois tocava-os como ninguém. Do alto na sineira via e ouvia o canto dos foliões acompanhados pelo tambor e pelos testos. Por isso, assim que eles paravam, iniciava logo um harmonioso e prolongado repique que para além de permitir um bom descanso aos foliões, fazia com que o Divino Espírito Santo não andasse a circular pelas ruas e pelas casas, um momento que fosse, sem ser acompanhado por música: ou pela do cantar dos foliões ou pela do toque dos sinos.

No domingo realizava-se a verdadeira festa do Espírito Santo. De manhã, depois de aberta pelos cabeças e com o tradicional foguete, os mordomos e outras pessoas afluíam à casa, onde de imediato a garotada, enquanto esperava pela saída do cortejo, organizada os jogos e as brincadeiras habituais. À hora marcada organizava-se um cortejo, com destino igreja paroquial, enquanto os sinos repicavam e os foguetes estalejavam no ar e em abundância, ecoando nos outeiros e rochas circundantes. Quanto mais foguetes melhor era à festa e, neste aspecto a Casa de Baixo ultrapassava de longe a de cima, pois para além do fogo preso, à noite, ainda se dava ao luxo de, em pleno arraial, disparar um tiro de canhão. Como era habitual, o cortejo abria com a bandeira branca, depois as vermelhas transportadas por meninas e a seguir a coroa levada também por uma menina, ladeada por outras transportando o ceptro e flores, vestidas com trajes adequados e cercadas por outras quatro formando um quadrado com as varas. Seguiam-se os foliões, os mordomos e uma boa parte do povo. O restante esperava, no adro, a chegada à igreja, onde o pároco, como nos domingos anteriores, embora com mais solenidade também aguardava o cortejo e a coroa, à porta do Guarda-Vento.

De seguida, entravam todos na igreja, ao som do “Veni Creator Spiritus ”. A Missa era cantada e terminava com a bênção e a incensação da coroa, enquanto se cantava o  “Alva Pomba”. O cortejo reorganizava-se novamente e regressava à Casa, fazendo o trajecto inverso.

Todos voltavam às suas casas para o jantar, a fim de saborearem a carne que cada um havia cozinhado a seu gosto. Na véspera, a carne havia sido temperada e posta em “vinha-d’alhos”. De manhã era “rosada” em banha de porco e depois guisado em caldeirões de ferro, ficando prontinha antes da missa. A refeição era acompanhada normalmente com inhames e pão de trigo, havendo também, quase sempre, pão doce.

De tarde o povo juntava-se de novo na Casa, para as arrematações, para os cantares, para os jogos e, sobretudo, para o convívio. As arrematações resultavam das promessas que muitos mordomos. Eram feitas de massa igual à do pão doce, mas representando uma parte do corpo, geralmente pés, mãos, braços ou cabeça, que haviam sofrido alguma maleita, ou animais, geralmente suínos ou bovinos, que haviam estado doentes mas que tinham sido curados, por graça do Divino Espírito Santo, a quem agora se agradecia. Outras pessoas ofereciam a massa, mas simplesmente na sua forma habitual de pão. Muitos mordomos que haviam feito promessas mas não tinham conseguido cozer pão, arrematavam uma oferenda semelhante à que haviam prometido e ofereciam-na, a fim de que fosse novamente arrematada.

Como era grande a quantidade de massa oferecida, muita não era arrematada. Era partida às fatias, colocada em açafates e distribuída por todos juntamente com cálices de licor ou de  “vinho fino”.

Todo o pão, tanto o das promessas como o doce e o de trigo, que sobrava era distribuído pelos pobres.

A festa prolongava-se até ao anoitecer.

No dia da festa, à tardinha, realizavam-se as sortes, ou seja, a escolha e indicação dos nomes dos dois cabeças que, no ano seguinte, seriam os responsáveis pela preparação e organização da festa, uma vez que cada mandato, regra geral, durava apenas um ano. Os cabeças eram dois, normalmente designados por primeiro e segundo, sendo que o primeiro assumia as funções de líder.

Da lista dos mordomos, os cabeças em exercício, por sua livre iniciativa, escolhiam nove nomes que liam bem alto perante todo o povo, que com o seu aplauso, aprovava tais escolhas. De seguida escreviam-nos, um por um, num papelinho que dobravam muito bem para que se não visse o nome que lá estava escrito e colocavam-nos todos dentro da coroa do Divino Espírito Santo. De seguida escolhiam uma criança de tenra idade e pediam-lhe que tirasse da coroa dois bilhetinhos.

Fazia-se um enorme e profundo silêncio na sala e todos aguardavam com grande expectativa os nomes sorteados e que, dentro de momentos, iam ser conhecidos. Um dos cabeças, muito devagar e com estranha solenidade, abria o papel, fazia uma pausa, e de uma golfada e em voz bem alta, anunciava o nome sorteado. Uma enorme e estrondosa ovação se fazia sentir por toda à casa, seguida por uma grande salva de palmas e um imediato atirar de foguetes, saudando o novo primeiro cabeça, para o ano seguinte. Idêntico procedimento se verificava, quando era tirado e lido o outro nome que indicava quem seria o segundo cabeça.

Mas nem sempre assim acontecia. Por vezes, quando os mordomos entendiam que a festa tinha sido boa, graças à brilhante acção e ao profícuo trabalho daqueles cabeças, tentavam, umas vezes com sucesso outras não, cobri-los com a bandeira vermelha. Se o conseguissem fazer, antes de serem lidos dos dois nomes, as sortes paravam de imediato e seriam eles os cabeças, no ano seguinte. Daí que por vezes se verificassem interessantíssimas tentativas de “ataques e fugas” entre os mordomos que pretendiam cobrir os cabeças para que continuassem e estes que permaneciam de olhos bem abertos e muito atentos para fugirem à cobertura e assim se libertarem de tão trabalhoso e imponente cargo.

A festa terminava, já lusco-fusco, com um novo e último cortejo com a coroa, as bandeiras, os foliões e o povo que se organizava e, partindo da Casa de Espírito Santo, se dirigia às casa de ambos os novos cabeças a fim de lhes dar conhecimento oficial e entregar-lhes “as sortes”.

Entre as festas de Espírito Santo da Casa de Cima e da Casa de Baixo havia grande rivalidade e até alguma competição, pois cada qual se esforçava por fazer uma festa melhor do que a outra. A Casa de Cima, da qual meu pai foi sempre mordomo, tinha contra si um senão: é que fazia sempre a festa, no próprio domingo do Pentecostes e a de Baixo no domingo seguinte, ou seja no da Trindade, o que obviamente lhe concedia alguma vantagem ou favoritismo.

Interessante, no entanto, é que toda esta rivalidade era salutar e respeitada. Basta recordar que as duas coroas em conjunto e acompanhadas pelos cabeças, pelos foliões e por muitos adeptos de ambas as Casas, percorriam em conjunto e lado a lado todas as moradias da Fajã, de um ponta à outra, afim de, em cada ano, “atestar” os mordomos de cada uma, ou seja, saber de qual das Casas pretendiam a carne e a quantidade desejada, por altura da festa. Tudo isto era realizado no maior e mais salutar espírito de colaboração.

No entanto era opinião generalizada e quase unânime de que a festa da Casa de Baixo ultrapassava de longe a da Casa de Cima: um cortejo mais solene, as meninas que levavam a coroa mais bem vestidas, pois os pais eram mais ricos, mais fogo, incluindo fogo preso à noite e, sobretudo, pelo tiro disparado pelo canhão, em pleno arraial, a meio da tarde do domingo e pelo qual todos esperaram com ansiedade. Simplesmente espectacular!

A origem do dito cujo era desconhecida, embora se cuidasse que tivesse, outrora, sido recolhido na costa, onde por vezes vinham parar muitos restos e objectos de navios naufragados. O canhão era uma enorme boca de fogo de artilharia que estava montado sobre uma carreta e que consistia basicamente num tubo fechado numa das extremidades e dentro do qual, através da outra, se ia metendo pólvora, papelão e outro entulho, o qual era muito bem batido e calcado com uma soquete, de forma a ficar compacto e simular uma espécie de projéctil, que, depois de pronto, era incendiado através do lume que dentro dele se introduzia por meio de um rastilho que atravessava um pequeno orifício na parte superior da grossa parede do tubo. O canhão era colocado sobre o chafariz que existia junto à empena Sul da Casa, do lado do altar. Enquanto se preparava o material, a rua Direita e os caminhos e pátios ao redor enchiam-se, para apreciar aquele grandioso e imponente momento da festa. Uma vez tudo preparado, todos se afastavam, enquanto um homem, o mais “anamudo” e expedito, largava lume ao rastilho, afastando-se logo em grande correia. O rastilho ia ardendo lentamente até fazer chegar o lume ao interior do tubo e incendiar a pólvora ali armazenada, provocando uma enorme explosão, projectando a grande distância aquele entulho transformado em bala e provocando, simultaneamente, um grande estrondo, que alguns segundos depois se repetia em eco, na Rocha das Águas.

Era a alegria total! Um dos momentos mais altos e mais emocionantes da festa.

Conta-se ainda hoje, que num determinado ano, alguém, de propósito ou não, no final da operação de batimento do entulho, se esqueceu de tirar o soquete, sendo este projectado juntamente com a bala e encontrado, dias depois, numa terra lá para as bandas do Mimoio, já próximo da Ribeira, o que permitiu, assim, esclarecer as duvidas que existiam sobre o alcance daquela antiga arma de guerra, transformada, na altura, em canhão  do Espírito Santo.

 

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publicado por picodavigia2 às 00:05

SE NÃO FOSSE O BRASILEIRO

Sábado, 20.10.18

As primeiras aulas de cada ano lectivo destinavam-se, geralmente, ao conhecimento recíproco dos alunos e do professor, o qual, no fim do tempo indicado no horário e no espaço que lhe era reservado, gatafunhava no livro do ponto: “Apresentação professor/aluno”. No entanto, alguns professores, sobretudo os que consideravam aquela tarefa precursora de um eficiente relacionamento pedagógico que decerto havia de reflectir-se positivamente na aprendizagem dos alunos durante os três longos períodos lectivos, dedicavam-lhe mais uma aula, registando, desta feita no livro de ponto: “Apresentação aluno/professor”. Outros, com a denodada intenção de fazer “render o peixe”, chegavam a prolongar a referida tarefa por uma terceira aula. Neste caso, porque o número de alunos por turma era bastante elevado, muito simplesmente escreviam no dito livro:”Continuação da aula anterior”.

No ano do meu quadragésimo quinto aniversário, numa dessas aulas - confesso que geralmente dedicava àquela tarefa apenas  uma aula - ao apresentar-me, esqueci-me de referir um dado que os alunos consideravam importante – a idade. Não me perdoaram o olvido. Foi um garoto de olhos vivos e ar de espertalhote, sentado na fila da frente, que me exprobrou de imediato:

- E a idade?! Esqueceu-se da idade. Que idade é que o “Setô” tem?

Lamentei o meu imperdoável esquecimento. Depois, como que a querer recompensá-lo pela sua atenção e perspicácia, desafiei-o:

- Olha lá! Que idade é que achas que eu tenho?

O Rui, era assim que se chamava o arguto, olhou para mim de alto abaixo, avaliou-me com denodado rigor e atirou sem hesitação:

- Quarenta! Aposto que “Setô” só tem quarenta anos.

Fiquei lisonjeado mas, com a maior das inocências, retorqui:

- Mais!... Tenho mais…

Eis senão quando, lá do fundo da sala, um sonso mas bargante mocetão levantou-se e, de rompante, antes que alguém alvitrasse alguma alternativa mais plausível, gritou exasperadamente:

- Cinquenta! Cinquenta!

Fiquei perplexo. Eram cinco a mais. Mas já que me dava cinquenta, decidi continuar, com um misto de expectativa e jocosidade, aquela espécie de leilão pedagógico que ali se iniciava, a fim de tentar descobrir até onde a minha aparência anatómica me poderia levar, perante o inocente mas sincero julgamento dos meus jovens interlocutores. Por isso, em ar de desafio, de maneira que sentissem que eu estava a falar a sério e não descortinassem a minha perplexidade, insisti:

- Mais… Mais…

Uma miúda, tímida, hesitante e como que a arrepender-se a meio da conversa, lá disse:

- Cinquenta e… três?

Logo uma outra, sentada ao seu lado, muito lesta a corrigi-la:

 - Cinquenta e cinco.

Como eu continuasse a insistir no “mais e mais” de forma aparentemente convicta, a fasquia foi subindo assustadoramente. Ultrapassou os sessenta, sessenta e cinco, sessenta e seis, sessenta e oito e fixou-se, provisoriamente, nos setenta.

Confesso que me arrepiei dos pés à cabeça, ao mesmo tempo que me arrependia de ter provocado semelhante imbróglio, do qual eu era obviamente o culpado número um. Temia, seriamente, que aquilo não parasse por ali…

Foi então que um brasileiro, o único que havia na sala, levantou o braço e pediu autorização para falar. Como lhe acenasse afirmativamente, ele, com um misto de seriedade, de convicção e de certeza, pôs, finalmente, a devida água na fervura, esclarecendo definitivamente a amargosa e desconfortante trapalhada em que eu, minutos antes, me havia metido:

- Puxa, professor! Não pode ser! Você está a mangar co’a gente. Então meu avô tem sessenta e cinco e você parece muito mais novo do que ele.

 

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publicado por picodavigia2 às 00:06

VACAS DE FAVA E PORQUINHOS DE BATATA-DOCE

Sexta-feira, 19.10.18

Não será prolixo, nem muito menos cansativo repetir-se que na longínqua década de cinquenta, ali na Fajã Grande, ora protegidos pela alta Rocha dos ventos e dos temporais, ora a levar com as tempestades e maresias trazidas pelos ventos do Norte e do Oeste, num e noutro caso, consequentemente, impedidos de trabalhar e com tempo para a brincadeira, éramos nós próprios que, geralmente, construíamos os nossos brinquedos, aproveitando tudo o que tínhamos à mão e que para tal fosse adequado. E verdade é que geralmente o fazíamos, com muita imaginação, perícia e performance. Além disso, idealizava-se a construção dos nossos brinquedos no que fazia parte do nosso quotidiano e no dos nossos progenitores.

Ora as vacas e os porcos eram animais que, para além de presentes no nosso dia-a-dia, constituíam uma espécie de epicentro de toda a actividade laboral, diária, da maioria dos habitantes da Fajã Grande. Por isso e naturalmente era relacionada com essa actividade que arquitectávamos grande parte das nossas brincadeiras e era também ela que delineava os limites da nossa imaginação, configurava a nossa criatividade e como que se personificava na maioria dos nossos brinquedos. Entre estes tinham lugar de destaque as vacas feitas com as vagens das favas e os porquinhos feitos com batatas-doces.

As vacas de fava eram construídas geralmente no tempo em que o gado andava no “oitono”, ou seja, durante os meses da Primavera. À tardinha, enquanto os nossos progenitores e os outros homens, agrupados em função das proximidades das terras onde tinham o gado amarrado à estaca, aguardavam, em amena cavaqueira, a hora da ordenha e enquanto os animais ruminavam a última “cordada”, ou porque as houvesse ali por perto ou porque as fôssemos procurar mais além, apanhávamos algumas vagens de fava, escolhendo as mais compridas e grossas e as que julgávamos de maior beleza estética. Depois arranjávamos quatro “fochos”, cortávamo-los todos do mesmo tamanho e “falquejávamo-los” numa das extremidades. Eram essas extremidades que depois espetávamos no bordo mais côncavo da fava ou seja do lado em que o pé da mesma se curvava, de maneira a simular o focinho do animal, enquanto os pauzinhos espetados representavam as mãos e os pés. Depois descascávamos uma outra fava, escolhíamos um grão que prendíamos entre as pernas da vaca recém-criada, a fazer de “mojo”, e cujo tamanho variava consoante queríamos uma vaca acabadinha de parir ou uma gueixa alfeira. Aos bois era-lhes espetado um pequeno “focho” na barriga a imitar o falo. Finalmente dois “fochos” no lado da fava que representava a cabeça e estava um animal perfeito, com o qual brincávamos durante alguns dias apenas, pois as favas tinham um prazo de validade bastante limitado.

Por sua vez os porcos com que também gostávamos de brincar, eram feitos de batata-doce, a qual, na altura, abundava na Fajã. Da mesma forma escolhíamos criteriosamente a bata mais redondinha, rechonchuda e que considerávamos mais parecida com o corpo de um suíno. Quatro “fochos”, desta feita mais pequenos e mais grossos do que os das vacas de fava, transformavam-se nos pés e nas mãos do suíno enquanto outros dois mais pequeninos, espetados do lado contrário simulavam-lhe as orelhas. E aí estava um porco perfeito. Depois era criá-lo, matá-lo e até, por vezes comê-lo, porque na realidade muitas vezes, naqueles tempos, até comíamos batata-doce crua.

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O BURRINHO DO LAMÉ

Quinta-feira, 18.10.18

Muitas eram as brincadeiras e os jogos, individuais e colectivos, que fazíamos em criança, na Fajã Grande, sobretudo para ocupar da melhor forma as tardes de domingos e feriados.

No top dos jogos colectivos figurava “O Burrinho do Lamé”. Bastava que alguém convocasse a malta miúda e era uma correria louca e imediata para o adro da Casa do Espírito Santo, local estrategicamente apropriado para tal: - Vamos brincar ao Burrinho do Lamé.

O jogo em si era simples e fácil, tendo como objectivo principal que todos os participantes evitassem, da melhor e mais astuta forma possível, figurar como burro, durante o jogo.

Os participantes, em número indeterminado, sentavam-se todos na soleira da porta e degraus circundantes, enquanto o líder do grupo, que orientava o jogo, ocupava um lugar numa banqueta que havia no lado oposto, depois de escolher quem ele muito bem entendesse para figurar de burrinho no início do jogo. Vergava-lhe então a cabeça sobre os seus joelhos, tapava-lhe os olhos com as suas próprias mãos, colocando-lhe de seguida o traseiro em condições de levar uma pequena palmada. Do outro lado alguém se levantava, normalmente por indicação do líder (porque todos queriam vir) e vinha bater ao de leve no rabiosque do suposto burrinho, voltando de seguida ao seu lugar, sem ser visto por aquele. Destapava-se o burrinho que de imediato era obrigado, a fim de perder o seu ocasional estatuto de asno, a tentar identificar o agressor. Pegava-lhe então às cavalitas, não fizesse ele papel de burro, apresentando a sua carga ao líder, que o interrogava do seguinte modo:

- O Burrinho donde vêm?

- Venho do Lamé, - respondia o burro.

Se tivesse acertado no seu agressor, este passaria de imediato a fazer de burro, enquanto o chefe confirmava:

- Deita cá que é.

Se não acertasse ouvia: - Vai por lá que não é. – e continuaria, assim carregadinho para lá e para cá  até encontrar o agressor, o que por vezes se tornava muito difícil.

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O ROGAS

Quarta-feira, 17.10.18

O Rogas era o homem mais rude e bisbórrias da aldeia. Nasceu sem saber quem era o pai. Abandonado, mais tarde, pela mãe, deambulou, sem destino, até que o Cabral o apanhou, vendo nele mão-de-obra gratuita. Não se enganara, o mariola. O moço, embora raquítico e franzino vinha mesmo a calhar. Deixá-lo vingar e serviria perfeitamente para as lides agrárias, quer tratando de leiras e courelas onde florescia o trigo, a aveia e os legumes, quer pastoreando o gado nas encostas e barrocais da serra, enquanto ele, Cabral, se reservava exclusivamente às tarefas comerciais, no execrável e hediondo botequim que herdara do sogro, o qual profligava dia após dia.

Foi, pois, um investimento razoável, o do Cabral. É que o tratante, na ânsia de enriquecer, tornara-se sovina e larápio. Não havia tostão que lhe saísse do bolso. No botequim vendia de tudo: o autorizado e o não permitido, o gamado e o obtido na candonga. Além disso, reinavam mixórdias e salsadas, entre pesos adulterados e medidas falseadas. Como era profícuo em falta de escrúpulos, a contratação do moço veio mesmo a calhar e estava facilitada, pois o garraio era pouco exigente, contentando-se com cama e mesa, prescindindo da roupa lavada.

O moço, no início, adaptou-se servil e perfeitamente ao trabalho. Levantava-se noite escura, levava uma côdea de pão e um naco de queijo e regressava ao lusco-que-fusco, com cada tarefa eximiamente cumprida. Não havia vento, chuvada, procela, nem muito menos escola que o poupasse e os campos do Cabral floresciam como nunca, enquanto as falcatruas, no botequim proliferavam assim como crescia o pecúlio no cofre.

O Rogas cresceu e tornou-se homem. O empenho desmesurado que colocava nas lides agrícolas impediam-no de se aventurar nas extravagâncias duma juventude fogosa e trivial. Nem domingos, festas, folguedos ou flostrias. Namoro, apenas passageiro. À cidade viera apenas uma vez. Foi para se inscrever no serviço militar do qual, por influências interesseiras do Cabral, foi dispensado. É que o Rogas, forçado às exigências do biltre, via-se obrigado a abdicar de tudo. Não possuía nada, nem coisa nenhuma. No entanto, com o rolar do tempo, foi-se apercebendo das injustiças de que era vítima e entendeu a promiscuidade que o rodeava e que singrava nos negócios e nas atitudes quotidianas do seu amo. Daí ao grito de libertação foi um ar. Continuar a ser explorado por aquele vigarista, aldrabão e gatuno é que não. O somítico nunca lhe dera uma folga, nem sequer um tostão.

Saiu, pois, do Cabral, pese embora desconhecesse o seu destino. Era certo porém que ninguém aceitaria como fâmulo um embusteiro embalado e formado na doutrina intrujona do Cabral.

Assim deambulou, algum tempo, sem dinheiro e sem destino. O primeiro dia foi de jejum e na primeira noite teve como abrigo as ombreiras da Igreja Matriz. Na noite seguinte, porém, foi despejado dali. Cuidando o zeloso sacristão que tal presença punha em risco a dignidade e decência do templo, escorraçou-o sem dó nem piedade. Restou-lhe como refúgio um casebre à porta de entrada do cemitério.

Nas primeiras noites, escuras como breu, sentiu alguns arrepios. Mas vieram, de seguida, as noites de lua cheia e, com elas, a adaptação a tão tétrico habitáculo.

A comida procurou-a por esmola. Pesava contra ele a malvadez e a sovinice do Cabral, com o qual agora como que era identificado. Por isso, vezes sem conta, lhe atiravam à cara:

- Vai pedir a quem te explorou!

Granjeara, sem proveito, a fama desprezível do amo. Agora, isolado no meio de mortos e sepulturas, tornava-se cada vez mais rude, assumindo, além disso, um ar de marginal. Sobre ele despejava-se em catadupa abandono e desinteresse. A roupa, sempre a mesma, não via água há meses e, consubstanciada com a barba por fazer e com o cabelo por pentear, atribuía-lhe, inevitavelmente, um perfeito ar de vagabundo, que levava uns a afastarem-se e outros a não lhe manifestarem qualquer auxílio.

Apenas o coveiro lhe dedicava alguma atenção e cuidados, partilhando com ele palavras e alimentos. Porém, a sua morte, tempos depois, redobrou-lhe a solidão e o isolamento, mas fez com que lhe surgissem novas perspectivas É que não havia, na aldeia, candidatos à vagatura. Por isso se generalizou a sentença: - “O Rogas que vá abrindo as sepulturas.”

Teve que aceitar e a primeira cova que abriu foi a do seu antecessor, assumindo o cargo, com dignidade, sonhando que, um dia, haveria de acalcar o sovina do Cabral.

 

***

 

O Dr Assumido Paixão ocupava, desde a morte do pai, um sumptuoso palácio edificado no centro da aldeia. Era um magnífico e gigantesco edifício, com jardim e grandes escadarias, construído muitos anos antes. O Dr Assumido, que agora dava continuidade às lides agrárias e aos negócios que herdara do avô, tinha uma filha, Isaura. Jovem, bela, crescera isolada entre as grossas paredes e os altos portais de ferro do palácio, pouco conhecedora do mundo que a rodeava. Partira muito nova para Lisboa, para estudar. Regressava à aldeia, apenas nas férias, desconhecendo quase na íntegra, lugares, costumes e pessoas. É que, sem parentes ou amigos, isolava-se no interior do palácio, percorrendo o jardim, contemplando as obras de arte e as espécies botânicas que por ali singravam, graças ao bom gosto artístico e ao amor à natureza do vovô Carmo.

Isaura acabava de terminar mais um ano lectivo, o último antes de entrar para Direito, quando recebeu a notícia do trágico acidente em que morreram o pai e a mãe. Regressou rapidamente à aldeia entre prantos e lamentos.

Aprontou-se o funeral. O Rogas, com trabalho redobrado, maldisse a sua sorte.

O cortejo fúnebre entrou, a passos lentos no cemitério. Atrás dos féretros, Isaura, vestida de negro, era a imagem da dor e do desalento. Uma pequena multidão seguia-a, partilhando o infortúnio e a tristeza.

Terminadas as orações fúnebres a maioria dos acompanhantes retirou-se. Isaura, abandonada ao seu destino, trémula e insegura, lançava-se ora sobre um ora sobre outro dos caixões que jaziam sobre a terra calcada pelos pés dos circundantes. Dos seus olhos rolavam lágrimas de dor e desânimo. Espelhava, no rosto a marca terrificante do infortúnio. De repente, o seu corpo franzino, perdendo o vigor, balançou e caiu por terra.

O Rogas não hesitou. Desde há muito que a sua atenção se fixara naquela jovem dolente e amargurada, despertando nele complacência e compreensão. O amor atrofiada no seu peito desde criança a quando do abandono maternal e a compaixão adormecida desde as sevícias e abusos do Cabral, como que renasceram, naquele momento, explodindo fleumaticamente.

Dirigiu-se para junto da jovem e pegando-lhe nas mãos acariciou-lhe tímida mas carinhosamente o rosto pálido. Alguns circundantes mais chegados a Isaura ainda o tentaram afastar aquele homem sujo e miserável mas sem eficácia. Ela, abrindo os olhos, sorriu-lhe, aceitando os eflúvios carinhosos que emanavam daquele ser até então emocionalmente atrofiado.

E do rosto enegrecido e fleumático do Rogas, rolaram lágrimas, muitas lágrimas de partilha da dor, que perfurando a barba negra, se despegaram do rosto e caindo no chão se misturaram com o dolente sofrimento de Isaura. Pela primeira vez o Rogas chorou!...

A manhã seguinte surgiu cinzenta e enevoada. Entre os dois montes de terra fresca, cobertos de flores e fitas roxas, Isaura ajoelhada orava.

O Rogas aproximou-se. Nem uma palavra... O seu olhar, porém, revelava uma compreensão infinita e uma complacência sem limites. Ajoelhou-se ao lado... Orou também e chorou de novo.

As manhãs repetiram-se. Quando ela entrava, o Rogas, disponibilizando carinho e compaixão, já estava junto às sepulturas, sobre as quais as flores amareleciam.

Passaram-se dias, passaram-se meses. Entre muitas hesitações, Isaura decidiu continuar a manutenção do palácio, de que agora era proprietária, as lides agrárias e os negócios do pai. Parentes, amigos e vizinhos davam conselhos e ofereciam préstimos. Isaura, apercebendo-se de intervenções descaradamente interesseiras, que contracenavam, na sua mente, com a imagem simples daquele homem que a acompanhara no cemitério, ia protelando decisões. Não esquecia a imagem do homem pobre e rude, que, sem a conhecer, se colocara humildemente a seu lado, partilhando a sua dor, oferecendo-lhe compaixão...

Estranhamente tomou uma decisão – aquele homem seria o seu capataz. Depois de o preparar devidamente, confiar-lhe-ia a gerência não apenas do palácio, mas de todos os seus bens e negócios, libertando-o da miséria e da rudez.

O Rogas recusou. O que lhe oferecia era um absurdo. Isaura ultrapassou todos os obstáculos que ele lhe contrapôs. No início ela ajudá-lo-ia, preparando-o devidamente.

E preparou-o. O Rogas aceitou, transformou-se radicalmente, depressa se integrando, com grande dedicação e interesse, nos negócios e bens de sua ama.

Passaram os anos. A doutora Isaura regressou à aldeia licenciada em Direito. Assumiu não exercer a advocacia, sistematicamente e por profissão. Como, no entanto, muitas pessoas, sobretudo as mais pobres, se dirigissem a ela para resolver os mais diversos assuntos, sempre com auxílio e colaboração do senhor Rogas, cedo se espalhou, pela aldeia, a fama da sua eficiência e a excelência das suas capacidades. Tais qualidades, aliadas ao facto de fornecer os seus serviços gratuitamente, fizeram com que o palácio fosse sistematicamente procurado para que a senhora doutora resolvesse os assuntos mais complicados e as questões mais inverosímeis, sempre por intercessão do senhor Rogas.

Certa noite, aproximou-se do portão, um vulto negro de mulher, embrulhado num grosso xaile, que lhe cobria todo o corpo. Tocou ansiosamente a campainha. Como habitualmente, o Rogas veio abrir. Era ele que levava sempre os recados ou as súplicas que julgasse dignas de compaixão, à senhora doutora.

O vulto, ao aproximar-se, retirou o xaile descobrindo o rosto choroso. O Rogas estremeceu. Era a mulher do Cabral. O peito encheu-se-lhe de cólera e de raiva. A mulher, porém, perdida na escuridão da noite, sem se aperceber de que era ele, suplicava incessantemente:

- Peça à senhora doutora que liberte o meu homem! Ai, a senhora que liberte o meu homem, por alma dos seus paizinhos.

O Rogas, sem se dar a conhecer, tremulamente indagou:

- O que se passa? Porque prenderam o seu marido?

A mulher explicou que o seu homem tinha sido preso, junto à fronteira injustamente, por engano, sem ter feito nada. Apenas andava a tratar de uns negócios, nada de contrabando, não senhor, que o seu homem não era desses, que podiam confiar nele e que só uma palavrinha da senhora doutora o libertaria...

O Rogas ouviu-a atentamente.

Passados dois dias, o Cabral foi libertado.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

O REGRESSO DA MARIANA

Segunda-feira, 15.10.18

Era uma vez uma casa pobre, humilde, modesta e muito antiga. As paredes eram de um castanho amarelado, de tal maneira despidas de cal que deixavam ver os pedacinhos de xisto com que haviam sido construídas e que, semelhantes a tabuinhas, se sobrepunham e entrelaçavam uns nos outros, em camadas simétricas e rendilhadas que iam do chão ao telhado e se prolongavam ao longo dos muros e paredes circundantes. Tinha um aspecto muito tosco e rústico, com portadas de madeira carcomida pelo tempo, sem grandes vidraças e com dois andares. No rés-do-chão ficavam as lojas de arrumos, uma adega muito pequenina, a cozinha e a retrete. O primeiro piso, a que se tinha acesso apenas por uns degraus exteriores também de xisto e ladeados por um corrimão de ferro enferrujado, era constituído por uma sala e dois quartos.

Nessa casa morava Mariana, com os pais e um irmão mais novo, o Zezito.

A casa ficava perto de um rio que se chamava Ave. Era um rio de águas límpidas, cristalinas e azuladas, repletas de uma imensidade de barbos, carpas, bogas e outros pequenos peixes que se movimentavam em loucas correrias, em constantes rodopios e em simulados ziguezagues. O rio deslizava calma e suavemente, atravessando uma enorme planície onde, de um lado e outro das suas margens, povoadas de azenhas e moinhos, se acomodavam terrenos divididos por beiradas de amieiros, choupos, castanheiros e carvalhos, mas muito férteis e produtivos. No Inverno, enquanto aguardavam as sementeiras, tinham um aspecto avermelhado e escurecido, mas na Primavera revestiam-se com o verde dos milheirais, dos legumes e das vides e no Verão começavam a amarelecer até alourarem por completo no Outono. Num desses campos, um pouco mais distante do rio, ficava a casa da Mariana. Era nele que os pais trabalhavam de sol a sol porque era dele que tiravam tudo o que era necessário para o seu sustento – milho, legumes, batatas e vinho. Em Fevereiro e Março, quando os dias começavam a tornar-se maiores e mais quentes, os pais, jungindo o Lavrado à charrua, abriam e resvalavam a terra ainda húmida das chuvas invernais e deixavam ficar as leivas e os torrões a secarem e como que a aquecerem-se ao Sol, durante alguns dias. Depois desfaziam-nos e transformavam-nos em terra fina que alisavam umas vezes com enxadas outras com uma grade puxada pelo Lavrado, transformando o campo num enorme e fofo tapete acastanhado. De seguida o pai voltava a atrelar o boi ao arado e traçava regos paralelos e simétricos de uma extremidade à outra do campo. A mãe ia atrás e, retirando punhados de milho de uma cesta que levava enfiada no braço, atirava os grãos com tanta agilidade e perícia que eles caiam direitinhos no rego, muito bem alinhados uns à frente dos outros, como se fossem soldadinhos numa parada militar. Cada rego fechava-se com o abrir do seguinte, tapando assim os grãozinhos que ali ficavam a germinar durante alguns dias. Por fim a terra era de novo gradeada e alisada para que os grãos ficassem todos muito bem escondidinhos e assim germinassem mais facilmente, com a ajuda do Sol e da chuva dos dias seguintes. Não tardava muito e era um regalo ver o milho a crescer, a crescer, muito verdinho e espevitado. Nas extremidades do campo e nos lugares mais abrigados pelos bardos das beiradas ficavam pequenos canteiros de batatas, feijão, ervilhas e melões e nos mimos crescia a pranta, a couve e o cebolo. Em Abril e Maio, quando o milho ainda estava miudinho, os pais sachavam e mondavam o campo de lés a lés, retirando as ervas daninhas e os pés de milho mais bastos para que os outros crescessem à vontade. Nos dias seguintes o campo transformava-se num enorme tapete de folhas verdes, caneladas e pontiagudas, ladeadas pelos canteiros onde floresciam couves repolhudas e as ervilhas e os feijoeiros começavam a trepar pelas estacas de cana que eram espetadas aqui e além. Os milheiros cresciam de dia para dia, as suas folhas entrelaçavam-se umas nas outras e balançavam como ondas ao sabor das brisas matinais e os troncos, canelados e esguios, tornavam-se altíssimos, enfeitando-se lá no cimo de umas flores estranhas que cobriam o campo com um manto esbranquiçado e fofo. Algum tempo depois nos troncos enrijecidos começavam a formar-se espiguinhas cabeludas que iam crescendo e alourando ao Sol do estio. Em Setembro, as espigas amadureciam por completo e procedia-se à apanha. A mãe arrepelava dos troncos já muito amarelados e envelhecidos as espigas maduras e recolhia-as em enormes cestos, enquanto o pai os ia acarretando para a loja de arrumos, ao mesmo tempo que cortava as folhas e as guardava para alimento do Lavrado. Algum tempo depois marcava-se o dia da desfolhada. Mariana esperava ansiosamente essa noite de sonho e de magia.

O Zezito ainda era muito novo e Mariana desde pequenina, sempre que a mãe a dispensava de tomar conta do irmão, habituara-se a brincar sozinha. Por isso aguardava com grande ansiedade e expectativa os dias da desfolhada, da vindima, da matança e alguns outros que ela considerava diferentes sobretudo porque tinha sempre alguém com quem brincar. Para ajudar os pais na desfolhada vinham muitos vizinhos e amigos, os tios e os primos de Covelas, uns parentes já mais afastados de Alvarelhos e um casal de Laundos. Normalmente o pai escolhia uma noite de Lua Cheia. Os adultos sentavam-se em círculo, na pequena eira, à volta do amontoado de espigas e, enquanto lhes iam arrancando o folhedo, contavam histórias e anedotas ou então cantavam acompanhados pelo acordeão do amigo de Laundos. De vez em quando a mãe levantava-se e ia buscar uma malga cheia de vinho muito vermelho e perfumado, a borbulhar e a escorrer pelas bordas brancas, que todos iam saboreando à vez. Depois de vazia a mãe voltava a enchê-la outras tantas vezes, quantas eram necessárias para que todos bebessem e alguns voltassem a beber. Simultaneamente Mariana e a prima iam oferecendo, em pequenas cestinhas forradas com panos de linho rendado, pedacinhos de broa e presunto espetados em palitos. Depois todos voltavam ao trabalho. De repente e com enorme alarido alguém gritava “Milho-Rei! Milho-Rei!”. A tarefa era suspensa de imediato e fazia-se uma grande festa de regozijo. Mariana e as outras crianças vinham logo sentar-se ao redor do amontoado do milho. É que o feliz contemplado com a espiga de grãos vermelhos teria que abraçar todos os presentes. A isso ela nunca faltava. No fim servia-se a merenda: boroa, presunto, salpicão, chouriças, azeitonas e vinho, enquanto o acordeão continuava a emitir sons alegres e harmoniosos. Então os homens, as mulheres e crianças formavam pares e dançavam pela noite dentro.

A vindima era feita no mês de Outubro. É verdade que não era uma folia tão animada e divertida como a desfolhada. As uvas não eram muitas mas o trabalho era árduo e pesado. O pai passara meses e meses a podar os bacelos, a enxertar e a amarrar as videiras a estacas de pedra granítica e aos amieiros e carvalhos das beiradas que circundavam o campo onde o milho crescia a olhos vistos. Quando as vides já cobriam os bardos de um verde muito escuro e os cachos começavam a desabrochar, suspendendo-se graciosamente das latadas ou pendurando-se desordenadamente nas beiradas, o pai passava horas de máquina a tiracolo a sulfatá-las uma a uma. Depois, já amadurecidas, e muito apetitosas, as uvas eram colhidas e levadas em cestos para o lagar, onde eram esmagadas. Durante dias e dias exalava do mosto um cheiro perfumado, acre e doce que se propagava por toda a casa.

O dia que Mariana mais adorava era o da matança. Nesse dia nem ia à escola. A mãe preparava tudo com muita antecedência. A enorme salgadeira, os alguidares, os caldeirões e as panelas, tudo era muito bem limpo e lavado. Na véspera Mariana ajudava a descascar uma enorme quantidade de alhos, a arranjar os temperos e a preparar as toalhas branquinhas enquanto o pai aprontava o colmo para a chamusca.

Nesse dia, a casa não se enchia de gente como na desfolhada, mas a azáfama era muito diferente e mais divertida do que a da vindima. Não era costume vir nem os vizinhos nem os amigos, porque todos tinham que preparar as suas matanças nesses dias. Apenas vinham os tios e os primos de Covelas e, por vezes, os avós das Caldas com a madrinha Clotilde. De manhã cedo, quando o dia ainda não clareara de todo, chegava o Senhor Joaquim, o matador que o pai contratava todos os anos. Vinha de Valdeirigo e trazia umas facas enormes. Juntamente com o pai e o tio entravam nos aidos, agarravam o cevado, amarravam-lhe as pernas e punham-no em cima duma pequena mesa que se guardava de ano para ano. Mariana de longe, apreensiva e cheia de medo, tapava os ouvidos com ambas as mãos para não ouvir os gritos de aflição que o porco emitia ao ser apanhado. A mãe, de avental novo ao peito, aproximava um alguidar do pescoço do cevado e enchia-o com o sangue que se esvaía a jorros do buraco que lhe havia feito a faca certeira do senhor Joaquim. De seguida dividia o sangue em duas partes: uma para coagular e fazer o sarrabulho para a ceia, enquanto à outra metade juntava umas gotas de vinagre e deitava-a num alguidar, para mais tarde a misturar aos bocadinhos da carne da barriga com que se haviam de encher as chouriças. Com a palha do colmo retirada do centeio e transformada em espécies de vassouras, a que ateavam fogo, os homens chamuscavam o porco de uma ponta à outra. De seguida com baldes de água e sabão azul o suíno era lavado e esfregado com pedras e ramos de carqueja até ficar totalmente branquinho e limpo que era um regalo. Depois pegavam-lhe e levavam-no em ombros para a loja de arrumos, onde era amarado de pernas para o ar, aos tirantes que seguravam o soalho do piso superior. A mãe limpava-o todo com um pano de linho, preparado exclusivamente para este fim e que depois de lavado era novamente guardado para o ano seguinte. O matador, com um enorme facalhão, abria-o de cima para baixo e retirava-lhe o fígado, os bofes, o coração, as tripas e a bexiga. As tripas eram embrulhadas em panos, de maneira a não secarem, a fim de que mais tarde fossem muito bem lavadas no rio. O porco ficava aberto e com umas canas a esticar-lhe o corpo. Por cima das patas e da barriga o pai colocava-lhe o redanho como que a simular um manto. E assim ficava até ao dia seguinte, escorrendo em fio um líquido avermelhado e sujo, recolhido numa bacia que lhe era colocada debaixo da cabeça. A mãe já havia preparado e guisado os miúdos com pedacinhos de batata e, com o fígado, fizera umas deliciosas pataniscas de cebolada. É que o dia começara cedo e a fome apertava. De tarde Mariana acompanhava as tias que iam ao rio lavar as tripas muito bem lavadinhas enquanto a mãe ficava em casa a preparar o unto para fazer o pingue. À noite, todos voltavam a sentar-se à mesa onde as papas de sarrabulho ferviam no velho caldeirão de ferro e exalavam um cheirinho a noz moscada e a cominhos que enchia a casa e, juntamente com o fumo, saía pelos telhados e se propagava pela vizinhança. No dia seguinte voltava o senhor Joaquim com as suas facas para desmanchar o porco. Tirava o redanho para que a mãe o derretesse. Depois extraía a carne da barriga destinada aos rojões, da qual separava as aparas para as chouriças. De seguida, cortava-lhe a cabeça, preparava as orelheiras e dividia o corpo em duas partes, das quais tirava os coelhos. Era com estes que a mãe fazia os melhores salpicões. Depois cortava as pás, tirava as costelas e as tiras da barriga que seriam guardadas na enorme salgadeira. Finalmente cortava os presuntos, que eram colocados juntamente com os salpicões num molho feito alho, sal, vinho e louro e onde permaneciam durante alguns dias, antes de irem para o fumeiro. De modo semelhante eram temperados os ingredientes com que mais tarde seriam feitas as chouriças. Seguiam-se dias e dias de fumeiro, com a queima de rama verde, para o tornar mais lento e demorado. Depois os presuntos eram passados por vinha-d’alhos e postos em sal. Mariana ajudava a mãe em todas estas tarefas e com ela partilhava uma enorme tristeza quando algum presunto, ou porque o tempo estivesse mais quente ou porque não tivesse curado bem, se deteriorava.

Para além destes dias verdadeiramente diferentes para Mariana os restantes eram de uma verdadeira monotonia. Levantava-se cedo e seguia para a escola, onde fazia ditados, resolvia problemas, estudava os rios e as serras, os reis e as batalhas, os vertebrados e invertebrados. Na hora de leitura a senhora professora juntava-as à volta da secretária, por trás da qual ficavam, ladeando um crucifixo pendurado na parede, as fotografias de Craveiro Lopes e Salazar, para lerem à vez e contarem histórias. Terminadas as aulas regressava a casa, ajudava os pais, tomava conta do Zezito e fazia as cópias e as contas que a Dona Ermelinda mandava. Apenas os domingos e os dias de festa em que os pais não trabalhavam no campo eram diferentes.

A festa que Mariana mais adorava era o Natal. Todos os anos faziam, na sala, um enorme presépio com as figurinhas de barro que a mãe trouxera das Caldas: o Menino Jesus, Maria, José, os três Reis Magos, os anjos, os pastorinhos e muitos aldeões que circulavam à volta da gruta, por caminhos cobertos com serrim de madeira e ladeados por casinhas também de barro e por leivas de musgo a imitar os campos onde pastavam as ovelhitas. Mas o que Mariana mais ansiava era a noite de Natal. Nessa noite a ceia era na sala e a mãe enchia a mesa de iguarias deliciosas que aprendera a fazer com a avó da Trofa: rabanadas, mexidos, aletria e sopas secas, que enchiam a casa de um agradável cheirinho a canela. Terminada a ceia partiam, às vezes com o Zezito já a dormir, para a missa do galo. O pai ficava cá fora com os homens, enquanto ela e a mãe entravam na igreja cheia de vultos negros, de tossidelas, de rouquidões, de arrastar de cadeiras, de bichanar de orações e de cheiro a velas a arder. Sentavam-se e esperavam em silêncio ou rezavam baixinho, até que o sacristão, envergando uma opa vermelha, vinha tocar uma enorme campainha. Os homens que aguardavam lá fora entravam para o coro e para os lugares do fundo enchendo a igreja por completo. Toda a gente se levantava e fazia-se um enorme silêncio. O pároco saia da sacristia todo vestido de branco e, segurando na mão o cálice devidamente coberto com um véu esbranquiçado, dirigia-se para o altar-mor. Tirava o barrete negro de três bicos, fazia uma enorme genuflexão e bichanava as primeiras orações em latim, às quais apenas o sacristão respondia. O povo, de joelhos batia com a mão direita no peito e inclinava a cabeça. Pouco depois, o padre aproximava-se do centro do altar, voltava-se para o sacrário e erguendo os braços, entoava em voz muito alta:

- “Glo-ó-ó-ó-óó-ria in excelsis-sis De-e-e-o”.

O sacristão de imediato badalava prolongadamente a campainha enquanto os sinos repicavam e a igreja se enchia de luz, de cor e de alegria. A missa continuava, entre preces, louvores e orações. O povo levantava-se, sentava-se, ajoelhava e tornava a sentar-se, consoante as indicações da campainha.

No fim, enquanto se entoavam cânticos de Natal, o pároco dirigia-se para o presépio que ficava do lado direito da capela-mor, por baixo da imagem de S. Martinho. Recebendo o turíbulo fumegante, balouçava-o diante das enormes figuras de Maria, José e do Menino, enchendo o templo de fumo e de cheiro a incenso. De seguida tomava o Menino nas mãos e colocando-se junto à grade que separava a capela-mor do cruzeiro, dava-o a beijar aos fiéis. Mariana, juntamente com as outras crianças, incorporava-se nos primeiros lugares da longa fila que se formava à espera de vez para beijar o Menino Jesus e para depositar, na cestinha que o sacristão mantinha na mão, os vinte centavos que a mãe lhe dera na véspera.

Em Janeiro havia a festa de S. Sebastião. Em Abril a da Senhora do Desterro e a Páscoa. No mês seguinte, o Espírito Santo. Em Agosto chegava finalmente a maior festa de todas – a Senhora das Dores. Mariana adorava-a. A avó Leocádia, prevendo alguns problemas a quando do seu nascimento, prometera que, logo que a menina andasse pelos seus pezinhos, havia de ir todos os anos, na procissão, vestida de anjinho. A mãe esmerava-se na preparação das roupitas. Faltasse tudo lá em casa, mas promessa era promessa e, por isso, a roupa que a menina vestiria para acompanhar a Senhora das Dores nunca havia de faltar. No dia da festa, Mariana seguia cedo com os pais, para o largo fronteiro à capela. Terminada a missa iniciava-se uma gigantesca procissão, onde se incorporavam dezenas e dezenas de anjinhos, as irmandades e os dez andores representantes das aldeias de Bougado.

Finalmente, em Setembro, havia uma outra festa a que os pais de Mariana também nunca faltavam – a romaria de Santa Eufémia, em Alvarelhos.

Os restantes domingos, da parte da tarde, eram de trabalho. Os pais, no entanto, reservavam para essas tardes os trabalhos mais leves mas considerados necessários. O pai dava feno e erva ao Lavrado, ordenhava a cabra e apanhava os legumes enquanto a mãe tratava do porco e dava uma barrela à casa.

Este trabalho contínuo, persistente e sem futuro começava, por vezes, a indignar o pai da Mariana. Aquilo era uma vida miserável. Trabalhava-se, trabalhava-se para ter apenas o sustento de cada dia. Por várias vezes ensaiara tentativas, todas elas frustradas, de arranjar emprego nalgumas fábricas de serração de madeiras, tecelagem, chapéus, tecidos ou de maceração do linho, que desde há alguns anos começaram a surgir ali na zona de Bougado. Mas não tivera sorte, nunca fora admitido. É verdade que já lhe tinham oferecido emprego nas Ferragens Melo e Sousa, no Porto, mas recusara-o. Muitos homens de S Martinho e de outras localidades ao redor deslocavam-se todos os dias para o Porto, para trabalhar em fábricas ou na construção civil. A escassez de transportes, no entanto, obrigava-os a fazer a viagem de bicicleta, demorando mais de três horas em viagens. Assim ficava totalmente impossibilitado de continuar a trabalhar o campo e a Teresa sozinha e com as crianças muito pequeninas não podia atender a tudo. Além disso os ordenados quer nas fábricas quer na construção eram muito baixos.

Mas a ideia de abandonar a agricultura e mudar de vida nunca saiu por completo do pensamento do pai da Mariana. Muitas vezes, à noite juntamente com a mulher, quando as crianças já dormiam, lamentava aquela vida árdua e cansativa, sobretudo para ela. Não fora para aquilo que a tirara de casa dos pais, da Tornada. E os filhos? Que futuro lhes preparava? Continuarem ali, agarrados à rabiça do arado ou ao cabo da enxada para ter apenas um caldo de couves e um bocado de boroa ao fim do dia? Não, não podia ser assim. Tinham que pensar em mudar de vida, em construir um futuro melhor sobretudo para os filhos. Para isso tinham que se aventurar.

A mulher bem o tentava demover lembrando que não estava nada incomodada com aquela vida. Casara com ele por amor e era por amor que tinha deixado os seus pais e tinha saído das Caldas. Além disso estava habituada à vida do campo. Também na Tornada, desde que terminara a quarta classe, sempre se habituara ao trabalho agrícola, ajudando os pais nas lides agrárias e que a mãe sempre lhe lembrava que não nascera para princesa.

O Libório, porém, não se conformava e não lhe saía da cabeça a ideia de que um dia havia mudar de vida. Esse dia não tardou.

Foi na festa de Santa Eufémia, em Alvarelhos, que o pai de Mariana encontrou um amigalhaço do tempo da tropa que havia emigrado para a França e agora estava em Portugal a passar uns dias. Conversa daqui, conversa de acolá e o sonho de abandonar a vida agrícola tornou-se mais real do que nunca. A vida em Portugal não melhorava, o país não progredia e a agravar a situação o regime de então acabara de iniciar uma guerra em Angola. Dizia-se que também seriam mobilizados os que tinham feito tropa nos últimos anos, mesmo já tendo passado à disponibilidade.

Assim, emigrar para França transformou-se numa decisão irreversível.

A mulher nem queria acreditar e atirava-lhe à cara com inúmeras dificuldades, repetindo constantemente:

- Tu endoideceste por completo, homem de Deus!

Não, não endoidecera. Afinal já estava tudo planeado. É verdade que não tinha quem lhe fizesse carta chamada, mas iria como muitos outros tinham ido – clandestino. A diferença é que ela e os pequenos também iam, apesar dos passadores não quererem levar mulheres, nem muito menos crianças. É que a fuga era muito perigosa.

Foi um tipo de Macedo de Cavaleiros que contactou o pai da Mariana através de um primo de Guidões, para acertar tudo. Era preciso que ninguém soubesse ou desconfiasse de nada. E foi lá, em Guidões, em casa do primo que encontrou o homem. Álvaro Ramalho, assim se chamava o contrabandista, no início recusou levar a mulher e as crianças. Aos poucos foi cedendo. Era uma questão de preço. Mas garantiu-lhe que era sério e honrava os compromissos. O que se combinasse ali seria escrupulosamente cumprido. Oitenta contos: trinta por cada um dos adultos e vinte pelas crianças mas estas, sempre que seguissem de caro ou camioneta, seriam levadas ao colo. Claro que tudo o que lhes acontecesse era da responsabilidade dos pais.

O pai de Mariana regressou sem firmar contrato. O preço era altíssimo. Era-lhe de todo impossível arranjar aquele dinheiro. Um segundo encontro e o Ramalho cedeu:

- Vinte em notas e quarenta em bens. Aceitamos casas, terras… Mas temos que ser nós a avaliá-los – sentenciou o homem, apertando-lhe a mão – e tens emprego garantido em Clermont-Ferrand. Ao chegares lá um tipo chamado Cardoso vai procurar-te, arranjar-te trabalho e dizer-te como deves pagar os restantes vinte mil. Não devem levar muita bagagem. Para além de ser comprometedor é impossível transportá-la. Levem apenas o indispensável.

A mãe de Mariana teve muitas dificuldades em aceitar.

- Vais vender a casa e o campo!? E se temos que voltar para trás? O que vai ser de nós e dos pequenos? Nem ao menos posso avisar meus pais? – perguntava ansiosa.

- De forma nenhuma. Ninguém, absolutamente ninguém pode saber, a não ser o primo de Guidões. E não te esqueças – lembrava – à Mariana e a todas as pessoas deves dizer que vamos às Caldas, a casa dos teus pais.

- E o Lavrado? E a cabra? E as galinhas e o porco?

- O boi está vendido. A casa e o campo ficam ao cuidado de meu primo. Só depois de receber a notícia de que já estamos seguros e em França ele venderá o que puder e fará a entrega da casa e do campo ao passador.

Foi na véspera dos anos de Mariana que ela, os pais e o irmão partiram de S. Martinho de Bougado com destino à França. Para os vizinhos iam às Caldas, a casa dos avós maternos, passar o aniversário da menina. Mas no Porto não foi fácil convencer Mariana de que iam para as Caldas por outro caminho.

Quando chegaram a Bragança um tipo de aspecto esquisito aproximou-se, recebeu-os e ofereceu-se, como taxista, para os levar a Gimonde. Que esperassem um pouco sem dar muito nas vistas. A viagem era curta e só à meia-noite em ponto deviam estar em Talhinhas junto à ponte de Remondes, sobre o rio Sabor. O plano em nada falhou. Ao dar a meia-noite, lá estavam juntando-se a eles outros dois desconhecidos, com quem teriam que efectuar uma longa e perigosa viagem. Finalmente chegou o guia que os acompanhou até à fronteira.

Era Outubro. As noites já eram grandes e frescas. As crianças começaram a sentir fome e frio. O pai prevenira-se com comida em Bragança. Mas o Zezito não se calava e, em vão, pedia leite. O choro e a impaciência começavam a importunar. A mãe vezes sem conta arrependia-se de ter partido.

Na manhã seguinte uns a dormir e outros acordados chegaram a Puebla de Sanabria, juntando-se a alguns pequenos grupos que tinham passado a fronteira noutros locais. Passados alguns dias estavam em Dancharie na França, onde o último guia os deixou.

- Agora tomem o comboio e sigam os vossos destinos conforme as instruções que vos deram. Governem-se, como puderem – e virou costas.

O comboio ainda parou em Puyoô e em Agen onde saíram alguns portugueses. Apenas um pequeno grupo seguiu para Clermont-Ferrand.

Na capital de Auvergne o pai de Mariana procurou o Cardoso, que morava na rua de La Rotunde e desde há muito estava radicado em França. Os conhecimentos que tinha junto dos patrões de algumas fábricas de pneus, metalurgia, produtos farmacêuticos e alimentares proporcionavam-lhe que fosse arranjando alguns empregos para os que o Carvalho lhe recambiava de Portugal. O que tinha disponível de momento era numa fábrica de pneus. Não era grande coisa, mas para principiar, não era mau.

- É um trabalho pesado. Mas és novo e forte. Se com o teu trabalho agradares aos patrões, tens promoção pela certa. Já sabes que para aqui não se vem passar férias.

O alojamento é que estava um pouco complicado. Para já só conseguira um quarto, um pouco distante da fábrica. Era na rua Berlliard. A mulher podia usar a cozinha e o preço era acessível. Em breve lhe arranjaria uma casita. Havia um tipo de Viana que ia tentar melhor sorte em Paris. Quando ele fosse embora ficaria com a casa.

***

O Peugeot dos Dupont seguia a alta velocidade em direcção a Braga. O GPS indicava que devia sair em Santo Tirso/Trofa e depois virar à esquerda. Quando começou a circular em direcção à Trofa, Mariana sentia uma grande ansiedade. Dentro em breve iria percorrer os caminhos e as vielas dos tempos de infância, recordando assim os lugares onde tinha nascido e fora criada. Em França, sobretudo depois do casamento com Pierre Dupont e da mudança de Clermont-Ferrant para Aurillac, poucas informações recebia de Portugal. Mas duma coisa tinha a certeza – tudo estava muito diferente. À medida que se aproximava o coração apertava-se-lhe mais. É que a oportunidade de ver e talvez até de entrar na pequena casinha onde tinha nascido podia estar prestes a concretizar-se. Os semáforos à entrada da cidade causavam-lhe alguma confusão, mas configuravam grandes mudanças. No entanto começava a ver perdidas entre modernas construções, uma ou outra casita de xisto amarelado, que tal como aquela onde nascera, deixavam ver as pedrinhas rectangulares que ela sempre comparara a tabuinhas de madeira. De certo que não se haviam enganado. Mais adiante, uma igreja nova, moderna, de tijolos acastanhados e amplas vidraças e logo à direita, uma escola enorme, rodeada de prédios modernos e altíssimos. Era a Trofa, mas uma Trofa muito diferente da pequenina aldeia que havia deixado quarenta e sete anos antes.

Voltaram à esquerda, tornaram a voltar à direita e seguiram em frente na direcção do sítio onde presumivelmente estaria a velha casa. Mais umas voltas e chegaram ao pequeno largo em frente à igreja matriz, cuja fachada exterior ainda tinha bem presente na memória. Não estaria muito longe da casa, pois lembrava-se que, muitas vezes, à noitinha, da janela do seu quarto via, por cima dos telhados das casas circundantes, a torre da igreja. Vinha então debruçar-se à janela para ouvir o toque das Trindades. A avó havia-lhe ensinado as orações que devia rezar entre as lentas e demoradas badaladas do sino. Mais adiante estendia-se uma área enorme de terreno plano onde se misturavam prédios já construídos e outros em construção. Algumas escavadoras reviravam a terra e removiam enormes calhaus que eram retirados dali por portentosos camiões. Muito isolada, num dos cantos do grande eirado, com paredes e muros parcialmente destruídos, apenas uma casa, em tudo muito semelhante à sua. Era de uma amiga de escola, a Joaninha, lembrava-se bem. Passava por ali todos os dias, parava e chamava por ela. Depois lá iam, de malas a tiracolo, saltando e cantando pelos campos para encurtar caminho, apanhando flores com que faziam um ramo para oferecer à Dona Clotilde. As casas ao redor já tinham sido derrubadas e era, nos seus lugares que edificavam aqueles prédios modernos e abriam novas e largas ruas, onde circulava continua e frequentemente uma enorme quantidade de automóveis.

Ali era S. Martinho, mais além as outras aldeias e o rio. È verdade que também as suas águas já não eram tão limpas, transparentes e cristalinas como as de outrora, muitos moinhos e azenhas haviam desaparecido e ao seu redor os campos já não se enchiam de milho e de couves repolhudas, já não havia matança de porcos, desfolhadas e as vindimas já não eram como outrora. Já não havia casinhas de xisto com os mimos à porta da cozinha, e com os aidos onde se acomodavam os animais. Os homens e as mulheres já não se agarravam, de manhã à noite, à rabiça do arado ou à enxada e as mulheres já não sachavam e mondavam sob o calor tórrido do estio. Mas, em contra partida, nascera ali uma cidade, uma cidade grande e moderna que crescera graças à força, coragem e determinação de um povo. Mais, os trofenses depois de muitas vicissitudes, de empenhadas lutas e de esforços gigantescos haviam transformado aquela terra num concelho - o novo e moderno concelho da Trofa.

Apenas a Senhora das Dores na sua capelinha muito alta e esguia permanecia no seu altar e no coração de quantos como Mariana haviam ali nascido. Em frente à ermida, apertando tremulamente a mão do marido e com duas lágrimas a rolarem-lhe pelas faces, Mariana dizia-lhe baixinho:

- Oh, mon chéri, je suis tellement fiére d’être née dans cette ville.

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publicado por picodavigia2 às 00:05





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