PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
PROSAS DAS CARTAS E DOS RETRATOS DE FAMÍLIA
Pego nestas cartas tanto tempo guardadas,
desato as fitas dos maços, olho as datas seguidas.
Minha mãe sabia a história de cada uma,
melhor direi cada um dos que escreveram,
parentes nossos que quase todos nunca mais
voltaram para acabar onde nascidos.
Esta é talvez a mais antigas de todas:
7 de Setembro de 1872.
António, que a data de Broken Hill, na Austrália,
Não se esqueceu que era véspera da Senhora da Saúde,
mas fala já da abóbora assada de Todos os Santos
e do Natal, do Ano Bom e do Dia de Reis.
Sabia que uma carta de lá às Flores tardava,
e por isso, em bom cursivo, os seus votos
de boas festas “com saúde e na graça de Deos”.
Era eu bem pequeno quando veio a notícia
desse António, já sobre além dos oitenta anos,
durar ainda, num asilo velhos, parece-me,
numa cidade que me lembro se chamava Adelaide:
e o que ele queria agora não era saber dos seus
mas se herdara alguma terra e, se tivesse herdado,
que lha comprassem, porque o dinheiro, mesmo pouco
fazia arranjo a quem de seu só tinha a idade.
Eu imaginava que Austrália cavavam ouro
E só então fiquei sabendo que também lá os velhos
como tantos nossos não tinham para a sua masca.
- Foi a minha primeira lição de Geografia.
….
De 4 de Maio de 1885
e escrita em Red Bluff, na Califórnia,
esta outra carta é do Raulino, que havia um mês
chegara ali para trabalhar, como diz,
nos moinhos da madeira, onde as soldadas eram
melhores que nas ovelhas, e agora estava
em casa de tio José, tratado como seu filho.
Nada mais que contar senão “hua grande desgraçia”;
um do Mosteiro, que já era para vir para trás,
fora apanhado pela serra e ficou sem pernas;
agora estava em Sacramento no hospital e não
se sabia ainda se escapava ou se morria.
E contando-o põe no fim: “Antes elle morra
porq. hum homem assim sem pernas não é nada,”
Pobre moço! Um dia aconteceu-lhe a mesma coisa
e não morreu, mas depois a mulher largou-o
e só então ele compreendeu que a sua vida
sem pernas (e sem mulher) não fazia sentido:
como pôde arrastou-se até ao rio, que lá
é o Sacramento River e vai dar, em Vallejo,
à grande baía chamada de São Francisco –
e sem pernas nem vontade de viver se afogou.
Agora o que eu encontro é uma fotografia
onde o casal e seus oito filhos que nela estão
diante de um fundo com colunas gregas e parras
vestem uma solenidade de quem faz de conta
que não vive ao lado, exactamente, do equador.
Foi tirada por Fidanza Phoyografpho, no Pará,
e a data na dedicatória de meu tio-bisavô Inocêncio.
é de 16 de Junho de 1894.
Uma carta tarjada de três anos adiante,
conta que o filho maior, José Luís de nome
e então nos vinte, morreu de febre amarela.
E a última notícia que encontrei guardada
desses que as conversas das tias velhas referiam
como os nossos primos Goulartes brasileiros.
Finalmente atinjo o fundo do escaninho e tiro
ainda outra carta, solta e a única no envelope,
no entanto aberto e de que arrancaram o selo,
mas que, mesmo assim, dir-se-ia escondida.
Assina-a Afonso, em Luanda, onde assistia,
em 18 de Fevereiro de 1907.
É à mãe e diz-lhe que está bom, mas que passou
um mau tempo, com as febres (o clima pois claro)
e um retrato que junta, mais diz, é com o filho
(um menino mulato, vê-se) e põe que gostava
de o mandar para cá, onde melhor se educaria.
- Mas afinal quem veio, quinze anos além, foi ele
E, que eu me recorde, pois conheci-o bastante,
nunca falava do filho do retrato na gaveta.
Vinha só de visita, disse, mas foi ficando,
Não trazia dinheiro que luzisse e a sua roupa
eram fatos de caqui, sem falar num chapéu
desses que chamam capacetes coloniais.
Com isso, também lá nos veio um papagaio,
que por sinal era cinzento e não verde, mas
falava como falam os outros, do Brasil.
O papagaio chamava- o “Ó Afonso!” – e depois
Era como se desse gargalhadas enquanto
o dono se embebedava com aguardente de figos.
Também gritava “Chiça!”, e foi mesmo o que fez
Quando primo Afonso, como era de esperar
desfeito, verde, morreu de cirrose hepática.
Este meu primo contava pouco da sua vida
dos anos passados em Angola, ao que parece
comprando pelo sertão borracha e cera que logo
revendia a outros comerciantes, na costa.
Um dia perguntei-lhe como eram as pretas
e ele primeiro riu, mas por fim foi dizendo:
“No princípio a catinga enjoava-me, não podia…”
E explicou-me que catinga é como lá se chama
ao cheiro que deita a pele suada dos negros.
E a propósito disto, vem-me à lembrança agora
que de uma vez, em Kowloon, além de Hong Kong
uma puta chinesa me disse, e ria, ria
que os nau soc como chamam aos portugueses
(à letra traduzido, vejam lá, cheiro de vaca)
Mesmo lavados sempre cheiram a morto.
Mas deixando esta dos odores corporais
que, havemos de concordar, são antipoesia
reparemos antes, com o melhor daquelas cartas
que desde minha bisavó a minha mãe guardaram
e eu agora, a espaços comovido, fui lendo;
reparemos, dizia eu, que é Maio e a manhã
acordou azul e florida, cheirosa, musical
como a dança dos passos das raparigas quando
ainda não sabem (ou não querem saber) que a vida
também é muita vez o mais amargoso que vem
nas tais cartas que são (elas só) a memória que resta
de tantos mortos meus, tão mortos como esquecidos.
Pedro da Silveira, Poemas Ausentes
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TERCEIRO
(UM POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)
Estas casas, onde a sabedoria dos arquitectos nada fez
e os caminhos de corção nos quais as pedras
são, mais que pedras, a força
de as ter trazido e plantado
sob os passos futuros;
e estas paredes dividindo,
contendo,
sobre o corpo do chão,
cerrados e courelas
e belgas trepando
- duras cordas de cinza -
pelos flancos dos outeiros até onde
permite o vento uma qualquer
utilidade vegetal;
estas terras
revolvidas,
minadas,
com maroiços nas margens e moledos esparsos;
estas árvores,
mais velhas que a memória
dos mais velhos dos velhos:
laranjeiras disformes,
figueiras torcidas
alastrando, subindo;
e os poços,
as levadas,
as pontes,
ISTO TUDO!
flores de diligência e força
com raízes de tino,
ei-la, é a nossa
história.
Que não foi escrita
- nomes de heróis -
nos compêndios.
Grande de mais para palavras mortas.
Pedro da Silveira in Sinais de Oeste 1962
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SONETO DE IDENTIDADE
(PEDRO DA SILVEIRA)
"Chamo-me Pedro, sou Silveira e sou
também Mendonça: um tanto duro, como
Pedro é pedra; picante agudo assomo
de silva dos silvedos — não me dou
Raiz flamenga, já se sabe; e um gomo,
no fruto, castelhano. E assim bem pou-
co, pois, que doce me passara à ou-
tra pátria (língua?) que me coube e tomo.
Ainda Henriques (alemão? polaco?)
e outros cognomes mais: espelho opaco
de errâncias várias, que mal sei (desfaço,
talvez por isso, no que faço.) Ilhéu
da casca até ao cerne — e lá vou eu,
sem ambição maior que o livre espaço".
Pedro da Silveira, em Poemas ausentes, O Mirante, 1999: 14
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UM BARCO ABANDONADO
(PEDRO DA SILVEIRA)
Olhai o barco abandonado
junto do cais de outrora.
Dá-lhe o sol da saudade
de idas e vindas porque chora.
Dá-lhe o sol da saudade
dos portos d’Outra Costa. Além
o horizonte é baço, triste
d’alvos veleiros que não tem.
O horizonte é baço, triste,
o horizonte é baço, incerto…
Oh o barco velho que apodrece
junto do cais também deserto.
Pedro da Silveira
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CAPITÃO FRANCISCO AUGUSTO
(EXCERTOS DE UM POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)
Capitão Francisco Augusto, meio americano, meio
Do Reino de Portugal; açoriano de berço,
De sua raiz, flamengo;
Comandante de navios,
Bom trancador de baleias,
Com fama de beber bem:
Brabo no soco, perdido
em lhe cheirando a mulher…
Mas porquê lembrar-me agora deste primo
Mais que morto, afogado,
Ausente do meu sentido?
Assim mesmo, exactamente:
guerras na Índia…ou não era ?
Assim mesmo: levar tropas .
E vem então um senhor…
Senhor não, um senhorito
lá dos palácios d’El Rei, pra ensinar ao comandante
do ”África”, ou como seria
O nome desse vapor,
que a El Rei se beijava a mão
Quando El Rei a estendia.
Capitão Francisco Augusto, meio americano, meio
Do Reino de Portugal; açoriano de berço,
De sua raiz, flamengo;
comandante de navios,
que outra coisa ele não era
senão bicho de mar alto
rude por fora, por dentro
coração de cera-bela:
mar, whiskey e mulheres…
famoso de costa a costa,
querido dos armadores,
estimado da maruja,
comandante de primeira
entre todos os melhores!
Rosa dos limos do mar; pedra de musgo
E candura, meu puro primo terceiro,
Porque lembrar-me de ti ?
(…)
Capitão Francisco Augusto
(…)
-É tudo quanto eu guardei,
E um retrato em corpo inteiro.
De resto nada mais sei
Deste meu primo terceiro.
Nem importa quando foi.
Pedro da Silveira “Sinais de Oeste” 1952
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RELANCE
(Pedro da Silveira)
O Mar. O rolo. A ribeira
e, além da ponte, os moinhos.
Relvas e terras de milho.
Sol a pino. Olhando em volta
não se vê ninguém lidando
nem indo no seu caminho.
Nenhuma nuvem no céu.
Sobre a folha azul do mar
vem um vapor e outro vai.
- Eu fico a vê-los passando.
VIII 1942
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AS PALAVRAS
(PEDRO DA SILVEIRA)
Que ninguém lhes toque
se as não sabe amar
como os vivos amam,
VIOLENTAMENTE.
Pedro da Silveia, Poemas Ausentes
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ÚLTIMO REGRESSO
(POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)
Com os seus malvões, a amoreira, a magnólia,
– estas duas talvez da minha idade –
o pátio à frente imitava
uma varanda corrida sobre o mar, a oeste.
Subo o caixilho da janela e fico a olhar
para isto que tanta vez eu vi mas hoje sinto
alheio, ou, quem sabe?, inimigo.
Os retratos ainda estão, como estavam,
entre ouros de moldura nas paredes;
e a cadeira-de-embalar (com um braço partido)
dorme entre sombras no canto onde a deixaram.
Volto-me outra vez para a janela aberta.
Liso, calado, azul nítido, o mar
é, sem mais nada, mar até ao último fim.
Um instante parado
entre os craveiros que resistem no quintal,
um gato espreita-me,
estrangeiro que lhe sou em minha casa.
Pedro da Silveira
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ÚLTIMO OESTE
(UM POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)
A terra acaba aqui.
Além é só o mar – e vento.
A terra acaba aqui…
Com ela tudo o que eu intento.
Às vezes imagino-me embalando:
Um porto, onde começa o meu destino.
Mas isso é só um desatino.
Até quando?
……………………
Lenha verde no lume,
Em sonho cada sonho se resume.
Pedro da Silveira, In “Primeira Voz”, Julho de 1942
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QUATRO MOTIVOS DA FAJÃ GRANDE – IV
Os arados sulcaram a terra
e das sementes brotaram plantas que foram esperança
nos dias do povo.
Na praça os homens falavam da beleza do tempo:
Ano como este nunca se viu.
Vai haver muito milho.
Vai ser um ano grande,
(Há quase dois meses o estaleiro vazio
e não há quem venda um alqueire de grão.)
Na terra as plantas crescem.
Crescem promessas
nos olhos do povo.
…Então
o vento soprou rijo da banda do mar
e a salmoura caiu sobre a terra
como uma semente de maldição.
E onde houve searas viçosas
ficou mais um ano de fomes
e os nossos corações sangrando.
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QUATRO MOTIVOS DA FAJÃ GRANDE – III
(À maneira de Cesário Verde, propositadamente)
A agitação dos dias de baleia!
Marinheiros correndo para o porto.
Iguala o Universo um grão de areia
e o Nada é um doutor de olhar absorto.
A bomba que rebenta na vigia
sacode o ar num sobressalto de asas.
A vida igual de sempre dir-se-ia
outra na lida habitual das casas.
Mas à agitação se segue logo
uma ansiedade vã sobre a paisagem:
em cada coração crepita um fogo
à espera apenas de uma leve aragem.
Depois qualquer sinal no horizonte
parece um barco – e uma baleia morta?
Um binóculo espreita ali de fronte
e um vulto de mulher assume à porta.
Inquieto, alguém pergunta: - Que é? Que foi?
Um corção lento cruza a dúbia praça;
reflecte a placidez do olhar do boi
a morna placidez da tarde baça.
Mas não há uma vela pelo mar!
As horas passam, moles, arrastadas…
A noite vem… Os botes sem chegar!
E um choro enche as casas desoladas.
Pedro da Silveira in Treze Poemas da Ilha das Flores
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QUATRO MOTIVOS DA FAJÃ GRANDE - II
(POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)
Na praça os velhos olham quem vem
E lembram histórias de tempos passados.
“D’ua vez em Fresno…”
“No Chinatão de S. Francisco…”
Ti Antonho Cristove encosta-se à bengala
E conta casos das suas idas
Nas barcas-de-baleias que vinham à ilha.
Um passarouco passa
Planando
No céu.
O vento rodou para oeste.
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QUATRO MOTIVOS DA FAJÃ GRANDE - I
Em frente,
Mar.
Para trás
rochas a pique
Vedam todos os caminhos.
Vem o Inverno
Vem o Verão.
Na loja vazia o dono boceja.
A grapuada joga ao pião.
Um carro de bois chia.
E é tudo tão igual,
Tão encharcado de solidão
Que a gente às vezes já nem sabe
se vive.
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CALMARIA
(UM POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)
Verão. Dois velhos
Sentados à Praça.
Lembram casos dos tempos das baleias
E vêem quem passa.
Um vapor que lá vai
Pela linha do pego, lado a lado.
E uma chuva de sol
No mar parado.
Dir-se-á que nada
Acaba ou começa.
Um relógio dá horas.
Devagar. Molemente. Não tem pressa.
Pedro da Silveira In “Primeira Voz”
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PAISAGEM – FAJÃ GRANDE DAS FLORES
(UM POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)
Passam navios, mas vão-se embora.
Na loja deserta o dono parece sonhar.
Sentada na rua, uma criança chora.
E chora também na praia a voz do mar.
Voga na baía um destroço perdido
Com uma aguarela pousada, navegando à sorte.
- Pelas ruas vai um alarido,
Que o vigia avistou uma baleia a norte.
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HOMENAGEM
Assinalando os 10 anos da sua morte, a Biblioteca Nacional apresentou uma pequena mostra documental sobre o florentino Pedro da Silveira.
Pedro da Silveira – autor, poeta, investigador histórico e literário, tradutor, etnógrafo – falecido há dez anos, foi um dos grandes poetas açorianos do século XX e deixou uma marca cultural profundamente impressiva cujo registo esteve patente na exposição da Biblioteca Nacional (em Lisboa), antecedendo a cerimónia de homenagem promovida no dia 1 de Outubro pela Casa dos Açores em Lisboa.
Este multifacetado autor florentino ilustrou a literatura açoriana – que defendeu frontalmente como teórico, historiador e crítico, até contrariando alguns meios intelectuais do Continente – foi também um dos seus mais persistentes e criteriosos divulgadores, tendo-se dedicado ainda a importantes recolhas de literatura oral.
Pedro da Silveira foi autor de várias obras de poesia, entre as quais se contam «A ilha e o Mundo», «Sinais de Oeste», «Corografias», «Poemas ausentes» e «Fui ao mar buscar laranjas», o primeiro volume da sua obra completa. Com uma vasta colaboração dispersa por jornais e revistas nacionais e estrangeiras, Pedro da Siveira foi ainda autor de duas antologias de poetas açorianos, sendo que no prefácio de uma das quais – «Antologia de poesia açoriana – do século XVII a 1975» – ensaia uma tentativa de autonomia da literatura açoriana das restantes literaturas de expressão lusófona.
A sua poesia manteve sempre uma forte ligação ao solo açoriano, não deixando, porém, de dialogar cultural e poeticamente com «as ilhas todas do Mundo». Foi um dos promotores da elaboração da «Enciclopédia açoriana» e preparava uma «História da literatura açoriana» quando faleceu. Integrou, até 1974, o conselho de redação da «Seara Nova», tendo sido até 1992 funcionário da Biblioteca Nacional, da qual foi director dos Serviços de Investigação e de Actividades Culturais.
NB – Texto retirado integralmente do Forum Ilha das Flores
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O ´´ULTIMO AMAMHECER NO MAR
(POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA
É cor-de-cinza o céu.
Triste Abril português
Mascarado de inverno
No oceano verdoso.
Aves, oh bons sinais
De terra perto,
Desenhai-vos no vento!
Tudo se veste
de ausência.
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A CASA
(POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)
Naquela casa meu pai nasceu
Nela nasceu e acabou meu avô.
Meu pobre avô! conheço-o apenas
De um daguerreótipo esmaecido
E de histórias que dele me contaram:
suas aventuras marinheiras,
as sete andanças do emigrante,
mais os regressos derrotados,
casos d’amores lá por longe…
Desde que me lembro ninguém morou
Na casa longa e estreita como um navio,
Com uma varanda sobre o Oeste.
Ao pé da varanda erguia-se, alta,
Uma figueira
(mais alta que a casa velha;
Isto recordo,estou a vê-la)
E as paredes da sala estavam cobertas
De desenhos ingénuos,imperfeitos:
Navios,cavalos,bois
Bichos que nunca houve
E homens do mar barbados
Tal e qual o meu avô.
Há uma data gravada na verga da porta
Da casa sem ninguém de meus avós
A(nno) D)ei) 1785
-Este é o chamam “ o Ano da Fome”
Quem fez erguer a casa?
Terá sido
Bartolomeu,o juiz do concelho?
Ou seria o ajudante José Lourenço?
Laureano,Raulino,Ana Rosa,
José Vitorino,Rosa Emília,
Maria,António,Pedro…
-aqui nasceram todos
E há muito são mortos!
Como ela se desfaz,
Como derruiu,
Descaiada.
Fendida,
Esta casa em que findou
A raça de meu pai!
É uma família morta,a de meu pai:
Uma família morta ,
De ausentes e mortos.
Na Europa só eu resto;os outros
Desertaram a casa,
Abalaram,são hoje ,
Nos que nem sei,
Americanos,filipinos,cubanos
E brasileiros,
Venezuelanos
E uruguaios
-primos dispersos,
Parentes
Entre si ignorados.
De todos só eu sei onde jaz a casa morta.
Pedro da Silveira “Sinais de Oeste) 1952
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DIA DE BALEIA
(POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)
Agitação dos dias de baleia!
Marinheiros correndo para o porto.
Iguala o Universo num grão de areia
e o Nada é um doutor de olhar absorto.
A bomba que rebenta na vigia
sacode o ar num sobressalto de asas.
A vida igual de sempre dir-se-ia
outra na lida habitual das casas.
Mas à agitação se segue logo
uma ansiedade vã sobre a paisagem:
em cada coração crepita um fogo
à espera apenas de uma leve aragem.
Depois, qualquer sinal no horizonte
parece um barco – e uma baleia morta?
Um binóculo espreita, ali defronte,
E um vulto de mulher assoma à porta.
Inquieto, alguém pergunta: - Que é? Que foi?
Um coração lento cruza a dúbia praça;
reflecte a placidez do boi
a morna placidez da tarde baça.
Mas não há uma vela pelo mar!
As horas passam, moles, arrastadas...
A noite vem... Os botes sem chegar!
E um choro enche as casas desoladas.
Pedro da Silveira
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ANGRA REVISITADA
(POEMA DEPEDRO DA SILVEIRA)
De cada vez que volto
não volto: revivo,
tenho doze anos,
maravilhado, recresço.
Angra:
foste a segunda pátria
onde botei raiz,
o meu primeiro
(adolescente)
Pedro da Silveira
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POEMAS DE ANTEMANHÃ - 1
(POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)
Aqui,
longe,
num café de Lisboa,
quase a beira do Tejo turvo das fragatas,
a olhar um paquete que vai na direcção da barra,
subitamente é como se eu também partisse.
E só de pensar-me partindo
embarco e, deslumbrado,
imagino-me chegado às ilhas.
Todo um mundo familiar ressurge nos meus olhos!
E vejo-te, Mãe Terra; és tu,
de nuvens e de aves marítimas coroada,
no meio desse Atlântico - bravio
abraço de águas salgadas que nos atira para o mundo,
nos separa do mundo -. Sinto
o cheiro saboroso do teu chão de lavas verdes;
ouço mesmo o rumor surdo das ribeiras caindo das rochas abaixo
(ou será talvez o mar batendo nos baixios da costa?)...
Estou, Mãe Terra, nas tuas cidades,
nas tuas vilas mortas,
e, mais sobre oeste,
tanto que ali a Europa acaba,
na freguesia onde eu nasci.
Vejo nitidamente os campos de milho
e, no cimo, as relvas e o azul das hortênsias.
Sigo pelo caminho habitual da beira-mar
e uma figueira estende-me a sombra dos seus ramos.Com um molho de lenha à cabeça uma rapariga passa
e olha-me com a naturalidade de quem sabe que voltei.
Um menino leva as vacas para a relva
e, como sempre, os velhos estão sentados à praça.
Por caminhos de terra e mar
parto e, logo, chego. Estou
nas cidades e nas vilas, em todos
os lugares de cada uma das nove ilhas.
Os meus antigos companheiros,
tantos deles por aí dispersos,
outros, como eu, perdidos longe
- na Europa, em África, nas Américas -,
estão agora todos presentes. Penso
que alguma cousa diferente vai passar-se,
algum acontecimento extraordinário.
Vejo-te, Mãe Terra!
Vejo-te, mas eu sei,
é só de imaginar-te que te vejo.
É só de saudade a tua presença em mim.
Estou longe...
Longe, Mãe Terra!
E a tua madrugada
impede-a um muro hostil de braços estendidos cor de azebre.
Pedro da Silveira, fui ao mar buscar laranjas
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DUAS DA TARDE LISBOA À VISTA
(POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA(
Primeiro, a água era azul:
puro espelho celeste.
Depois, tornou-se verde:
Opaco verde de desgosto.
Agora é barro dissolvido:
Terra
de Portugal que o Tejo incita
a descobrir as Índias
e Américas ainda
por encanto encobertas.
– De quem o lenço que acena,
acolá,
do cais?
Pedro da Silveira Eu Fui ao Mar às Laranjas
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SÓ ISTO
(POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)
Só isto:
O céu fechado,
uma ganhoa pairando.
Mar. E um barco na distância:
olhos de fome a adivinhar-lhe a proa.
Califórnias perdidas de abundância.
Pedro da Silveira
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ACABADO, MAS NÃO TANTO
(UM POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)
Agora restam-me só dois dentes
e a vista já não é o que antes era;
às vezes sofro de azias e náuseas
e vêm dias, como hoje, em que nem reparo
nas mulheres em flor que passam a meu lado.
É Fevereiro ainda, mas o tempo
é como se já fosse a Primavera:
um dia de sol, com flores coroando árvores
no jardim à beira de que estou parado
esperando um autocarro que não chega mais.
Olho as árvores enflorando, a relva verde-tenro,
e também uma nuvem que o sol da tarde
faz mais clara no azul claro do céu.
Vejo isto, e vendo-o esqueço
os dois dentes que só tenho, um deles cariado,
a vista baça e tudo o mais que diz
que o meu corpo envelheceu –
como ainda há poucos dias me lembrou o gesto
da rapariga que quis dar-me
o seu lugar no eléctrico à cunha,
de manhã à hora de a caminho do emprego.
Sim; o dia parece mesmo de primavera
e com isso apetece estar vivo, embora
sabendo que os anos andaram sobre o corpo que temos
e não renovamos, com rebentos e flores,
como as árvores que vou vendo enquanto não chega
– vem aí, finalmente! –
o autocarro que há bocado espero.
Abalando, esqueço de todo os dentes que já mal tenho
e a minha memória, nova agora como a tarde clara,
não tem fundo para além do dia de hoje
e das flores do jardim de há pouco.
Sim; mas há as coisas que às vezes me lembram
(e nem sempre sem que doa ou amargue)
que já não tenho a idade em que me diziam:
– Pedro, vê lá o que fazes, toma juízo!
(Olhem, por lembrar: – esta manhã gostei de ver
como o meu canário começava o seu dia cobrindo
a canária que anteontem lhe pus na gaiola e agora
é a razão por que não me acorda como
dantes, cantando.)
Pedro da Silveira
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EU SOU DO MAR
(POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)
Água: mar: lonjura...
Sangue e força
da vida!
Meu caminho às avessas,
Desaguado na terra.
Não reneguei.
Hei-de tornar!
Pedro da Silveira
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PEQUENO POEMA INFINITO
A mão sobre o mapa
não viaja:
interroga.
Mas pousar no teu corpo
é chegar a porto
o navio que deram por perdido.
Pedro da Silveira in Signo nº1
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ARTE POÉTICA
(UM POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)
O meu desejo abarca as ilhas todas do Mar.
Os continentes, que fastio de desertos povoados!
Terra, terra, terra
E rios tristes, ansiosas de deixá-la.
Terra mais alta,
Mais baixa,
Terra só.
Lonjuras de terra
Horizontes de terra.
Ora esta é a minha razão, a minha ciência:
Horizonte verdadeiro é o d’água e céu.
Com mar à roda a terra sente,
Anima-se, acorda de ser terra.
A água incita-a, fecunda-lhe
O amor de outras terras.
-E navega-nos o sangue, empurra-nos
Para onde reside
(sonhado ou real)
Dentro de nós o Além –de’Aqui.
Terra e mais nada que terra.
Ir de uma terra a outra por terra.
Sem riscos-nem mesmo imaginados.
Sem nenhum sobressalto...
Fiquem os restelos para os secos e pecos
Que tiveram medo da navegação.
A mim, o Mar!
Pedro da Silveira in Sinais de Oeste