PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
PARTIDA
Lenços de memórias
abanam sobre o cais.
Há velhos absortos,
encostados a bordões,
e crianças, inibidas,
com os olhos encharcados.
Mães, aflitas,
agarram-se a pedaços de esperança
dispersos no ar
e fazem promessas.
Namoradas soluçam,
em prolongada agoni,
escondidas entre sacos e caixotes.
Tantos são
os que partem…
Alguns partem
porque estão doentes,
dois ou três vão estudar
outros para tropa,
muitos,
a maioria, vai para a América…
Tantos
os que partem…
Muitos
já mais regressarão.
E
o navio,
ancorado, lá fora,
aguarda,
balança,
fumega
e tem ar
de quem se ufana.
Autoria e outros dados (tags, etc)
ECO
No eco da vergasta
A memória não se perde,
Apenas se agasta…
Autoria e outros dados (tags, etc)
O GALEÃO DE GARCIA GONÇALVES
Chegaram os genoveses,
os flamengos
os bretões
e os florentinos!
Traziam barcos,
- pequenos batéis -
- frágeis caravelas -
navegando à bolina,
norteados pelo vento
guiados pela aventura,
sulcando o destino,
carregados de esperança,
almejando a sorte.
Sem o prever,
aportaram a uma ilha,
alta e esguia
onde, a sul,
havia uma enorme baía,
- uma encantadora enseada
E por trás da baía,
uma encosta,
com chão de lava,
mas soalheira e viçosa.
E os genoveses,
os flamengos
os bretões
e os florentinos,
fixaram-se ali,
na encosta verdejante,
voltada para o mar,
- debruçada sobre a baía -
arroteando,
produzindo,
edificando,
construindo maroiços.
atalhos e veredas,
transformando a lava
em chão doirado.
Também havia um português
- Garcia Gonçalves –
evadido do reino,
a exilar-se na ilha
por dívida
a El-Rei D. João III.
Uniram-se os genoveses,
os flamengos
os bretões
e os florentinos,
e, juntamente,
com o português,
(o tal que tinha uma enorme dívida para com El-Rei D. João III)
e com outros portugueses
(uns que antes, outros que depois)
também haviam demandado a ilha,
com as madeiras da encosta
e com a arte dos genoveses,
construíram uma enorme nau:
- um galeão -
que enviaram de presente a El-Rei D. João III
que, assim,
se apiedou
e perdoou a dívida
ao tal português,
evadido do reino
- Garcia Gonçalves –
E aquele lugar,
encastoado entre a baía e a encosta,
com o chão atapetado de lava florida
e com o mar a espraiar-se como eira,
houve por nome:
- Prainha do Galeão.
Autoria e outros dados (tags, etc)
RETORNO DO HORIZONTE
Um fluxo excelso,
mesclado,
(uma espécie de vento forte)
caiu sobre o oceano
e desfez o horizonte.
O firmamento,
agastado por uma força telúrica,
invisível,
desabou, lentamente,
sobre o chão agreste
misturando-se com uma agitação,
amedrontada,
do mar.
Depois escureceu.
A noite envolveu a terra,
agrilhoando-a,
espremendo-a
numa imensa indefinição…
Mas uma nova aurora,
amanhã,
há-de restituir
e selar
um novo dia.
E o horizonte, ora desfeito,
retornará,
sem tumulto
e sem vento!
Autoria e outros dados (tags, etc)
ASSOMADA
A rua onde eu nasci, plantada em comba,
Tortuosa na forma e chão possante,
Tem girassóis floridos. Sibilante,
Ágora de murmúrios, vale, lomba,
Cheia de gente, ao dia, alva de pomba!
À noitinha adormece refrescante,
Banhada num crepúsculo delirante.
Em laivos de silêncio se arromba!
As casas são de neve e as janelas,
Vigias sobre o mar. Doce visão:
- Auroras de marés, rastros de velas!
Das cozinhas, emanam, em cachão,
Um lufa-lufa amargo de panelas,
E um mísero perfume de mangão!
Autoria e outros dados (tags, etc)
NOME PAZ
Com a singeleza da aurora no teu rosto,
Com o verde das montanhas nos teus olhos,
Com a murmurar das fontes nos teus lábios
E com o sossego dos vales no teu peito,
Só poderias ter por nome – Paz!
Autoria e outros dados (tags, etc)
FONTE DE SILÊNCIO
quando me aproximava
para te abrir
e aparar
em balde de madeira opíparo,
a água límpida e fresca
que de ti jorrava
disfarçava a pressa
e dispunha-me
a ouvir
os pingos ritmados
que terminada a safra,
emanavam de ti
e caíam
sobre a peanha
de onde já havia retirado o balde
cuidava eu,
que aqueles pingos
vinham carregados
de enigmas
que eu tentava compreender
porque me pareciam
lágrimas semelhantes
às que tantas vezes
eu vira brotar
do rosto da minha mãe
- fonte de silêncio!
Autoria e outros dados (tags, etc)
VENDAVAL
Há barcos perdidos
no meio do oceano.
Há velas destroçadas
e gaivotas refugiadas em terra.
As nuvens correm amedrontadas
como se fossem bonecos embriagados.
Dos cumes dos montes
e das encostas menos soalheiras
emana um desespero arrepiante.
As folhas das árvores
caem,
rodopiam e enrolam-se
nos troncos nus
dos candeeiros apagados.
Ruas desertas
portas fechadas,
trancadas
à espera
dum novo amanhecer…
Autoria e outros dados (tags, etc)
BALÃO
o balão
baloiça
e com o vento
até retoiça
mas não entende
como eu
o estranho escarcéu
da voz do silêncio.
Autoria e outros dados (tags, etc)
PODER DO LIMITE
Não se pode mudar o rumo ao vento,
Com o brando acordar de um sentimento;
Os murmúrios das fontes não se apagam
Com ondas das marés que nos afagam;
E a brancura dos lírios não descora
Com o romper melífluo da aurora…
Mas para povoar o céu de estrelas,
Basta apenas o sonho de não tê-las.
Autoria e outros dados (tags, etc)
SÃO CAETANO
Entre o mar e a montanha se levanta,
E sobre a lava negra está plantada,
Mas quanto mais a lava é resgatada
Mais e mais São Caetano se agiganta.
E se da lava emerge fome tanta,
Ou se falta a fartura almejada…
No mar há a abundância desejada
E na terra é a vinha que se planta.
Nas encostas abundam ervaçais,
- Cerrados camuflados de fereza.
Paredes negras forram os currais!
Nos tijolos, o bolo inda fumega,
Há caldo efervescente, sobre mesa
E vinho… muito vinho, em cada adega.
Autoria e outros dados (tags, etc)
CHÃO DE LAVA
Por entre um silêncio vazio,
do seio da terra,
brotou uma fonte.
No início,
era um fiozinho,
ténue,
frágil,
mas malevolente
e sinistro.
Depois
transformou-se
em rio,
- enxurrada de lava -
persistente,
ufano,
mas agressivo
e destruidor.
Hoje,
esta lava
é um enorme manto verde:
- o chão benfazejo que pisamos.
Autoria e outros dados (tags, etc)
VINHO
uvas,
negras
perfumadas
entontecidas com a fascinação da lava.
uvas
doces
estonteantes
agitadas com o delírio das lavadias de Agosto.
uvas
sadias
amadurecidas
embaladas em lagares ancestrais.
uvas
esmagadas
espremidas
transformadas em mosto célico.
uvas
desfeitas
consagradas
a atufarem pipas opilantes.
uvas
limpas
transparentes
vazadas em copos de barro depauperado.
e foi assim
que das uvas
negras
perfumadas
doces
amadurecidas
sadias
deliciosas
esmagadas,
e espremidas
nasceu o vinho:
- safra milagrosa de Setembro
- sumo sagrado dos currais
- delírio ofegante das adegas!
Autoria e outros dados (tags, etc)
O SILÊNCIO DO ESPAÇO
o chão é um tapete azul
fofo
sedutor
enfeitado com pedaços de espuma
o céu um gelado incandescente
excelso
atraente
mas deserto e sem limites
apenas um silêncio
azul e zonzo
mas colaço e meigo
(a correr de um lado para o outro)
é dono e senhor deste espaço
aprisiona-o
transformando o tempo
num amontoado de vento
não há coisa nenhuma
neste espaço de silêncio infinito
para além deste pássaro gigante
que nos absorve
e que caminha veloz
como se fosse um louco parado.
O silêncio do espaço
é um anarquista errante
despido de desejos
e destruidor de sonhos
mas enleante
orgulhosamente enigmático
e infinito.
Autoria e outros dados (tags, etc)
O RESTOLHO DOS TRIGAIS
o vento trouxe a tempestade
do norte
e com ela amorteceu
o brilho dos trigais
- rebentos entumecidos
fulvos
a abrirem-se em cachão
e o Sol a amadurecer-lhes o despertar
- espigas amarelecidas
suculentas
a refulgirem em aromas
à espera da safra.
os trigais enchiam campos
recobriam vales
ornavam encostas
como se fossem tapetes
bordados com tulipas
floresciam sem medo
e ostentavam-se com destreza.
vendaval fatídico!
… e dos trigais
suculentos
e floridos
havia de ficar apenas o restolho!
Autoria e outros dados (tags, etc)
SEQUÊNCIA
O pão que repartimos
é sabor que alivia.
A dignidade que vestimos
é resguardo seguro.
A tranquilidade da noite
é bálsamo redentor para o dia.
Um olhar doce e meigo
sacode o estorvo da injustiça,
Sobre os limos do desânimo
podem plantar-se lírios brancos.
O rastro da esperança
não se apaga com a persistência.
Autoria e outros dados (tags, etc)
AMÉRICA DOCE
Aqui
é o fim da Terra.
Não há mais nenhuma ilha,
após esta.
Defronte, há apenas
mar.
Mar,
dono e senhor das ilhas.
Mar
que as rodeia,
que as acarinha
que as protege
e que as envolve.
E eu,
quantas vezes,
em criança,
ao olhar esse mar enorme,
esse monte de água infinito,
sem ilhas,
pressentia,
e cuidava
que existia
ali, defronte,
uma ilha misteriosa,
e gigantesca.
Uma ilha boa
e doce
para onde haviam fugido meus avós,
meus tios e meus primos.
Uma ilha grande
e generosa
de onde vinham as encomendas cheirosas,
os candys e as gomas,
e as cartas com dolas.
Uma ilha para onde
também eu
sonhava partir
e que, inocentemente, chamava:
- América Doce!
Autoria e outros dados (tags, etc)
NAUFRÁGIO
nuvens desorientadas,
sem rumo!
aguarela desfeita,
crisântemo de novembro,
estraçalhado
despido de folhas…
e um vento fortíssimo
a cair sobre o mar
ondas em cascata
gigantescas
altivas
a confundirem a maré
rastro medonho…
espectro de navio naufragado.
e as ondas incertas
bravas,
ferozes
atafulham os destroços…
Quantos naufrágios
virão depois?
Autoria e outros dados (tags, etc)
A SAFRA DO REMENDO
Um manto escuro
caiu sobre a tarde,
atordoando-a.
Um vento forte,
mesmo destemido,
ameaça confundir a noite.
Há gaivotas perdidas
sobrevoando o cais abandonado:
- Anúncio, flagrante, de procela.
Pescadores,
com o rosto tisnado de caligens,
refugiados nas abas das rochas,
sentados sobre pedaços de ossos de baleia,
com mãos tremulosas e olhos ondulados,
remendam redes.
Autoria e outros dados (tags, etc)
MAR
O mar…
é um tonto,
porque sabe a mar,
mas não sabe amar.
O mar
é um louco
porque umas vezes amansa,
mas nunca descansa.
O mar
é um estranho
porque, apesar de infinito,
não houve o meu grito.
Autoria e outros dados (tags, etc)
O VALE DAS CASCATAS DESLUMBRANTES
Cascatas de silêncio verde! Uma,
A maior, em torrente se despeja
No encanto de um lago e logo alveja
Solarengos respingos. - Doce espuma!
Outra, além, de salpicos se perfuma,
E agitada p’lo Sol que a flameja
Corre veloz, p’ro mar, que a corteja.
Enquanto se enfurece e avoluma.
A mais pequena, aqui, tem ao redor
Freixos, choupos e álamos içados,
A esgueirarem-se altivos - com fulgor.
E se houvesse desertos circundantes,
Seriam verdes e de silêncio alados,
No Vale das Cascatas Deslumbrantes.
NB – Qualquer semelhança entre este “Vale das Cascatas Deslumbrantes” e o Vale da Fajãzinha, na ilha das Flores (Açores) é mera coincidência.
Autoria e outros dados (tags, etc)
A ILHA MONTANHA
No magro chão de lava há perfume
E o fluxo das marés sabe a frescura.
O Pico é um retalho de verdura
Do sopé da montanha até ao cume.
E se as fontes andejam de secura
Ou se o chão treme e arde em cruel lume
- Dias de terror, laivos de negrume -
O mar se abre logo. - Tanta fartura!
Zonzos, os currais negros dos vinhedos
Transformam esta lava em doce mosto!
Trabalhos tão sofridos são folguedos…
E nesta ilha de lava ressequida,
Até festas e folgas, em Agosto,
Joeiram o chão seco, dão-lhe vida!
Autoria e outros dados (tags, etc)
GUERRA
Gravaste sulcos dolorosos,
Estigmas,
Com fumos de pólvora cinzenta.
Os ruídos, aparentemente adocicados, das madrugadas
Eram o eco dos canhões,
O ribombar dos morteiros,
O ronco dos obuses
Que, nas noites anteriores,
Escuras, solitárias e aterradoras,
Esvoaçavam,
Sem cessar.
Por vezes,
Explodiam minas e rebentavam granadas!
Tiros de metralhadoras estouravam em cachão,
Quase perfuravam os ouvidos!
Corpos decepados
- Velas desfeitas de barcos naufragados.
Corpos ensanguentados
- Cachos de uva, espremidos em prensa.
E…
Um medo, enorme, do dia seguinte,
Autoria e outros dados (tags, etc)
INCÊNDIO
labaredas
fulvas,
atiçadas,
em catadupa,
contra árvores
preludiais,
desprevenidas
um sopro impossível
a apagá-las
…cinzas
faúlhas
e pó
terra ressequida,
morta
Autoria e outros dados (tags, etc)
ANGRA
Há um fumo de maresia
A ornamentar as janelas que nunca se abriram.
Há um hino de silêncio
A atapetar as ruas que nunca se povoaram.
Há uma chuva de caligem
A tingir de negro os rostos que nunca se encontraram.
Há uma Angra estilhaçada,
Perdida entre o restolho dos vulcões
Autoria e outros dados (tags, etc)
LIVRO INICIAL
Foi na Ponta,
que se abriu o livro,
inicial,
simples
e branco.
Sem letras,
sem palavras
e sem frases,
escrito com o murmúrio, brando, da água das cascatas
e com o sussurro, agressivo, da maresia.
Autoria e outros dados (tags, etc)
LUA
Deus
só fez o Mundo
porque,
ao redor dele,
te
queria
colocar,
- Lua!
Autoria e outros dados (tags, etc)
O ECO DOS VULCÕES
por mais que sopre
e se agigante,
a brisa matinal
nunca apaga,
desvanece,
ou sequer
alivia
os sulcos
e as rilheiras
gravadas
no chão lávico,
pelo eco,
estonteante,
dos vulcões.
Autoria e outros dados (tags, etc)
PAISAGEM A OESTE
Na encosta soalheira,
um amontoado de casas,
desordenadas,
pobres,
humildes,
simples
mas branquinhas.
Casas
cheias de nada,
a abarrotar de desejos,
carentes de destino,
mas iluminadas
com o perfume
do poejo
e da cidreira.
Ao longe,
mas muito distante,
… a América.
Autoria e outros dados (tags, etc)
MONCHIQUE
Lá longe…
O Monchique!
Negro, abrupto e a pique.
Um rochedo
Que arrepia,
Encravado na maresia.
Ao redor,
Rolos de espuma,
Fantasiam-no de bruma.