PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A DECISÃO
Foi em Junho, pela festa do Espírito Santo da Casa de Cima que a decisão de Álvaro ir estudar para o Seminário foi tomada. A Dona Madalena, a professora da quarta classe, não cessava de anunciar e proclamar alto e bom som que era uma pena o garoto não seguir os estudos. Mas não havia volta a dar-lhe. Era de todo impossível e impensável. O futuro do último rebento dos Rodrigues estava traçado e seria igual ao dos irmãos mais velhos: viver ali, na ilha, agarrado à foice e à enxada, trabalhando à chuva ou ao sol, carregando cestos de batatas e molhos de incensos, levando as vacas ao pasto ou limpando-lhes o esterco do palheiro, ajudando o pai e os irmãos nas lides do campo. Só que o milagre aconteceu. Uma carta da América veio alterar-lhe, substancialmente, o destino. Uma tia, que há alguns anos para lá havia emigrado, considerando que esse acto teria sido uma fuga perversa ao que julgava serem responsabilidades suas, sentiu uma enorme necessidade de redimir-se. Como consequência custearia os estudos do sobrinho, mas para que a remissão a que ela aspirava fosse mais eficiente, só o poderia fazer no Seminário. O pai a princípio não aprovou a ideia. Embora o filho ainda fosse um badameco de meia tigela, já lhe fazia muita falta. Normalmente era ele que ia buscar e levar o gado, enquanto os mais velhos andavam a ceifar ou a mondar os campos. Uns dias depois, porém, o pai cedeu. Afinal a ideia até nem era de todo má, pois era uma oportunidade única e uma forma airosa de ver pelo menos um dos filhos sair das Flores, libertar-se dos trabalhos forçados, da miséria, da fome e de muitas outras limitações que proliferavam pela ilha. Além disso, perante o feitio e o temperamento que tinha, muito provavelmente o garoto nunca aguentaria aqueles doze longos anos fechado naquela casa e que eram requisito obrigatório e necessário para a Ordenação. Mas mesmo que desistisse, ficaria com os estudos. Depois era a pressão da avó e das tias Graça e Luzia, sempre muito devotas e dedicadas ao serviço de Deus. E decidiu-se que no Carvalho de Setembro Álvaro partiria para Ponta Delgada, para o Seminário Menor de Santo Cristo.
Os três meses que se seguiram foram de grande azáfama e consumição. Nos tempos que tinha livres das tarefas domésticas a irmã começou a preparar-lhe o enxoval de acordo com uma lista que havia sido enviada pela reitoria do Seminário e entregue pelo pároco e da qual constava, como mínimo necessário e obrigatório, quatro lençóis, dois cobertores, uma colcha, duas fronhas, um colchão e uma almofada. A colcha era o mais difícil, pois comprar uma nova era de todo impossível. Foi a avó que se comprometeu a costurá-la. E fê-lo com mestria. Arranjou dois bons bocados de fazenda enramados, um azulado e outro castanho, coseu-os em três dos lados, formando uma espécie de saco, dentro do qual colocou escondidas, algumas peças de roupa velha, devidamente alisadas. Depois coseu a extremidade equivalente à boca do saco, alinhavou, chuleou e voltou a chulear a futura colcha, de alto a baixo e de lado a lado, em linhas perpendiculares e paralelas, de tal maneira que formaram uma espécie de tabuleiro de xadrez, de forma a simular uma colcha acolchoada. Uma obra-prima! A lista também indicava a roupa que deveria levar para uso caseiro: dois lenços de mão, dois guardanapos, duas camisas, duas soeras, dois pares de calças, dois pares de meias e um par de sapatos, e dois guarda-pós. Arranjar tudo isto tornava-se complicadíssimo, até porque cuidava-se que não devia levar roupa usada. Uma encomenda da América, no entanto, veio resolver o problema, trazendo em triplicado algumas das peças de roupa indicadas na lista. Excepção feita para os dois guarda-pós que deviam ser de cotim e que foram mais difíceis de arranjar. No entanto como tinha um tio alfaiate ficaram-se pelo custo da fazenda, verificando-se procedimento idêntico para o fato preto que aparecia logo bem escarrapachado e em primeiro lugar na lista apresentada pelo pároco. Para arranjar os sapatos pretos é que foram elas… Só nas Lajes e os mais baratos custavam para cima de vinte escudos. Um rombo terrível no orçamento familiar! Além disso, a compra iria provocar grande revolta e contestação por parte dos irmãos mais velhos que andavam sempre descalços e a quem, nem sequer pela Comunhão Solene lhes haviam sido comprados uns sapatos novos. Mas não havia volta a dar-lhe: sem sapatos pretos é que não podia entrar no Seminário. A irmã que há muito substituíra a mãe, falecida há alguns anos, inventou uma artimanha para os arranjar. Para evitar a revolta dos irmãos Álvaro havia de jurar a pés juntos que os sapatos tinham sido oferecidos pelo senhor padre Silvestre, como recompensa de lhe ir ajudar à missa todas as manhãs. Ela, por sua vez, iria pedir vinte escudos à vizinha Celeste, muito amiga da mãe, antes de ela falecer e agora, sempre muito pronta a ajudar em momentos de aflição. Havia de lhos pagar, depois, em sete ou oito prestações de maneira a que os outros não se apercebessem do embuste. À lista seguia-se uma observação importante: todas e cada uma das peças deviam ser marcadas com as letras iniciais do nome e sobrenome do candidato, a fim de que a roupa não se perdesse e as lavadeiras não a misturassem com a dos outros alunos. Deliciosa tarefa para a irmã que era uma excelente bordadeira e adorava fazer ponto cruz. Depois foi papelada e mais papelada, o que implicou variadíssimas viagens a pé, entre a Fajã e as Lajes, sempre acompanhado pelo pai, para tirar fotografias, bilhete de identidade, marcar a passagem e comprar papel para os requerimentos. O pior foi quando o pai viu na lista apresentada pelo pároco, - ”uma folha de papel timbrado da Ouvidoria”. Como não soubesse o que era aquilo da Ouvidoria e cuidando que era engano, comprou a respectiva folha na Tesouraria da Fazenda Pública, onde habitualmente se comprava o papel selado. Para além dos recados que ouviu do prebendado, ao regressar à Fajã e de perder o dinheiro gasto no papel timbrado que não tinha nenhuma outra utilidade nem estorno, teve que voltar às Lajes no dia seguinte, exclusivamente para comprar uma folha de papel com o timbre da diocese de Angra do Heroísmo, em casa Senhor Ouvidor Eclesiástico.