PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A FESTA DO SENHOR DOS PASSOS, NA FAJÃ GRANDE, NAS DÉCADAS DE QUARENTA E CINQUENTA
Durante os domingos da Quaresma a ilha das Flores recordava, em solenes festividades e em litúrgicas celebrações, as principais cenas da Paixão e Morte do Redentor, privilégio concedido desde tempos imemoriais apenas às duas vilas e às três freguesias maiores e, talvez, mais importantes da ilha.
As celebrações começavam na vila Lajes, no primeiro domingo, com “Caminho do Calvário” e terminavam na de Santa Cruz, no domingo da Paixão, com o “Triunfo” realizando-se, então, uma majestosa procissão em que se incorporavam nove andores. No segundo domingo, em Ponta Delgada, celebrava-se a “Flagelação”, no terceiro na Fajã Grande a “Coroação de Espinhos” e no domingo seguinte, na Fajãzinha, celebrava-se o “Encontro”.
Na Fajã, a festa de Passos era uma das maiores festividades religiosas da freguesia.
Nos dias que a antecediam preparava-se a igreja de modo muito peculiar: não havia flores nos altares, eram retiradas as cortinas e sanefas das janelas, sendo as mesmas tapadas de alto abaixo com cortinados pretos, a fim de que, à boa maneira das igrejas românicas medievais, o templo ficasse totalmente escurecido, numa espécie de penumbra, criando-se assim um ambiente propício e adequado a uma mais profunda reflexão sobre os mistérios que se celebravam. No arco do transepto, entre a capela-mor e o cruzeiro, era preso à madeira um arame com argolas donde estava suspenso um enorme cortinado preto, que abria e fechava à maneira de um pano de palco e que tapava a imagem do Senhor dos Passos até à hora do sermão que antecedia a procissão. Os sinos não repicavam, apenas dobravam. A imagem do Senhor dos Passos, todo ano escondida atrás do altar-mor, naquele dia era posta, bem no meio da capela-mor em lugar de realce e colocada em cima de um andor muito tosco e sem flores, representando Jesus Cristo num dos mais dolentes momentos de tortura e sofrimento da Sua Paixão. Sentado numa pedra, quase nu, com uma capa roxa sobre os ombros, as mãos atadas por um cordão amarelado, segurando uma cana a fazer de ceptro e com uma enorme coroa de espinhos cravada na cabeça. Do crânio perfurado pelos espinhos saíam-Lhe gotas e gotas de sangue que corriam pelo rosto e se perdiam nas barbas ou Lhe salpicavam o tronco e os joelhos. Os ombros avermelhados e o tronco despedaçado faziam entender que havia sido fortemente chicoteado nas costas.
De manhã havia missa solene como nas grandes festas. No entanto, como a capela-mor estava tapada, a celebração realizava-se num dos altares laterais, no da Senhora do Rosário. Os cânticos, eram substituídos por antífonas e salmos cantados em latim e impropérios, alguns até cantados em grego, como o Hagios athanathos, eleison hymas (Santo Imortal tem piedade de nós) tudo em canto gregoriano, pelo pároco e mais dois homens. Geralmente vinham padres de fora, o padre António da Fajãzinha e o padre Mota do Lajedo, que nestes dias celebravam missa nas suas igrejas de madrugada, a fim de se poderem deslocar a pé ou a cavalo, para a Fajã. De tarde as cerimónias iniciavam-se com um sermão, findo o qual e no momento em que o pregador proferia as palavras “Ecce Homo”, o pano preto colocado no transepto abria-se e, finalmente, a imagem do Senhor dos Passos surgia à vista de todos os fiéis. Seguia-se a procissão que percorria as ruas principais da freguesia. À frente a cruz, ladeada por lanternas e seguida do enorme guião roxo, encimado pelas quatro letras garrafais e amarelas, SPQR, acrónimo da célebre frase latina da Roma antiga “Senatus Populusque Romanus” e que os cristãos, ao longo dos séculos, haviam adaptado e traduzido por “Salvai o Povo Que Remiste”. A seguir os anjinhos, os meninos da Cruzada Eucarística cobertos com a cruz de Malta, desenhada a vermelho numa faixa branca atravessada sobre o peito. Depois os homens vestidos de opas vermelhas e roxas, transportando as lanternas ou levando o pálio sob o qual caminhava lentamente o pároco, revestido de capa de asperges roxa e véu de ombros da mesma cor, barrete preto de três bicos, segurando bem erguida com ambas as mãos, a cruzinha do Santo Lenho. Finalmente o andor com a imagem do Senhor dos Passos. Uma parte do povo que não se incorporava na procissão, postava-se nas beiras dos caminhos e, compungido, genuflectia ao passar a minúscula relíquia que supostamente havia tocado na verdadeira cruz de Cristo. Atrás dois homens entoavam o “Miserere”em cantochão.
Depois de recolher a imagem era de novo colocada na capela-mor para que todos os fiéis, formando uma fila ordenada, prestassem a sua adoração, osculando um dos pés de Redentor.