PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A LENDA DE SAC-NICTÊ
Ela era uma princesa bela como a lua das noites tranquilas, graciosa como as flores da primavera, doce como o canto das cotovias, formosa como a luz do Sol, suave como a brisa matinal e fresca como as gotas de orvalho. Ela era uma flor que enchia os campos de alegria perfumada e transportava, nos seus braços, as mais belas canções de amor.
Chamava-se Sac-Nicté e nascera numa enorme cidade, situada numa alta montanha, num país onde a paz unia, como irmãs gémeas, todas cidades do reino, onde não havia exércitos, porque os reis de todos os reinos vizinhos haviam feito um pacto de paz, a fim de viverem como irmãos. Na mesma cidade vivia o valoroso príncipe Canec.
Certo dia a princesa Sac-Nicté viu o príncipe Canec sentar-se no trono e o seu coração estremeceu de alegria e contentamento. Quando acordou, na madrugada seguinte, a princesa Sac-Nicté percebeu que a sua vida e a vida do príncipe Canec, a partir daquele dia, caminhariam juntas, como se fossem dois rios a correrem, em simultâneo, para o mar.
No dia em que se tornou rei o príncipe Canec foi ao templo, apresentar-se perante o seu deus. Quando entrou no templo, as suas pernas de caçador tremiam e os seus braços de guerreiro estavam caídos, porque encontrara, ali, entre o povo que o aclamava, a princesa Sac-Nicté.
A grande praça do templo estava cheia de gente que havia chegado de todo o reino para ver o príncipe Canec. E todos os que estavam próximos viram o doce e suave sorriso da princesa e o olhar nervoso e comprometido do príncipe, a apertar o peito com as mãos frias.
Ali estavam também os reis e os príncipes de muitas outras cidades. Todos os olhavam e viam, mas não compreendiam que, a partir daquele momento, as vidas do novo rei e da princesa haviam começado a caminharem juntas, cumprindo a vontade dos deuses.
Mas, alguns anos antes, a princesa Sac-Nicté havia sido prometida em casamento, por seu pai, ao poderoso Ulil, príncipe herdeiro de um reino vizinho. Por isso, no dia em que o príncipe Canec se tornou rei, estava prestes a realizar-se o casamento do príncipe Ulil com a princesa Sac-Nicté.
Vieram mensageiros do rei Ulil junto do jovem rei Canec e disseram-lhe:
- O nosso rei Ulil convida Vossa Alteza, seu amigo e aliado, para as festas do
seu casamento com a princesa Sac-Nicté.
Canec, com os olhos avermelhados de choro e sofrimento, retorquiu-lhes:
- Dizei ao vosso senhor que estarei presente.
Depois vieram outros mensageiros dizer ao rei Canec:
- O nosso rei Ulil pede ao grande rei Canec que lhe dê o prazer de se sentar à sua mesa durante a festa do seu casamento com a princesa Sac-Nicté.
E o rei Canec, com a fronte cheia de suor e lágrimas, replicou:
- Dizei ao vosso rei que me verá nesse dia, sentado à sua mesa.
E quando o rei Canec, durante a noite, estava só e pensativo, a olhar as estrelas cujo brilho se reflectia na água e a conversar com elas, apareceu-lhe um misterioso anão que lhe disse, em segredo:
- A princesa Sac-Nicté está à vossa espera entre as folhas verdes das árvores que povoam o jardim da cidade. Vais deixar que outro a tome por esposa? – E, dizendo isto, desapareceu.
No dia do casamento a princesa Sac-Nicté foi conduzida por seu pai, juntamente com todos os grandes senhores do reino, em cortejo solene, caminhando por ruas enfeitadas de pétalas e cânticos. O príncipe Ulil, ao sair, para receber a princesa, estranhamente, encontrou-a chorando.
Toda a cidade estava adornada de cintas, de plumas de faisão, de plantas, de balões coloridos e de arcos pintados de cores brilhantes. E todos dançavam e estavam alegres, porque ninguém sabia o que estava para acontecer.
Já os festejos iam no terceiro dia e a Lua estava cheia, grande e redonda como o Sol, mas a princesa continuava triste e dos seus olhos corriam grossas lágrimas.
De todos os reinos, próximos e distantes, haviam chegado reis, príncipes e nobres e todos tinham trazido presentes e oferendas para os noivos. Alguns vieram com veados brancos, de cornos e cascos de ouro, outros vieram com grandes conchas de tartaruga cheias de plumas de quetzal radiante. Chegaram guerreiros com azeites odoríferos e colares de ouro e esmeraldas, vieram músicos com pássaros ensinados para cantar com música celestial. De todas as partes chegaram embaixadores com ricos presentes… Apenas o jovem rei Canec não apareceu nem enviara nenhum presente. Esperaram-no até o terceiro dia, porém, nem nesse dia chegou ou enviou mensagem alguma. Por isso todos estavam admirados e cheios de estranheza e inquietude, porque não sabiam o que se passava. Apenas o coração da princesa sabia e, por isso, chorava…
Finalmente, chegou a noite do terceiro dia das festas. Preparou-se o altar do esponsório mas o rei Canec ainda não chegara, por isso já todos cuidavam que ele não viria, contrariando a promessa feita aos mensageiros do rei Ulil.
A princesa Sac-Nicté estava vestida de cores puras e adornada de flores, diante do altar, ao lado do homem que a teria por esposa. A princesa Sac-Nicté, no entanto, esperava em silêncio e sonhava com os caminhos pelos quais haveria de caminhar na procura do rei Canec que ela colocara, desde há muito, no seu coração. Esperava-o e ansiava pela sua chegada, enquanto Canec, o triste rei, o jovem e forte caçador, procurava, desesperado o caminho que havia de seguir para cumprir a vontade do deus altíssimo e encontrar a sua amada Sac-Nicté.
Finalmente chegou o rei Canec, trazendo consigo os seus mais fortes guerreiros e subiu ao altar, onde ardia o incenso, onde cantavam os sacerdotes e dançavam as virgens. Trajava um vestido de guerra, com o emblema do seu reino cravado sobre o peito. Calmo e tranquilo, o rei entrou no templo, como o vento agitado e arrebatou a princesa em seus braços, perante o espanto de todos. Ninguém pôde impedi-lo e, quando o tentaram fazer, já o rei Canec e a sua amada princesa Sac-Nicté não estavam ali. O príncipe Ulil ficou só, ante os sacerdotes e junto ao altar, encerrando assim as festas do seu casamento, que não chegou a realizar-se. Mas de pronto roncaram os caracóis e soaram os címbalos e a ira do príncipe Ulil fez-se ouvir pelos montes e vales do seu reino, a convocar os seus guerreiros para a guerra.
O rei Canec, porém, juntamente com a princesa já se haviam afastado, seguindo por caminhos ocultos e desconhecidos. Mas sabendo da ira de Ulil, o rei Canec também reuniu os seus guerreiros e preparou-se para a luta.
Seguiu-se uma sangrenta batalha. Ulil pretendia que a vingança caísse sobre Canec, sobre o seu reino e o seu povo. Pelos caminhos havia a poeira das marchas e no ar gritos de revolta. Ressoavam os sonoros címbalos e trovejava o caracol de guerra. Casas e templos foram arrasados e muitas cidades destruídas. O povo sofreu e chorou durante a noite, mas no dia seguinte, logo ao romper da aurora, todos se correram em fila, para salvar as estátuas dos deuses e a vida do seu rei e da princesa. Então o rei Canec escondendo-se nos carreiros abertos no meio das montanhas, caminhava envolto em um manto branco, sem coroa de plumas na sua fronte. A seu lado, ia a princesa Sac-Nicté, assinalando, com a mão branca e fina, o caminho. Finalmente, chegaram a um lugar tranquilo, seguro e verdejante, junto a uma lagoa, distante de todas as cidades, e ali fixaram o seu reinado, construindo um palácio humilde e simples, cheio de sonhos, na cidade da paz, da virtude, da tranquilidade, da glória e da alegria. Uma cidade onde, em todas as Primaveras nasciam flores brancas e as árvores enchiam o ar de suspiros perfumados.