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A LENDA DO CALHAU DAS FEITICEIRAS

Segunda-feira, 27.01.14

Na Fajã Grande, ilha das Flores, no cimo da ladeira do Covão, no caminho que dava para o Outeiro Grande e antes do cruzamento da Pedra d’Água, existia, e provavelmente ainda hoje existe, um enorme e estranho calhau, que o povo chamava Calhau das Feiticeiras.

Tratava-se de um enorme e negro tufo de forma oval, encravado na rocha que ostentava desde a base até ao cume, mais de uma dúzia de pequenas pegadas, cuja elegância, delicadeza e graciosidade pareciam ser denunciadoras de que pés femininos por ali teriam passado, vezes sem conta.

Como este, tantos outros montes, morros, ribeiras e até ilhéus, da ilha das Flores estavam, antigamente e muito provavelmente ainda hoje estarão repletos de lendas e histórias que os seus nomes, geralmente, guardam e que umas vezes nos levam aos tempos remotos do povoamento da ilha e noutras nos transportam aos tempos primordiais e pré-históricos da civilização da Atlântida ou da sua destruição.

Reza uma lenda muito antiga que um dos mais altos picos montanhosos da Atlântida era o Vamilkmar. Durante os cataclismos, os terramotos e os vulcões que destruíram aquele mítico continente, situado no meio do Atlântico, um estranho gigante, conseguindo a muito custo escapar à fúria de Analtredevica, a deusa dos cataclismos e terramotos, ter-se-á refugiado naquele local, ficando, durante milhares de anos, adormecido, no meio do Oceano. Os enormes cataclismos e temíveis terramotos que ali se verificaram, antes, durante e depois da formação da ilha das Flores, foram lentamente alterando o colossal e gigantesco atlante, acabando por transformá-lo naquele rochedo, ali plantado. Só que e à medida que o estranho ser se agigantava para se defender fosse do que fosse, enquanto um dos seus sentidos ou capacidades se desenvolvia extraordinariamente e de forma gigantesca, os outros adormeciam e como que se atrofiavam. Na sua luta titânica para sobreviver, escapar às violentas tempestades e orientar-se durante os espessos nevoeiros, Vamilkmar exercitava de tal modo e com tanta intensidade a visão que o ouvido, o olfacto, o gosto, o tacto e a própria inteligência se ofuscavam. Para sobreviver às constantes tempestades e orientar-se nas noites escuras das tremendas catástrofes, no negrume e libertar-se da fúria dos vulcões e dos densos nevoeiros matinais, o gigante desenvolvia excessivamente a vista, enquanto o ouvido, o olfacto, o gosto, o tacto e a inteligência se atrofiavam. Perante os estrondos aterrorizadores dos trovões, os rugidos roufenhos das tempestades e o bramir altivo do oceano era o ouvido que se excedia enquanto todos os outros se atrofiavam. Quando os enormes vulcões se abriam e jorravam rios de enxofre de cheiro nauseabundo e atrofiante e das altas montanhas jorravam rios de lava mefítica, era a vez do olfacto se desenvolver na sua máxima capacidade, aniquilando totalmente todas as outras capacidades. O mesmo acontecia quando gosto saboreava os amargos sabores das maresias provenientes da gigantesca agitação dos oceanos ou o tacto se defendia dos gelos glaciares ou das chuvas e dilúvios torrenciais. Por fim e depois de ensaiar constantes e necessárias tentativas de sobrevivência, era a inteligência do gigante que crescia, crescia até se sobrepor e adormecer todas as suas outras capacidades sensoriais.

Duraram séculos e séculos, estas tentativas de sobrevivência de Vamilkmar foram tantas, tão contínuas e tão frequentes que o gigantesco corpo se foi alterando na sua forma humanóide. O seu corpo adquiriu uma forma opaca, dura e teúrgica e a sua cabeça foi-se ramificando e desarticulando de tal modo que se lhe foram crescendo ramificações, mais tarde transformadas em cabeças, num total de seis – cinco para cada um dos sentidos e uma sexta para a inteligência. Com o serenar das tempestades e das intempéries, com o apaziguar dos trovões e tempestades, com o aplacar dos vulcões e terramotos, com amainar das ondas e maresias, com o aquietar dos ventos, com o diminuir de chuvas e dilúvios, porém as cabeças do gigante foram adormecendo lentamente, atrofiando-se e juntamente com o seu corpo transformaram-se naquele enorme e gigantesco tufo.

Passaram dezenas, centenas e milhares de séculos e o gigante ali permanecia em plena e constante hibernação, enquanto, lentamente e ao seu redor, a ilha ia adquirindo a forma que hoje tem, não sem que antes voltassem tempestades violentíssimas, cataclismos abissais, tremores de terra e maremotos contínuos que, apesar de fortíssimos e muito violentos, não conseguiram ressuscitar o gigante adormecido, transformado em tufo. O passar dos anos havia-o empedernido de tal maneira que o seu corpo nunca mais perdeu aquela forma rochosa e pétrea. Apenas as cabeças sobreviveram, mas como não tinham corpo que as alimentasse, que lhes desse vida, foram autonomizando-se e acabaram por transformar-se em belos seres com formas estranhas - as feiticeiras - que se subiam, desciam e se escondiam nas abas do calhau, aparecendo apenas ao crepúsculo. Como não se podiam afastar do tronco adormecido do gigante, nem aparecer durante o dia, passavam desde o lusco-fusco do anoitecer até ao crepúsculo da madrugada, subindo e descendo, descendo e subindo aquele enorme gigante adormecido, deixando-lhe no dorso as indeléveis pegadas do seu contínuo, permanente e secular subir e descer.

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publicado por picodavigia2 às 10:06





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