PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A MINHA PRIMEIRA VISITA AO CORVO
A primeira vez que fui ao Corvo, pese embora a sua proximidade das Flores, a minha ilha Natal, foi quando, viajando a bordo do velhinho Carvalho Araújo, regressava à Fajã Grande, após o meu primeiro ano no Seminário de Ponta Delgada. Um dos professores que viajava no mesmo navio, da Terceira para as Flores, era o Dr Américo Vieira, na altura professor e Director Espiritual do Seminário de Angra. O Dr Américo era natural das Lajes das Flores e filho do Senhor Pedro Vieira que era o “conhecido” dos meus avós maternos, nas Lajes. Nas Flores naqueles tempos recuados, sem estradas e com deslocações difíceis e demoradas, a saltar grotões e valados, a atravessar ribeiras sem pontes, a descer rochas e a subir ladeiras com veredas sinuosas, cada família tinha o seu “conhecido” nas outras freguesias da ilha. O “conhecido” era um amigo em cuja casa se pernoitava e tomava as refeições, a quando das deslocações a esta ou aquela freguesia, sobretudo, por altura das festas. Ora quando ia à Fajã Grande, à festa da Senhora da Saúde, o Dr Américo, embora se hospedasse no presbitério, ia sempre visitar os meus avós, os “conhecidos” da sua família naquela freguesia. Eu próprio já pernoitara com meu pai, em casa de um irmão dele, certa vez que viéramos às Lajes comprar uma vaca. Por isso mesmo o Dr Américo já me conhecia, pelo menos de vista,
Após o Carvalho fundear na baía do Porto da Casa, na Vila Nova do Corvo, o Dr Américo procurou-me e disse-me que como iria desembarcar nas Lajes, onde o Carvalho chegaria a meio da tarde, iria a terra, enquanto o navio fizia serviço, para celebrar missa, convidando-me para eu ir com ele, a fim de lhe ajudar à missa. Que me havia de pagar o bilhete de ida e volta a terra. Fascinou-me a ideia, não só por acompanhá-lo, mas também por viajar de graça e, sobretudo, por ter oportunidade de, pela primeira vez, visitar o Corvo.
Partimos na primeira barcaça e, logo ao chegar a terra, em cima do pequeno cais do Porto da Casa, estava o padre Eugénio Rita, pároco daquela ilha e único sacerdote ali residente.
Acompanhou-nos até à pequenina igreja matriz da Senhora dos Milagres, onde o Dr Américo celebrou missa, tendo no fim o padre Rita lhe pedido que o confessasse. Dizia ele, um pouco a brincar, que estando ali sozinho, na pequenina ilha do Corvo, só Deus sabia quando havia de morrer e que, por isso mesmo queria “estar preparado” e, por isso, aproveitava para “acertar as suas contas com Deus” sempre que por ali passava outro sacerdote, o que, por vezes, quase só acontecia de ano a ano. Muita fé tinha este homem!
De seguida levou-nos a sua casa, onde a irmã nos serviu um excelente pequeno-almoço, no qual não faltou leite fresco, doces caseiros, queijo e bolo do tijolo de que eu tanto gostava, Depois conduziu-nos numa visita pela vila, com paragem no Outeiro, a mais mítica praça da Vila Nova do Corvo, onde os homens, mais velhos se reuniam todos os dias para descansar, para fumar, para falquejar, para conversar e, nas ocasiões mais solenes, numa estranha forma de gerontocracia, para tomar decisões e fazer julgamentos em nome de toda a população da ilha.
De origem vulcânica como as restantes, o Corvo é a menor das nove ilhas açorianas, com uma área de cerca de 17 km2 e uma população de quase meio milhar de habitantes. Na ilha do Corvo havia apenas uma localidade povoada, a Vila Nova do Corvo, que era considerado o mais pequeno município do arquipélago e o único do país que não tem freguesia. A área habitada da ilha era essencialmente formada por uma rua principal e várias travessas muito estreitas e sombrias, designadas por canadas – um imbricado de ruelas irregulares, de pavimentação grosseira que constituem um conjunto pitoresco e invulgar no contexto do arquipélago. Os vários cones vulcânicos, com lendas que procuram dar sentido ao desconhecido e que se vim ao longe, as casas invulgarmente próximas umas das outras e voltadas para o mar, procurando o aconchego dos vizinhos e a presença, lá ao fundo, da ilha das Flores, a vastidão do horizonte, a vida simples e calma daquela pequena comunidade não só me encantaram como me haviam ficar na memória e perdurar até que ali regressasse muitas outras vezes.