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A SAFRA DO TREVO

Domingo, 26.01.14

Vinham ajudar os tios, os primos e um ou outro vizinho. Armados de cestas, transportando cada um o seu banquinho de madeira – usados à noite, na cozinha, para lavar os pés – cerravam fileira junto a uma das paredes do enorme cerrado. Depressa formavam um eito. Melros e tentilhões, habituados a grandes comezainas nos dias anteriores, fugiam, agora, a sete pés.

Meu pai e o tio Jorge, à frente a derrubar os milheiros esqueléticos e nus, a que há muito lhes haviam sido arrancadas, primeiro as folhas, depois as maçarocas. O cerrado era agora um enorme tapete amarelado, onde desfloriam, murchas e flectidas, as espigas loiras, amadurecidas. Os do eito, limpa a primeira cordada, mudavam os bancos, dos quais nem despegavam o rabo, e as espigas continuavam, umas direitinhas como quando presas ao restolho, outras amachucadas e desfeitas, a amontoar-se e a subir dentro das cestas que, em breve, transbordavam. Os mais atentos, antes que as espigas se espalhassem, acorriam a despejá-las nos sacos de serapilheira que, aos poucos, se iam avolumando, bem acalcados, bojudos e fofos, a simularem gigantescas almofadas.

A manhã crescia e os sacos do trevo empinavam-se junto à parede.

Minha mãe e tia Gertrudes, muito antes do meio-dia, chegavam, cada uma com um cesto de vimes brancos à cabeça, usados habitualmente para ir lavar a roupa à ribeira, com pratos e tigelas a que sobrepunha postas de peixe frito, torresmos, toros de linguiça, talhadas de inhames, quartos de bolo do tijolo, fatias de pão de milho, pedaços de queijo, um bule cheio de café com leite, fruta e sopas fritas. Os mais pequenos, mais sobejos do que esfomeados, açudados pelo cheiro do conduto, abalroavam-nas, quase as impedindo de circular por entre o restolho amachucado. Bem os enxotavam elas:

- Saiam daqui, labregos! Não têm mais pressa do que os outros.

Num canto, junto a uma aba da parede, minha mãe estendia duas toalhas enormes, bordadas nos cantos com flores vermelhas e amarelas - a água crescia-nos na boca – e elas bem gritavam:

- Parem, parem - depois, para os outros, para os adultos que continuavam agarrados aos caules de restolho. - Venham, venham comer! –

Mas eles, os adultos, nada. Queriam acabar de encher as cestas antes do bródio. Nós, os pequenos agora formando coro com minha mãe:

- Olhem que isto arrefece! Cheguem-se, por favor - eles nada. - Safa, parece que estão moucos, não ouvem nada!

Distraía-se minha mãe a colocar os pratos a abarrotar de conduto e nós, à socapa, penica aqui, repenica acolá e lá nos íamos encharcando naquela alegria que era comer no meio do trevo seco, sentados sobre o restolho perfumado.

Agora era contra nós que minha mãe se empertigava, batendo-nos ao de leve, na mãozita matreira:

- Xou! Xou! Parem com isso! Não sejam lambões! Não sabem esperar pelos outros?!

Depois de amarrar os sacos já cheios e de os empinar contra a parede, lá vinham os adultos, um a um, sentar-se à volta das toalhas brancas com flores vermelhas e amarelas bordadas nos cantos, sobre as quais minha mãe despejara pedaços de pão, de bolo, talhadas de inhames e os pratos com o conduto. Os homens tiravam dos bolsos as naifas da América, com que iam cortando cada torresmo, cada toro de linguiça e cada quarto de bolo em pedaços mais pequenos que metiam na boca com ponta da navalha, mastigando-os voluptuosamente. As mulheres com os garfos espetavam as postas de peixe que iam comendo às dentadas, alternadas com as de inhame. Nós, os mais pequenos a pegar com a mão e a engolir tudo à pressa, na mira de fugir, com pedaços de pão frito e toros de linguiça nos bolsos, escapulindo para cima dos maroiços, ao esconde, ao trinta e um ou ao pai-velho:

- Canalha. Que ninguém lhe põe a mão em cima. Piram-se que nem os tentilhões.

Os homens fumavam um cigarro, as mulheres ajudavam a minha mãe a arrumar os pratos e as sobras dentro dos cestos e, em breve, as espigas continuavam a desprender-se dos caules do restolhos, as cestas a encherem-se, os sacos a empinarem-se junto às parede e o Sol, cada vez mais tórrido, a descambar para o Oeste.

Sacos às costas dos homens ou à cabeça das mulheres, cestas enfiadas nos braços e nós, os mais pequenos, loucos de encanto, à frente, a carregar os banquinhos. Era o regresso a casa, após a safra do trevo, calcorreando veredas íngremes e sinuosas, ladeadas de velhas paredes de pedras toscas, caiadas de musgo esverdeado.

 

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publicado por picodavigia2 às 11:14





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