PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A SEXTA-FEIRA SANTA E A TRADIÇÃO DA SOPA DE FUNCHO, NA FAJÃ GRANDE, NA DÉCADA DE CINQUENTA
Na década de cinquenta, na Fajã Grande, ilha das Flores, a Sexta-Feira Santa era um dia de recolhimento, de luto e de grande respeito por nele se comemorar a morte de Jesus. Desde da tarde da quinta-feira, ainda antes de se iniciar a celebração da missa in Cena Domini e do Lava-pés, até à noite de sábado e da celebração da Vigília Pascal, o toque dos sinos e das campainhas, na igreja, era totalmente interdito. Durante esse tempo, todo e qualquer sinal de índole litúrgica, necessário a chamar a atenção e concentração dos fiéis num momento mais solene de qualquer celebração litúrgica ou destinado a anunciar e a chamá-los para qualquer ato religiosa, assim como os toques do meio-dia e das trindades eram substituídos pelo roufenho som da matraca. As imagens dos santos permaneciam retiradas dos altares ou cobertas com panos negros ou roxos, desde o Domingo da Paixão, na altura celebrado liturgicamente quinze dias antes da Páscoa.
A matraca era um instrumento construído em madeira, formado por três tábuas pregadas umas nas outras e com um suporte manual na parte superior, como se de uma pequena caixa se tratasse. Na parte exterior das tábuas estavam cravadas várias argolas de ferro, semelhantes a batentes de portas, que se soltavam batendo em conjunto e de forma violenta e agressiva na madeira, logo que a dita cuja fosse abanada com alguma força e agilidade, produzindo assim um som batido, matracado, estranho e esquisito.
Durante esse dia, o único do ano em que não havia missa, a maioria do povo não trabalhava e à tarde muitas pessoas seguiam em romaria até à Fajãzinha para assistir às endoenças, celebradas às três horas da tarde, na Igreja Matriz daquela freguesia. Para além de três padres, as cerimónias, que recordavam e celebravam a Paixão e Morte de Nosso Senhor, exigiam alfaias litúrgicas diversas e paramentos que a igreja da Fajã não possuía. Os celebrantes deviam paramentar-se de capa de asperges, casula e dalmáticas roxas que eram mudadas na quarta e última parte da cerimónia por iguais paramentos, mas de cor preta. Presidiam a estas cerimónias para além do pároco da Fajãzinha, Padre António Joaquim, o padre Pimentel e o padre Mota, párocos da Fajã e do Lajedo respetivamente.
Na Fajã as cerimónias litúrgicas resumiam-se, ao cair da noite, à procissão do Enterro ou do Senhor Morto. A igreja permanecia totalmente escurecida, não havia Santíssimo e era retirada a imagem de Cristo com os braços articulados, de um crucifixo muito grande que existia no altar da Senhora do Rosário e colocada dentro de um esquife debaixo do altar-mor, a simular o sepulcro e de onde fora retirado o frontal. A imagem da Senhora da Soledade, habitualmente nua e escondida numa arrecadação atrás do altar, era vestida e colocada num andor. A procissão percorria a rua Direita com as duas imagens e era, simplesmente acompanhada pelo toque, sincronizado, da matraca. Depois de recolher à igreja, a procissão terminava com o sermão do Enterro.
Uma outra tradição mantida neste dia, relativamente à alimentação, para além de se guardar jejum e abstinência, era a de se comer Sopa de Funcho. O funcho que, na Fajã Grande, proliferava e florescia nas encostas entre os canaviais, nas bordas das canadas e em cima dos maroiços, na Sexta-Feira Santa, era ou parecia ser mais doce do que habitualmente. O motivo desta suposta e adocicada alteração do sabor daquela planta aromática era de carácter, eminentemente, religioso e estava relacionado com os mistérios da Paixão e Morte do Redentor. Segundo uma antiga lenda, muito provavelmente baseada nos Evangelhos Apócrifos, quando Nossa Senhora seguia a caminho do Calvário a acompanhar o sofrimento do seu Filho, como que para aliviar a sua dor, distraidamente ia apanhando e mascando folhas de funcho. Em homenagem à dor e ao sofrimento da Virgem Maria, a planta passou, todos os anos, como que a tornar-se mais doce, naquele dia.
Ora, sendo a Sexta-Feira Santa um dia consagrado ao jejum e à abstinência, o cardápio habitual e tradicional desse dia, na Fajã Grande, resumia-se a uma sopa cujo ingrediente principal era o funcho. Era a tradicional Sopa de Funcho.
A tradição da Sopa de Funcho, na Sexta-Feira Santa, era, por quase todos, respeitada. Bastava apanhar aqui ou acolá uma mancheia de funcho, escolhendo-se as partes mais verdes e mais tenrinhas. Feito o caldo com água, cebola, alho, uma colher de banha de porco e uns pedacinhos de batata, juntava-se, simplesmente, o funcho finamente picado, como se de couve ou de outra hortaliça se tratasse.
Em muitas casas, sobretudo nas mais pobres, esta sopa era feita em muitos outros dias, na altura em que havia funcho fresco. Apesar de nesses dias se juntar à Sopa do Funcho uma talhadinha de toucinho, a qual lhe dava um gostinho muito saboroso e apetecível, ela nunca tinha aquele sabor místico e adocicado da Sopa de Funcho da Sexta-Feira Santa.