PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A VELHA FERREIRA
Os pobres são e serão sempre pobres e menos nobilizados do que os ricos ou até mesmo do que os remediados. Mas se sobre um pobre ainda cai o infortúnio da ingenuidade e do pouco entendimento, ou se à pobreza física se junta a pobreza de espírito, o impropério do desdém, do menosprezo, por vezes até do gozo e do apoucamento é inevitável. Mais imperioso numa comunidade pequena, onde todos se conhecem e se encontram a cada hora e a cada momento do dia.
Assim era na Fajã Grande em tempos idos relativamente ao tratamento dado aos mais idosos. Os ricos, que diga-se em abono de verdade não abundavam, eram tratados por senhores, as ricas por donas, os remediados e as respetivas esposas ou as suas viúvas recebiam o interessante título de tios ou tias, enquanto os pobres eram simplesmente alcunhados de o velho ou a velha.
Assim acontecia com uma pobre e idosa mulher que morava numa casa logo no início da Tronqueira, de apelido Ferreira. Como era muito pobre e um pouco desatinada de costumes e hábitos era tratada, apesar do respeito que a sua provecta idade devia impor, pela velha Ferreira ou simplesmente a Ferreira.
Viúva e mãe de dois filhos, a Ferreira vivia dos parcos recursos de uma ou outra pequena courela que possuía e que ela própria a muito custo trabalhava. Dos filhos, um era um rapaz que depois de ser apurado nas sortes, pois era muito saudável, forte e um pouco mais atinado, partiu para a tropa e abandonou definitivamente a freguesia. O outro filho era uma rapariga, a Jerónima, como a mãe, muito simples, ingénua e desatinada. Na escola não aprendia, traçando-se-lhe o destino de ter que ajudar a mãe na árdua e difícil vida do campo, adquirindo assim o seu mísero sustento. Mais tarde casou com um pobretanas de má catadura que, segundo constava não a tratava nada bem. No meio de alguma violência doméstica a pobre Jerónima talvez nunca atingiu a felicidade a que todo o ser humano tem direito.
Certo dia, depois de ela própria lhe ter tirado o leite, conduzia uma vaca esquelética e lazarenta para o pasto, acompanhada de um filho, ainda criança. Ao passar junto à Casa do Espírito Santo de Baixo, em cuja banqueta estavam sentados a conversar e a falquejar alguns homens, o garoto, sem que ninguém lhe perguntasse o que quer que fosse, voltando-se para os eles exclamou em alto e bom som:
- Meu pai meteu a cabeça de minha mãe na poça do palheiro das vacas.
A pobre e ingénua Jerónima prontamente respondeu, em tom ameaçador:
- Cala-te! Quando chegares a casa a tua é que vai para poça!
NB – Esta estória é real, apenas se alteraram, para não ferir suscetibilidades, os nomes das personagens intervenientes.