PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A VIOLA DA TERRA
Embora sem nenhuma ligação directa à música popular e ao folclore açoriano, nem sequer com alguma formação ou competência musical, mas simplesmente como apreciador de costumes, tradições e valores culturais, recordo-me que desde sempre ouvia as mais nobres referências aquele, tão interessante, instrumento musical designado por “viola da terra”, que, na década de cinquenta, ainda existia em muitas casas da Fajã Grande, das Flores, como ícone quase sagrado e que importava perseverar.
Trata-se de um instrumento musical de cordas, tipicamente açoriano que, segundo reza a história, terá existido, desde os primórdios do povoamento do arquipélago e que é considerado como que um símbolo emblemático das ilhas açorianas, dos seus costumes e tradições, da sua música e, sobretudo, do seu folclore.
Na Fajã Grande e, muito provavelmente, em todo o arquipélago açoriano, na década de cinquenta, o uso da “viola da terra”, ligava-se, sobretudo, aos cantares festivos, aos "balhos”, casamentos, danças de carnaval, serões animados, matanças do porco e outros divertimentos e, por vezes, até em trabalhos colectivos.
A viola da terra, também conhecida como viola de dois corações, é um instrumento semelhante ao violão mas, sensivelmente, mais pequeno. Uma das suas características é a existência de um orifício, no tampo da caixa-de-ressonância, em formato de dois corações unidos, com as pontas em sentidos opostos e ligados por um coração mais pequeno, em vez do habitual buraco, geralmente, redondo, que os outros instrumentos possuem. Há quem, virando a posição da viola, veja nos corações invertidos o desenho de uma coroa do Espírito Santo, símbolo do Paráclito, de tanta devoção e com tantas tradições entre o povo de todas as ilhas. O desenho dos corações parece estar ligado ao sentimento de saudade, tão comum entre as gentes açorianas, sobretudo devido à sua eterna vocação emigrante e, por isso, a viola da terra, muitas vezes, era levada na bagagem pelos emigrantes que demandavam quer os Estados Unidos quer outras paragens.
Dizem os entendidos que “este instrumento musical possui cinco parcelas (ou ordens) de 12 cordas, sendo afinado, do mais agudo para o mais grave, mi, si, sol, ré, lá nas ilhas dos grupos Central e Ocidental, enquanto no grupo Oriental dos Açores a afinação da corda prima é feita num tom mais baixo, ou seja em ré.”.(1)
No Pico, na década de cinquenta e seguintes eram frequentes os serões chamados “Folgas”, onde a viola da terra estava sempre presente e desempenhava papel predominante. Geralmente à luz de uma Petromax ou de candeeiros a petróleo o povo bailava, por vezes quase até de madrugada. E dizem os historiadores que se juntavam os casais, em casa própria e com a viola da terra e outros instrumentos tocava-se e bailava-se a Chamarrita.
A viola da terra, antigamente, como que fazia parte da vida de cada família. Regra geral era uma herança de pai para filho, quando o pai morria, o filho mais velho ou outro que a soubesse tocar (e quase todos o sabiam fazer) recebia-a como herança. E, nas casas, as mulheres quando faziam a cama, era tradição colocar a viola sobre o travesseiro, ou no meio da cama, com um xaile à volta. Na Fajã Grande e creio que no Pico também, em tempos mais recuados, dizia-se que uma família que ficasse de luto por um familiar próximo devia esconder a viola no tecto, enquanto durasse o chamado “luto pesado”. Daqui se conclui a importância e do significado da viola da terra e o facto de simbolizar alegria e divertimento, um e outro, interditos em momentos de dor e sofrimento.
Segundo o recente testemunho de José Agostinho Serpa, um dos poucos tocadores actuais e o único construtor da “viola da terra” na ilha das Flores, divulgado no “Forum Ilha das Flores”, no passado dia 18 de Janeiro, «A viola da terra já esteve praticamente votada ao abandono na ilha das Flores. Hoje existem, apenas, dois ou três tocadores». No Pico, felizmente, esse número parece ser bem maior.
(1) - Colaboração de Maria Antónia Fraga