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ABA LOIRA

Quinta-feira, 08.06.17

No baixio rebuscado e negro, virado a oeste havia um gigantesco pedaço de lava em forma de aba. Uma espécie de furna, excêntrica e pouco recoberta mas recôndita e solitária. Quando bravo e em momentos de maré cheia o mar acicatava-a, provocando-a com as ondas altivas e assombrosas, salpicando-a de salmoira acetinada, tingindo-a de espuma esbranquiçada, enchendo-a de água refrescante. Depois, com o descer da maré e, sobretudo com amansar das ondas, a água perdia-se por entre gretas e frestas circundantes e a espuma, queimada pelo Sol, evaporava-se deixando-a coberta de um perfume intransigente e esverdeado.

Era o tempo dos sargos, das garoupas, dos peixes-reis, das prumbetas e havia no rebordo exterior da aba uma espécie de bancada, tosca e assimétrica, onde nos sentávamos, e no papel por macular de desejos inconfessados, lançávamos ao mar caniços bem aparelhados e recheados de iscos apetitosos.

Ficávamos ali a sonhar, a remoer sonhos, a joeirar desejos e quando um ou outro peixe mordia o isco enchíamo-nos de contentamento e gáudio. Recolhíamos de imediato os caniços revoltados, desprendíamos os pobres peixinhos as espernear na ânsia de se libertarem. De mãos dadas estarrecíamos. Quando a safra terminava olhávamos lá ao longe as rilheiras dos navios desenhadas no oceano, as sombras de ilhas perdidas no horizonte, os ecos dos vulcões adormecidos no seio da terra, o perfume da lava hibernada junto ao mar. Depois perdíamo-nos, entontecidos, absortos, mordendo a tarde e alongando na boca o perfume das flores e o gosto dos frutos. Olhávamos as ondas amordaçadas e aparentemente tímidas e enchíamos os sonhos que se espelhavam no brilho amarelado do horizonte.

Era nessa aba que se acolhiam os devaneios que se enfadavam dentro de nós. O vento aproximava-se, sentíamos o seu perfume e agonizávamos à beira de um silêncio que só nós ouvíamos. Depois era um cortinado branco, bordado de bruma e encastoado de pérolas, que nos envolvia. Ninguém mexia em nenhum desejo apenas sobravam os arrependimentos das gaivotas entontecidas pelo perfume das vides que lá ao longe, teimavam, laboriosamente, em amadurecer os cachos suculentos e apetitosos.

O regresso era o termo do encantamento, de um rodopiar de ventura, de um desfraldar de desejos e sonhos. Todas as portas se fechavam como se fossem diques que impediam a passagem dos navios.

Não havia nenhuma cagarra morta. Não se viam ervaçais amordaçados pela passarada. Ninguém desenhava a revolta do vento. Ninguém sugava os respingos da maresia. Ninguém apagava as rilheiras desenhadas entre os vinhedos, transformados em trilhos. Apenas se gravava a certeza do apoio e da ajuda a simuladas tragédias. No ar pairava um envolvimento recíproco mas tudo se desvanecia. Tudo se perdia. Apenas aquela aba, loira e entontecida, que existia naquele baixio rebuscado e negro, virado a oeste, se envergonhava deserta, a apontar para o céu azul e à espera que a maré voltasse a subir e, de novo, a enchesse de sonhos e de magia.

Era o tempo dos sargos, das garoupas, dos peixes-reis, das prumbetas…

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publicado por picodavigia2 às 12:27





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