PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
ABSOLUTA NORMALIDADE
As férias passaram velozes e cedo se impôs o regresso ao Seminário de Ponta Delgada. A viagem entre as Flores e São Miguel, agora já com experiência acumulada do ano anterior, decorreu muito bem, até porque a partir do Faial tive a companhia do Manuel Faria e dos meus colegas das outras ilhas. Na viagem, para as Flores, em Junho, também tivera muita sorte, pois a partir de Angra, viajara junto com a minha vizinha Lucinda, a mãe de meu padrinho, que muito me apoiou e auxiliou.
Ao reentrar no Seminário, também, já conhecíamos a casa, por conseguinte já nada nos indignava, surpreendia ou sequer atemorizava. Agora que éramos os mais velhos, com experiência acumulada, como que nos sentíamos donos e senhores do velho casarão, revelando alguma disfarçada superioridade sobre os alunos que o demandavam pela primeira vez. Ocupámos as camaratas do segundo ano, escolhemos as melhores camas, optámos pelos lugares mais atractivos e até decidimos que as carteiras maiores seriam nossas.
No entanto, a chegada dos alunos de São Miguel veio alterar tudo isto. Os prefeitos entenderam que seriam eles a decidir sobre as nossas opções e, como o segundo ano não cabia todo nas camaratas que lhe eram reservadas, optaram por mandar os mais pequenos para a camarata do primeiro ano. Para tristeza minha, eu fui um deles, embora me tenha sido permitido colocar a minha cama logo à entrada da porta. No entanto, custou muito, separar-me dos meus colegas e abdicar do lugar inicialmente escolhido.
Procedimento idêntico teve um dos prefeitos, relativamente às carteiras. Retiraram aos mais pequenos as carteiras grandes, para as entregar aos mais velhos, maiores e, talvez, com mais aproveitamento escolar, mas não mais aplicados do que nós. Estes procedimentos discriminatórios provocaram alguma revolta nos mais pequenos, entre os quais se incluíam, para além de mim, o Jorge Nascimento, o Manuel Faria, o Lima Oliveira, o Humberto Clementino e o José Augusto.
O ano lectivo, no entanto decorreu como muita naturalidade e sem os sobressaltos, os temores e as contrariedades dos primeiros tempos, do ano anterior. Abandonei a infância e transformei-me, de repente, num homenzinho. O meu corpo transformou-se, radicalmente, e comecei a perceber que, afinal, o mundo era composto por ideias, por costumes, por atitudes e, também, por seres humanos diferentes: homens e mulheres. Numa palavra: tonei-me um homenzinho.