PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
ALEGREMO-NOS ENQUANTO SOMOS JOVENS
(Texto de Maria de Jesus Maciel, esposa do Emílio Porto, publicado no Semanário “O Dever”, no aniversário do seu falecimento.)
“Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples.
Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra coisa todos os dias são meus.”
Alberto Caeiro
E todos os dias sãos seus. De uma vida simples, a comunicar, a criar, a cantar. Começo pela identidade: Manuel Emílio do Porto, filho de Manuel Pereira do Porto e de Laureana Emília Pimentel nasce na Ribeirinha, freguesia da Piedade do Pico, a 20 de Dezembro de 1935.
É pela mão de D. José Vieira Alvernaz e de seu irmão Monsenhor Manuel Alvernaz que dá entrada e faz os seus estudos no Seminário Diocesano de Angra do Heroísmo. Aluno distinto, sobretudo na disciplina de Canto e Composição, para a qual revela desde cedo particular interesse e aptidão, compôs temas musicais que lhe valeram receber o primeiro e segundo prémios, da Academia Dr. Manuel Cardoso do Couto, o primeiro prémio e menção honrosa da Academia D. Bernardo de Vasconcelos, assim como a batuta do maestro Edmundo Machado de Oliveira para a regência da Capela do Seminário.
Forma-se em Teologia em 1962, recebe as Ordens Sacras, serve a Igreja, primeiro na actividade paroquial e posteriormente como Capelão militar, em Angola, até ao final de 1975. O comandante do Batalhão em que serviu nas patentes de alferes, tenente e capitão, louvou-o pelas suas qualidades militares e morais: “oficial inteligente, de conhecimentos vastos e de uma cultura musical apreciável”, “uma alma aberta às vicissitudes e dificuldades” que muitos então viviam, recebendo “de todos o respeito, a admiração e a amizade”.
Em 1975 é eleito Vereador da Câmara Municipal das Lajes do Pico. No mesmo ano é deputado independente do Partido Socialista, desempenhando funções no Parlamento Regional nas duas primeiras legislaturas. Exerce os cargos de Secretário da Mesa da Assembleia Regional e da Comissão de Assuntos Políticos e Administrativos.
Em 1976, dispensado das Ordens, dedica-se ao ensino nas Lajes. Primeiro no Externato, depois na Escola Preparatória/Secundária, como professor de Língua Portuguesa e Educação Musical. Em 1986, fazendo parte do Conselho Directivo, e para melhor favorecer a população do concelho, cria, com outros dois colegas, o Ensino Secundário na mesma escola. Durante o percurso escolar, e para actualizar e desenvolver a sua actividade musical que exerceu até à reforma, faz o Complemento de Habilitações na Escola Superior de Setúbal. Paralelamente com a actividade lectiva vai constituindo grupos corais infantis e o grupo de cantares de professores. Organiza e ensaia Ranchos de Natal e de Reis e dá o seu contributo a outros com temas que compôs e harmonizou. Colabora no festival “Baleia de Marfim”, é premiado diversas vezes, não só nas Lajes, como nos festivais da Povoação e da Figueira da Foz, onde recebe o Prémio de Música na Gala Internacional dos Pequenos Cantores.
Cria e dirige capelas litúrgicas e grupos corais, nomeadamente na paróquia da Conceição, Angra do Heroísmo, 1962 -1964; S. Caetano (Pico), 1964-1969; Sanza Pombo (Angola), 1969-1971; Ponta Delgada, 1971-1973; em Cabinda, 1973-1975. A partir de 1976, nas Lajes, na Ribeirinha e em S. Mateus, no Santuário do Bom Jesus. Aí, cerca de duas décadas, reintroduz no ciclo festivo, não só os textos clássicos tradicionais, como o tríptico de Tomás Borba, mas sobretudo renova o canto litúrgico, em parte com temas da sua autoria.
Quando jovem, ainda na década de sessenta, (1968-1969) foi Mestre da Filarmónica Recreio dos Pastores de S. João, e mais tarde da Filarmónica Liberdade Lajense, nas Lajes. Em 1983, no centenário de Lourdes, forma o Grupo Coral das Lajes do Pico. Na sua actividade, ao longo de 28 anos, para além de diversas actuações nos Açores, no continente português e no estrangeiro, deixa parte do seu repertório registado em cinco CDs: - Música Popular Açoriana, Montanha do meu Destino, Música em tempo de festa (CD duplo: CD1 - temas de carácter tradicional e popular; CD2- temática religiosa), e por fim, dois CDs – Espírito Santo e Natal –, tendo participado ainda no CD - Os Melhores Coros Amadores da Região. Para além da composição de textos sacros, harmoniza e compõe um significativo número de temas, quer da música tradicional, quer da nova música açoriana, quer no fado: “Montanha do meu Destino”, e “ Bom Jesus Milagroso” (Oração do Peregrino). De referência ainda é a célebre harmonização das Ilhas de Bruma, bem como os arranjos corais do Hino Nacional, do Hino dos Açores e Hino do Espírito Santo, sendo da sua autoria, entre outros, a composição do Hino de Santa Cecília, Hino ao Bom Jesus, Vila Mãe (Hino às Lajes) e do Hino da Santa Casa da Misericórdia do Nordeste.
De temática diversificada é igualmente a colaboração jornalística: musical, religiosa, política, social e cultural. Colaborou nos jornais Ilha Maior e no Tribuna das Ilhas, com destaque para o Dever (Farol da Ponta) e no blog Alto dos Cedros. Nos seus artigos é um grande defensor da Ponta da Ilha. Para ele, como já fora para Nemésio, aquela é a sua “Terra Santa aproada a Sueste”. No seu Farol de afectos, deu força e visibilidade a uma Ponta esquecida, projectando sobre ela uma luz única que só uma grande afeição é capaz de prodigalizar. Para a Piedade propõe o estatuto de Vila. Para a Ribeirinha – onde quis ficar para sempre – para a sua Ribeirinha que fora elevada a freguesia quando ele fora deputado, vai o seu último acto de cidadania: uma petição dirigida ao Parlamento para que não seja extinta. Acompanha entusiasmado, participa e regista as actividades das “Semanas Comvida”, da Ribeirinha, da Piedade e da Calheta. Grande defensor das freguesias rurais, do valor histórico e do significado que elas representam na vida das populações, deixa escrito: “é um crime se alguma delas for banida do mapa”.
Publica os livros: Canções Populares Açoreanas (1994), Senhor, Levanta os Teus Olhos… (1999), O Meu Cancioneiro, (2001), 25 anos a cantar – Grupo Coral das Lajes do Pico, (2008), tendo entretanto colaborado no livro Grupos Corais e Instrumentais de Portugal, de Lauro Portugal, em 2007.
Teria D. José antevisto os seus dotes musicais, aquando da sua vinda da Índia ao Pico, em 1950? No seu olhar atento o que viu nele, naquele curto contacto que o encaminha logo para o Seminário? O que sabemos é que o jovem de então lhe ficou grato para sempre. E essa gratidão viria a manifestar-se, particularmente nos tempos difíceis vividos pelo Patriarca na Índia e no exílio que se seguiu em Angra. Em 1980, e então deputado, Emílio Porto organiza uma petição de reconhecimento pela actuação corajosa de D. José, quando as possessões portuguesas foram invadidas e anexadas à força pela União Indiana. E merecidamente, nesse mesmo ano, o Patriarca vem a receber a Grã-cruz da Ordem do Infante, das mãos do Presidente da República, Ramalho Eanes.
A música, na dimensão mais expressiva que é o canto – a voz é o instrumento musical por excelência – para a qual o pai já o iniciara em menino, será sempre a companheira predilecta da sua vida, nas celebrações religiosas e nos momentos de descontracção de entretenimento e de cultura”; a segunda preferência – a escrita – embora por muito tempo arrumada na gaveta, não é esquecida, apenas ficando no subconsciente. E quando decide dar os primeiros passos, fá-lo de forma tímida, primeiro com pseudónimos: xyz, xp.com, depois com o nome de família J. Janeiro, e por fim, com o seu próprio nome.
Para além destas preferências, regista-se também a culinária e jardinagem, entusiasmando-se na criação e cultivo de flores e árvores de fruto, vivendo sempre próximo da natureza que a sua ilha lhe oferece. Tem gosto pelas viagens, que só tardiamente tem possibilidade de fazer. Fosse qual fosse o destino, santuário, cidade ou país (Santiago de Compostela, Monserrat, Mont Saint Michel, Roma, Terra Santa, Nápoles, Capri, S. Petersburgo ou Istambul), corre atrás das novidades musicais ou de outras clássicas que em jovem apreciara e agora pode adquirir. As sementes das plantas ou árvores exóticas são a sua predilecção, que podiam estar no chão da rua, nas muralhas ou até na torre de Herodes em Jerusalém. Tudo o que é novidade quer trazer para a sua terra. É a ela que dedica um afecto forte e incondicional. E foi nela que decidiu – e gostava – de viver. Como se a Montanha fosse – e foi – o seu destino.
É agraciado com o Grau de Comendador da Ordem de Mérito pelo Presidente da República Jorge Sampaio, em 2001, e com a Insígnia Autonómica de Mérito Cívico, pela Assembleia Regional dos Açores, em 2008.
Herdeiro de um sorriso franco e divertido, de gargalhadas sonoras que escarneciam e esconjuravam as situações mais ridículas, é a educação nos valores do trabalho e do estudo que lhe foram incutidos na infância, que pautam o caminho que lhe coube percorrer, agora confinado a duas datas.
Deixa a vida, cantando, com o seu grupo coral: “Lá no cimo da Montanha”, em plena noite de ensaio, na Filarmónica Liberdade Lajense, a 11de Abril de 2012.
Na madrugada desse dia concluíra a sua “Epístola aos Estorninhos” (dirigida aos companheiros da primeira hora, e que acabaria por ser a homília da celebração litúrgica dos 150 anos do Seminário). Escrita num estilo irónico como gostava, por dar mais expressividade ao conteúdo, terminava inesperadamente em tom místico. “Acredito em Cristo Ressuscitado e no Seu Santo Espírito”. É que, apesar de dispensado das Ordens, de ter optado pelo casamento, e fê-lo duas vezes, nunca deixou de ser um homem da Igreja e um homem de Fé. Basta recordar “a unção, a doçura, a religiosidade” que os seus cânticos conferiam ao acto litúrgico. Que lutou até ao fim por uma Igreja coerente e íntegra. Finalmente, compreenderam essa linha de vida, os sacerdotes que celebraram as cerimónias exequiais. Que o fizeram em concordância com as Ordens Sagradas que recebera e com a dignidade e solenidade consentâneas ao momento e ao homem crente que ele fora.
Se ele está à vista de Deus – está a reger o Coro dos Anjos como disse, ao vê-lo partir, o amigo Artur Goulart – deve ter olhado com encanto o seu Grupo Coral. Que caído por terra com a sua morte, foi capaz de reerguer-se. E que hoje é seu Maestro o Professor Hildeberto Peixoto, o menino que outrora fora seu aluno. Que foi acompanhando a caminhada no estudo e a quem chamava afectuosamente o rapazinho da Piedade. Que a ele recorrera ainda estudante, para cantar a voz de tenor, depois para tocar órgão e sobretudo clarinete. Representando cada vez mais a esperança do tempo futuro. Ainda sem saber que esse futuro se faria presente tão depressa e inesperadamente. Por isso “Alegremo-nos enquanto somos jovens…que amanhã seremos húmus”, como nos ensinou a cantar no Gaudeamos Igitur – o Hino dos Orfeonistas.
São memórias de uma vida simples, que se foi humildemente multiplicando em modos vários, que aqui ficam como testemunho.
Apenas algumas. Por mais que dissesse ficaria sempre aquém.
Porque, na verdade, os mortos são pessoas completas.
Pico, 11 de Abril de 2013
Maria de Jesus Maciel