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AUTO DA DESTRUIÇÃO

Quinta-feira, 20.03.14

João Isirgo decidiu relegar os seus mais sublimes sentimentos, colocando-os em prateleira putrefacta e passou a usufruir de um dinâmico vazio, que o tornava aberrante, insuportável e, quase desajeitadamente, energúmeno. Nenhum homem pode desdenhar ou abandonar uma sentimentalidade persistente, mesmo que dotada de características que pouco ou nada abonam da sua dignidade. O desdém de si próprio é uma intempérie incontrolável e João Isirgo sentiu-o, embora desajeitadamente, por isso deu azo a sucessivas tentativas a fim de se erguer e sair do lodo em que jazia. Fracassaram todas! Todas não, pois num último e quase gigantesco esforço, na tentativa infrutífera de acalmar tempestades e alcançar a quietude que o conduzisse ao supremo domínio de todas as estrelas do firmamento, João Isirgo subiu um, dos muitos degraus que o separavam do patamar da não desistência. Mas o seu imperturbável desiderato estava cada vez mais longe de ser alcançado. Havia, ainda, uma vergôntea frágil em que se poderia apoiar e, sob a qual, tentou esconder-se, balbuciando palavras sem nexo, sem que alguém as procurasse entender ou sequer ouvir, assimilar e transformar num texto onde o sem sentido e a limitação espessa e expressa dos conteúdos não fossem pressentidos. Percorria, assim, o percurso de um movimento de distorção circular, não desejado e parcialmente encontrado. Assim quando atingisse o circo do nada onde estava contida a pureza original, inadvertidamente perdida, havia de despojar-se de todos os seus sonhos inócuos, despejá-los num lugar lúgubre, tormentoso e eterno, onde se enrolassem em espirais de espuma branca.

Estranhas convicções, as de João Isirgo, que o levaram a auto suplícios nauseabundos e mefíticos, onde a noite não encontrava o fim e onde as trevas pontificavam como monumento irreverente, astuto e simbólico do nada.

Foi então que a loucura se apossou-se dele e o lançou num pântano deserto, onde deambulou sozinho, em busca de um sinal, talvez de uma luz ou voz que lhe trouxesse uma penumbra perene e infinita, necessária e exigida por uma ascensão lenta de ser e não ser ao mesmo tempo.

Regou, então, o tempo com alecrim e poejo, cantou canções de embalar em manhãs escuras, porque o sonho não era mais do que a ternura da solidão e da criação de espaços míticos, onde se conjugava abundância do destino.

João Isirgo, mesmo sem estátua em praça ou jardim, ressuscitou a certeza de um tempo abandonada, cicatrizado pelas raízes das pedras de lava, onde escoava o enxofre da acuidade inconstante e onde se reduzia a cinza, o prurido perene de todos os sentimentos que tão ingenuamente, havia renegado.

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publicado por picodavigia2 às 07:14





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