PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
BICHAS DA QUARESMA
Quando me fixei no norte do país, mais concretamente no Douro Litoral, muito pouco sabia dos costumes, das tradições, dos hábitos, da maneira de ser e até de falar do povo da região duriense. Mas tive sorte, porque abraçando o ensino e, na altura, inspirando-me no Diário de Sebastião Gama, fiz sentir aos meus alunos, logo no início do primeiro ano lectivo em que leccionei, que estávamos ali, não apenas para ser eu a ensiná-los, mas também para aprender com eles tantas coisas que eles sabiam e que eu desconhecia, sobretudo acerca da terra onde viviam e onde eu era um estranho.
Todos aceitaram de bom grado a proposta, cumpriram-na com zelo, gosto e competência e, algum tempo depois, podia orgulhar-me de muito já conhecer sobre a terra que agora assumira como minha.
Entre os variadíssimos temas sobre os quais foram dissertando, um ainda hoje recordo com persistência e que me veio, ontem, à memória, quando transitava, pela minha rua, com uma boa parte dos passeios ladeados por um vasto e amplo pinhal, e verifiquei que o chão estava repleto de lagartas de pinheiro.
Pois foram os meus alunos, há muitos anos, que tudo me ensinaram sobre elas, quando em certa aula, por esta altura do ano, me falaram das “Bichas da Quaresma”, nome pelo qual são designadas pelo povo desta região, as ditas lagartas.
- São umas bichas muito feias, setôr. Meu avô diz que elas atacam os pinheiros, enfraquecem-nos e até os podem destruir. – Afirmava um. Perante a minha assumida ignorância, logo outro acrescentava:
- E também fazem mal às pessoas. Devemos ter muito cuidado e não lhes tocar porque nos irritam a pele, os olhos e o aparelho respiratório.
- Até os cães, se as farejarem ficam com o focinho muito vermelho e inchado.
Logo um, lá do fundo da sala acrescentava, perante o meu espanto:
- É verdade, setôr. Meu tio tinha um cão que andava a farejar as “Bichas da Quaresma”. Meu tio deixou-o continuar e ele abocanhou uma e começou logo a ganir que parecia doido. No dia a seguir tinha a boca toda seca, nem conseguia comer. Foi preciso meu tio ir com ele ao veterinário. O cão esteve quase a morrer.
- Ó setôr, – levantava o braço, uma menina, logo ali à minha frente – elas até fazem ninhos nos pinheiros. A minha avó avisou-me para nunca tocar num ninho de um pinheiro porque eles não são de passarinho, são das “Bichas da Quaresma”. Minha avó também me disse que elas saem do ninho logo de manhãzinha para se alimentarem durante a noite e ficam presas por um fio de seda, através do qual conseguem regressar ao ninho. Também é perigoso tocar no fio.
Finalmente um dos mais expeditos e sabedores, desafiava-me com ar solene;
- E o sector sabe porque é que elas descem dos pinheiros e andam pelo chão, em fila, parecendo um combóio? – Como manifestasse a minha ignorância, ele perseguiu: - É para se enterrarem e depois se transformarem em casulos e a seguir em borboletas para voltarem a por os ovos nos pinheiros e nascerem mais bichas. É nesta altura que elas andam pelo chão e são mais perigosas.
- Então elas têm metamorfoses, como o bicho da sede. – Acrescentei. Depois concluindo: - Sim senhores, bela lição, muito aprendi. Só não percebi ainda por que é que lhes chamam “Bichas da Quaresma”?
E logo eles em coro:
- Porque é nesta altura, na Quaresma que elas descem dos pinheiros e andam pelo chão e é nesta altura que elas são muito mais perigosas.
Fiquei esclarecido e, sobretudo, prevenido. Por isso mesmo, passados tantos anos, ao ver hoje o chão pejado daqueles asquerosos e temíveis vermes, fugi delas como o diabo da cruz.