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CARTA ABERTA A ALFRED LOUIS

Quinta-feira, 30.01.14

(TEXTO DE GABRIELA SILVA)

 

Estamos a comemorar o centenário do teu nascimento. Durante muitos anos não sabia da tua existência. A ilha demorou a reconhecer os méritos dos seus ausentes. Não foste apenas tu que ficaste na memória discreta e silenciosa de muitos sem conheceres o fulgor das manifestações póstumas. Foi em Tulare que me falaram de ti, da tua vida, da tua obra, da tua coragem, da tua tenacidade, do teu brilho... Na realidade tu foras também cidadão de Tulare e Los Banos desde bastante jovem e até à morte. Da Fajãzinha foste bem menos tempo mas, às tantas, foi da ilha que levaste o melhor da tua força e (quem sabe?) da tua capacidade para a escrita: uma escrita sentida na distância ainda a pensar na ilha e no “teu” Pico Redondo donde cedo abalaste, mas levando na memória elefantina as imagens da rocha vermelha nos dias em que o sol se punha naquele horizonte que te ensinou a fuga. Pertences a um grupo de ilustres de uma freguesia que viu nascer muitos nomes sonantes nas mais variadas vertentes culturais e que continua a produzir hoje génios à sua dimensão. Homens e mulheres que ultrapassam as limitações da nossa pequenez e se projectam, pelo merecimento de um trabalho empenhado e da força inabalável do seu querer, para além das fronteiras desta estreiteza de terra. Quando, no ano passado, comecei a falar de ti percebi que muitos ainda se lembravam da tua mãe e alguns adolescentes já haviam compulsado um dos teus livros.

 ...Sabes? Tenho da Fajãzinha recordações muito especiais ligadas ao início da minha vida profissional quando, aos dezoito anos fui leccionar para uma escola nova em folha. Na altura pensei ser, não apenas a docente estreante do edifico mas também a primeira professora do ensino oficial que pisava a escola e ensinava na freguesia. Agora sei que o primeiro auto didacta que fez da Fajãzinha a freguesia que ainda é hoje, foste tu! Sei que ensinaste a ler e escrever a muitos jovens do teu tempo e que deixaste atrás de ti muitos homens livres porque a alfabetização é inquestionavelmente uma forma de liberdade. ...Quando sigo os teus passos não me encontro com um homem parado no Rossio nas tardes de domingo, de mãos nos bolsos à espera da vida acontecer. E, no entanto, na tua poesia perpassa saudade e as tuas palavras albergam memórias de uma localidade aparentemente sem história. Será que as fugas nos fazem clarividentes ou é na distância que encontramos resposta para as nossas interrogações? Foi preciso partir para recordar com tanta saudade o que já lá estava antes da partida? É que tu não foste um emigrante como os destes tempos modernos que em vinte e quatro vêm de S. Francisco às Flores. Tu partiste e nunca mais voltaste mas ficaram impregnadas em ti as marcas de uma insularidade sem limites e uma saudade visceral dos nossos hábitos, da nossa gastronomia, da nossa cultura, das nossas crenças... E isto é ser cidadão de corpo inteiro, isto é ser cidadão do mundo e do berço onde se viu a luz.

 ...Mesmo decorrido um século a ilha, no essencial, é a mesma. Se chegasses agora à Fajãzinha encontravas o Rossio com duas pás de cimento ao centro e mais dois ou três bancos de madeira ancorados a um canto mas ainda nos dão sombra os mesmos plátanos e a vista de um lado e doutro ainda são a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios e a Casa do Espírito Santo. As estradas alcatroaram-se, algumas casas sofreram melhoramentos mas o essencial está ali. Até a tua casa, a casa onde nasceste, está lá. No verão passado fizemos uma festa em tua honra e levámos os nossos convidados até à porta. E do lugar que foi o teu berço, olhámos a rocha num fim de tarde nostálgico mas sereno. Viemos depois para o Rossio comer inhames com linguiça, morcela e tortas de musgão. Mais tarde dançámos a chamarrita e o pézinho como se estivéssemos a cumprir uma vontade tua expressa num daqueles teus poemas em que recordas com saudade estas especificidades ilhoas que levaste no peito.

...Mas saíamos a pé da tua freguesia e façamos o interior da ilha. Aí sim, há uma virgindade intacta na paisagem que nos rodeia. A Rocha dos Bordões continua a ter a altivez erecta dos nossos baleeiros e as lagoas mantêm a beleza serena e secreta que fala de segredos, de partidas, de afectos e despedidas. A vegetação do interior da ilha é sempre matizada de verdes de tons e mais tons e impregnada de uma humidade sangrenta da água virgem do centro desta terra que escorre lágrimas de água doce e fresca em todas as barrocas. Aqui e além tufos enormes parecem provocar-nos para o desafio de uma caminhada no tapete fofo mas perigosos de musgos altíssimos que conferem um charme inquieto a dezenas de terrenos virgens que preenchem a maior parte do interior de uma ilha pudica, recatada, discreta...

 ...O mar, o nosso mar continua caprichoso como sempre foi. Azul até à transparência, sereno até parecer silencioso e inerte, mostra nalguns dias a fúria do seu estar. E há invernos em que joga tetrápodos como quem atira ao ar bolas de futebol e enrola no cais com a fúria de amante embravecido com a ausência ou a traição.

...Já não há baleeiros mas repousam inertes em museus de pequena dimensão os harpões da coragem e um ou outro bote, agora em terra firma, contam histórias de heróis de um tempo em que o medo e a coragem se misturavam e perdiam quando a proa apontava a baía de S. Francisco que era mais do que um destino uma certeza. E quando o medo ousava tocar ao de leve um coração menos sereno sempre havia um homem que contava histórias de ventura e de sucesso nessa terra magnífica onde as “águias” de outro davam pão aos filhos e segurança ao futuro.

 ...Sei que foste juiz em Los Banos e que mais tarde abandonaste por altercações com a autarquia. Até nisso, és todo da Fajãzinha, freguesia politicamente diferente de todas as outras que conheço de perto na Região. Gente com opinião e cultura política, gente que respeita os seus ideais em todos os momentos, gente com uma profunda firmeza no querer e uma sábia inteligência nas suas escolhas, gente que não se verga a déspotas ou falsos heróis, gente crítica, dura, justa e directa. Gente capaz de se colocar frente a frente sem medo mas que não ousa colocar em causa coisas sagradas como a solidariedade, a amizade ou os laços de família. Mesmo quando pai e filho alternativas diametralmente opostas. Saber separar as coisas com rigor e com dignidade é uma característica da firmeza de carácter dos teus antepassados, Alfredo. Podes orgulhar-te de ter nascido numa freguesia onde os interesses desta estão acima de querelas pessoais ou questões políticas e onde, no momento de trabalhar para a colectividade todos arregaçam as mangas para o bem de todos. Esta postura invulgar na maioria de outros locais da ilha fazem perceber que a Fajãzinha marca a diferença pela positiva em muitas áreas. Praticamente sem analfabetismo a freguesia encerrou as portas da sua escola por falta de alunos alguns anos atrás. Mas os jovens que restam não param, e, mesmo divididos por poucas famílias, são os únicos que mantêm a porta aberta à única Filarmónica da ilha que já tem organizado digressões diversas fora da ilha e mesmo dos Açores pela qualidade técnica da sua execução.

 ...Somos ainda uma ilha de emigrantes. Seremos sempre uma terra de partidas e chegadas mas não deixaremos nunca de ser também uma terra de gente ordeira, cordial, trabalhadeira e generosa.

 ...Este Verão vamos comemorar o centenário do teu nascimento e recordar outros nomes que, como o teu, honram a freguesia da Fajãzinha, o concelho das Lajes e a ilha das Flores. ...No dia da Senhora dos Remédios, o Rossio vai encher-se de gente. E todos vão ouvir falar de todos. Os sinos hão-de repicar para chamar as gentes, há-de sentir-se o cheiro doce da caçoila com inhames, hão-de fritar-se torresmos com linguiça, há-de fazer-se a festa com baile no Rossio ao som das cordas e das vozes dos nossos homens, ecos de um século de história.

 ...E ao fim da tarde, havemos de ir todos em romaria silenciosa à tua porta, no Pico Redondo, para olhar o pôr-do-sol em direcção à rocha verde toldada de muitos tons. E enquanto no cemitério de Los Banos repousam os restos mortais do poeta, alguém dirá por ti um dos teus poemas. E faremos silêncio. O silêncio respeitoso que a tua memória nos merece.

 ...As mulheres, de regresso da terra, com a lata à ilharga, hão-de parar também no Pico Redondo para ouvir o bater das trindades e recordar o poeta da ilha que tendo o corpo

na América deixou bem vivas nas Flores as mais doces memórias.

 

Gabriela Silva

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publicado por picodavigia2 às 21:08





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