PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
CENAS TRIVIAIS
Cenas Triviais é um belíssimo conto de Nunes da Rosa, em Pastorais do Mosteiro, no qual o autor narra a fuga de muitos dos habitantes das Flores nas baleeiras americanas que demandavam a ilha na procura de água e víveres e que depois escapuliam para a América. A estória baseia-se num episódio muito frequente, na altura, na ilha das Flores. Embora supostamente, a julgar pela descrição que o autor faz da freguesia do Mosteiro, o espaço fosse aquela pequena freguesia, ao longo do texto o autor faz referências à Baía dos Fanais e ao Ilhéu de Maria Vaz, locais preferidos e adequados às fugas clandestinas.
Aqui tento fazer um resumo do mesmo:
Numa tarde de verão e de grande calmaria, apareceu um iate branco no horizonte. Era um iate que, pouco depois, aproou a terra. Nos campos do Mosteiro, homens e mulheres sachavam o milho. Aos poucos o iate foi-se aproximando-se da ilha e todos os que andavam pelos campos correram, aos magotes, para as suas casas, conversando, cochichando, gesticulando e detendo o olhar na embarcação. Os mais novos foram os primeiros a chegar e as ruas do Mosteiro – pequeninos caminhos estreitos, alagados da água que escorre das grotas, monótonos na fiada tortuosa das casas, tristes pelas horas altas do dia em que tudo abala para as terras – encheram-se de gente. Muitas mulheres, prevendo o que as esperava, começaram a chorar e a soluçar, enquanto as crianças, parando as suas brincadeiras, agarravam-se aos saiotes das mães.
Pouco depois alguns homens de um lado e do outro da freguesia começaram a sair de suas casas, de mala às costas, camisa branca e chapéu na cabeça – parece que vão ruminando mágoas de uma saudade imensa de tudo quanto lhes fica atrás. - Os olhos enchem-se-lhes de lágrimas – nunca lhes pareceu tão bonita a sua freguesia, tão cheia de encanto – e, correndo na direção do mar, recordavam a faina diária, as festas, os costumes, a família e até os animais. Tudo ficava para trás!
O iate acabou por ancorar na baía dos Fanais, por detrás do ilhéu de Maria Vaz. Toda a população da freguesia acorre à beira da Rocha para o ver, Alguns velhos que outrora também partiram, contam como eram estas viagens noutros tempos. Os que partem despedem-se de todos, especialmente dos familiares. Pais, filhos, maridos, mulheres abraçam-se e despedem-se entre choros, murmúrios e recomendações.
Finalmente o grupo dos que partem desce até ao mar pelos trilhos sinuosos da Ladeira do Fundão. Lá em baixo espera-os uma canoa e um homem desconhecido fiscaliza-os e ordena-lhes que embarquem. Sobre a paisagem adormecida cai a tristeza doce do sol-posto, pincelando a luz parda do cerro esfumado dos cabeços, e dando uma tonalidade de vácuo pavoroso à cúpula distante do céu, onde algumas estrelas abrem feericamente a pálpebra luminosa.
No alto da Rocha o silêncio é apenas intercalado por soluços tristes e pelos murmúrios do mar. De lá debaixo vem o som metálico do dinheiro para pagar as passagens. De seguida a canoa parte em direção ao iate, ancorado mais fora. Por fim o iate, virando a proa a oeste zarpou e o povo que se havia acumulado no cimo da rocha regressou, tristonho e silencioso, às suas casas. E tudo terminou!
A manhã seguinte rompeu radiante e perfumada a trevo e a faeiras e o mar, agora deserto, continuava tranquilo mas toda freguesia permanece imersa numa enorme tristeza fixando – um olhar profundo e cismador na curva azulada do horizonte…
O conto foi escrito no longínquo ano de 1894 e Nunes da Rosa dedicou-o a Osório Goulart, poeta, escritor, conferencista e intelectual açoriano.