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CHOQUE INICIAL

Sábado, 22.02.14

Quando entrei, pela primeira vez. no velho edifício do Seminário de Santo Cristo, no antigo Convento dos Jesuítas, em Ponta Delgada, estava receoso, apreensivo e muito amedrontado. Tudo ali era extravagante, estranho, descomunal, esquisito e austero. Habituado às reduzidas dimensões da minha minúscula e simples casa da Assomada, na Fajã Grande, onde nascera e fora criado, amedrontava-me com aquelas paredes altíssimas, aqueles salões enormes, aqueles corredores infindáveis e aquelas escadarias geladas, escuras e gigantescas. Uma onda de estranheza associada a frémitos de medo e convulsões de angústia dominavam-me por completo, em cada hora, em cada minuto, fulminando-me radicalmente. Um choque inicial terrível. Entrei num choro amargo, dolente e convulsivo que, por vergonha, tentava esconder dos outros retirando-me, sempre que possível, para os cantos que julgava mais recônditos, a fim de que ninguém me visse chorar. Desejava ardentemente regressar às Flores, donde, cuidava, nunca deveria ter saído.

Passado algum tempo, no entanto, fui-me recompondo daquele choque inicial, previsível e inevitável. A roupa já se me enxugara no corpo, mas necessitava de mudá-la. Há quatro dias que andava com ela, que a roçara pelos corrimões e amuaras do Carvalho, sujando-a e besuntando-a por completo. Parecia-me que ainda cheirava a vomitado e a terceira classe. Uma imundície a que não podia sujeitar-me, que não devia partilhar com os outros e a que urgia por termo. Antes que o fizesse, porém, vieram chamar-me. Entendia o padre Agostinho Tavares que o nosso principal problema seria a fome, por isso, juntou todos os recém-chegados no corredor central e conduziu-os ao refeitório. Era uma sala grande, com janelas altíssimas, muito clara e com três enormes mesas paralelas e enfileiradas umas ao lado das outras, havendo uma quarta, mais pequena e perpendicular a estas, destinada aos professores. Serviram-nos café quente com o leite e açúcar já misturados, pão e manteiga, esta antecipadamente colocada nos pratos de cada um, através de uma pequena forma de madeira com um êmbolo no fundo. O empregado passava pelas mesas, enchia a forma, voltava-a sobre os pequenos pratos destinados aos alunos, carregava no êmbolo, despejando assim a forma da quantidade de manteiga que ela continha. Apesar de ter muita fome, pois não me alimentava desde a manhã do dia anterior, não tinha apetite e pouco comi, vingando-me no café, saboroso, adocicado e quase a ferver, que me aqueceu o corpo e animou o espirito.

Terminado o bródio fomos conduzidos ao salão de estudo, onde já nos aguardavam as nossas malas.

Foi nesta altura que o Jorge, um miúdo alto, esguio e espadaúdo, veio ter comigo, a pedir-me desculpa e a fazer as pazes, embora isso pouco me animasse, pois continuava sem saber como havia de abrir as malas. Havia sido ele que, a bordo do Carvalho me dera sumiço às chaves. Só mais tarde, enquanto chorava, sentado sobre elas e sem saber o que fazer, o padre Agostinho me procurou, inteirando-se do meu problema. Chamou de imediato um empregado, munido de martelo, escopo e um molho de chaves velhas e já sem uso ou destino. Por sorte e para espanto meu, uma delas abriu a minha mala. O baú, porém, só à marretada, desfazendo-se-lhes não apenas as fechaduras mas até uma das dobradiças, ficando eu como meu pobre e velho baú americano permanentemente aberto.

De seguida, o padre Agostinho, sempre muito solícito e atencioso, indicou-me onde podia tomar banho, conduzindo-me até ao piso inferior, por uma escadaria de pedra. Escolhi a roupa que devia vestir e peguei numa toalha e dirigi-me para o local indicado. O balneário era um pequeno cubículo, com uma prateleira entrincheirada nas paredes, onde podia colocar a roupa limpa e a toalha, e um chuveiro, que se ligava por duas torneiras. Em minha casa tomava banho sentado numa selha de madeira, enquanto a minha irmã, depois de eu me ensaboar, me ia deitando água por cima, por isso, era a primeira vez que tomava banho de chuveiro e não sabia que uma torneira se destinava à água fria e outra à quente, nem muito menos sabia que, abrindo as duas ao mesmo tempo, poderia controlar a temperatura da água. Abri a primeira e a água caía por cima de mim fria como gelo. Novo choque, desta feita térmico. Fechei-a e experimentei a outra. A água pelava como lume. Entre ficar queimado ou gelado, optei pela torneira que abrira inicialmente e tomei um banho geladíssimo. Era com se estivesse na Fajã, no Inverno, a caminho dos Lavadouros para ir buscar à relva a Benfeita e a Toucada e começasse a chover, torrencialmente, sem eu ter onde me abrigar.

Terminado o banho voltei ao baú, para tirar o colchão de casca, a travesseira de musgo e a roupa da cama. Por determinação do prefeito, a minha cama era a sexta, do lado direito de quem entrava na camarata, junto a uma janela que dava para o campo de futebol. Os primeiros espaços ficavam reservados às camas de alguns alunos do segundo ano, pois as camaratas destinadas a estes, no outro lado do edifício, tinham lotação limitada. O Jorge, optou por colocar a sua cama, logo a seguir à minha. Agora falávamos e conversávamos como se tivéssemos sido sempre amigos e não tivesse acontecido aquele episódio das chaves que tanto me arreliara e preocupara. No entanto, passados poucos dias, ele decidiu abandonar o Seminário.

Cansado da viagem, tendo dormido pouco nas três noites anteriores a bordo do Carvalho, a minha primeira noite em São Miguel foi de um sono calmo, profundo e tranquilo. Antes de adormecer, porém, ainda ouvi os três silvos do Carvalho. Naturalmente que abandonava Ponta Delgada com destino a Santa Maria. Apenas daqui um mês regressaria, novamente, das Flores e havia de trazer uma carta da minha irmã. Os olhos voltaram a encher-se-me de lágrimas e o peito de dor, mas adormeci pouco depois.

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publicado por picodavigia2 às 17:18





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