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ÉH SARGAÇO, ÉH SARGAÇO

Segunda-feira, 26.03.18

Eram apenas duas ou três vezes por ano. Alta madrugada, pelas ruas ainda escuras e junto às casas de portas fechadas e janelas com as cortinas corridas, ouvia-se em alto e bom som: “Éh, sargaço! Éh, sargaço!”

Todos acordávamos espavoridos. Vestíamo-nos à pressa, passávamos pela cara um resto de água salobra que ficara da véspera na bacia do lava mãos da cozinha e “ala botes” para o Rolo, em louca correria, carregando cestos e garfos. Meu pai e muitos outros homens, os que com ele iam, diariamente, à erva para as “lagoas” das Covas e da Ribeira das Casas, já lá estavam a escarafunchar por entre as pedras e a demarcar terreno O espectáculo era impressionante e belo: o mar toldado como um manto acastanhado e muito escuro. Ondas gigantes e altivas, soltando rugidos roufenhos ao estatelarem-se nos laredos, despejavam para o enorme Rolo, desde o Calhau do Constantino à Ribeira das Casas, grande quantidade de algas marinhas que ali se iam amontoando, transformando a rusticidade cilíndrica do Rolo, num fofa e aveludada alfombra. No ar exalava um cheiro perfumado de salmoura, de iodo e de espuma. Cada homem, à medida que se aproximava do mar, guiado por leis consuetudinárias e pela consciência de que havia sempre que sobrar um espaço igual ao seu para os que ainda não tinham chegado, ia delimitando com estacas de cana, a área que passaria, por direito próprio, a pertencer-lhe e donde extrairia o estrume julgado necessário para os seus campos. Depois iniciava-se uma enorme lufa-lufa de baldeação do sargaço para o cimo do Rolo. Eram precisos braços fortes a fim garfá-lo para longe dali, não viesse, na próxima maré-alta, à socapa, alguma vaga mais atrevida, que o levasse por completo. Por volta do meio-dia chegavam as mulheres com o bule do café na mão e cestos à cabeça a abarrotar de torresmos, de linguiça, de peixe frito, de tortas, de batatas cozidas, de inhames e fatias de pão de milho ou quartos de bolo. De tarde iniciava-se a trasfega para os “lagos”. Estes ficavam já bem fora do alcance das ondas e resguardados da braveza do mar e dos rigores do Inverno. Os “lagos” eram espaços geométricos, quadrados ou rectangulares, divididos e separados uns dos outros por paredes muito baixas, formadas com pedras do Rolo, encravadas na terra e onde, aos poucos, se ia amontoando e calcando o sargaço extraído do mar e acartado em cestos bem acaculados. Assim como a forma, a sua disposição também era geometricamente perfeita e muito ordenada, formando, à entrada, uma espécie de avenida principal, entrecortada por ruas paralelas, por onde todos pudessem passar, quer agora, quando extraíam o precioso adubo marinho, quer mais tarde, no fim do Inverno, quando o sargaço já tivesse apodrecido e fermentado por completo e fosse levado em carros de bois, para os campos plantados de couves junto mar e que não beneficiavam das forrageiras.

A operação prolongava-se pela noite dentro e, então, o Rolo povoava-se de lanternas e lanternas suspensas em paus enfiados nos montes de sargaço já despejado nos "lagos" e que, apesar de bem acalcados, continuavam a crescer a olhos vistos, tornando-se semelhantes às habitações de um escuro e tenebroso aldeamento.

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publicado por picodavigia2 às 00:05





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