PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
EMÍLIO PORTO
Faz agora precisamente um ano, que “Farol da Ponta”, uma das, até então, mais insignes e respeitáveis colunas do jornal “O Dever”, se apagou. Infelizmente pela razão mais triste, pesarosa e angustiadora. O falecimento do responsável quer pela criação quer pela manutenção semanal, naquele semanário lajense, duma coluna, intitulada “Farol da Ponta”.
A família, os amigos, a vila das Lajes e a ilha do Pico choraram a sua morte, por quanto ela significava uma perda de vulto, não apenas do colunista do “Dever”, mas sobretudo e especialmente de um músico de elevada craveira, de um maestro de inquestionável competência. Que o diga o Grupo Coral das Lajes do Pico, que, na semana passada lhe prestou condigna, justa e merecida homenagem.
Na realidade foi nesta área que Emílio Porto marcou a sua presença, contribuindo, com o seu trabalho e mestria, para o desenvolvimento da cultura musical açoriana. Desde os tempos de aluno do Seminário de Angra, onde, não apenas, fez grande parte da sua formação, mas também onde já se distinguiu como músico insigne, regente de capela e de grupos corais, que Emílio Porto se consagrou como um dos mais insignes músicos e maestros açorianos. Como ele próprio confessou, foi o ambiente musical do Seminário que o motivou para música, pois segundo ele: “O ambiente musical que se vivia no Seminário em 1950 era o reflexo de uma tradição forte nas ilhas açorianas. Consequências, talvez, dos apelos do Motu Próprio do Papa Pio X, e também da necessidade de ir ao encontro das pessoas que viviam em quase isolamento total. Os padres deveriam saber música para poderem ensinar e exercer condignamente as funções litúrgicas da Igreja Católica e, ao mesmo tempo, contribuir para o seu desenvolvimento cultural. E continuou a ser assim. (…) No meu primeiro ano lectivo - 1950-1951 - assisti na minha cadeira, ao fundo do salão, ao concerto do Orfeão do Seminário, na festa de São Tomás de Aquino. Aí ouvi, pela primeira vez, as primeiras palavras do hino do Seminário "Se há grandeza, no mundo, é aquela..." O Seminário respirava música por todo o lado. Que me contagiou. A partir do primeiro ano esteve sempre presente. Nessa mística me integrei. Desde as primeiras noções do solfejo entoado, à teoria musical e História da Música, e às práticas musicais curriculares e ocasionais. E depois, pela vida fora, até hoje.”
A morte de Emílio Porto, há um ano, no entanto, para além da enorme perda que constituiu, a nível musical, também fez silenciar as colunas deste jornal e o seu blogue “Alto dos Cedros, onde divulgava a maior parte dos seus escritos. Neste aspecto também constituiu e constitui uma perda irreparável.
Conheci o Emílio Porto, quando em Setembro de 1960, demandei, pela primeira vez, o Seminário de Angra. Recordo-me de o ver assomar à janela do seu quarto, voltada para os “miúdos”, sempre sério e pensativo, a descer os degraus dos teólogos, a correr para a sala seis, a fim de chegar a tempo à aula de Teologia, a jogar voleibol no campo junto à cozinha, a percorrer as ruas de Angra, com passagem pelo pátio da Alfândega e, sobretudo, a reger, com mestria, elegância e emoção, a capela do Seminário. Frequentava o décimo primeiro ano e eu, o terceiro. As normas de um regulamento interno, rígido e rigoroso, impediam a comunicação diária entre os alunos das três prefeituras, quebrada apenas, nas manhãs de Natal, nos dias de Festa, nos ensaios do orfeão e pouco mais. Não era de muitas falas, nem se metia em graçolas ou brincadeiras com os mais pequenos. Tinha, no entanto, um ar alegre, prazenteiro, solene, digno, concentrado e trabalhador, revelando já dotes extraordinários e inexauríveis, a nível da formação musical.
Anos mais tarde, embora em tempos diferentes, cruzei-me com ele em São Caetano do Pico, substituindo-o, nas inúmeras actividades em que ele ali se envolvera e a que procurei dar continuidade e prosseguimento. Em São Caetano do Pico, Emílio Porto, para além de granjear o respeito, a consideração e a estima de toda a população, deixou uma obra notável. Dedicado à juventude, que acompanhava em todas as actividades e com quem se envolvia em todos os acontecimentos, com destaque especial para a música e também para o teatro, Emílio Porto deixou ali uma obra notável, marcando positivamente uma geração.
Mais tarde serviu o exército português no ultramar, durante a guerra colonial, realizando duas comissões de serviço em Angola. A forma como o fez, estabelecendo a amizade como estandarte da guerra e a verdade como lema de vida, granjeou-lhe o respeito, a consideração e a estima de quantos com ele conviveram. A atestá-lo os variadíssimos testemunhos de quantos acompanhou naquelas missões e os encontros regulares que, passados quarenta anos, ainda mantinha com os seus camaradas de guerra.
A partir de então, perdi-lhe as pegadas. Sei, no entanto, que, quer como homem, quer como cidadão ou professor e ate como político, teve sempre um comportamento digno, nobre e exemplar, pautado por um empenhamento honesto, por uma competência fluente, por uma dignidade desmedida e por uma humildade transparente, que nem o Grau de Comendador, com que foi agraciado pelo presidente Jorge Sampaio em 2008, nem a Insígnia Autonómica de Mérito Cívico que a Assembleia Regional dos Açores lhe atribuiu, haviam de desfazer.
Quis o destino que, nos últimos tempos, nos reencontrássemos e restabelecêssemos uma amizade recíproca, íntima, sã e enternecedora, a nível individual e familiar. Não apenas em encontros frequentes, que agora podíamos fruir, mas também no “Alto dos Cedros” e no “Pico da Vigia”, onde, dia após dia, íamos fazendo deslizar memórias de um passado que, afinal, tinha muito em comum.
Como herança final, haveria de ser eu a dar-lhe continuidade nesta coluna, embora muito longe da competência que nele refulgia. Apenas e tão só, até porque de maneira diferente, para que este “Farol da Ponta” que ele criou com tanto interesse, continuasse a cintilar.