PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
ENSEADA DE CRISTAL
Açoriana de nascença emigrou muito nova para os Estados Unidos, acompanhando os pais, numa estranha e descodificada aventura, porém, não se esquecendo nunca de que os Açores eram a sua terra e as Flores a sua ilha. Nascida debaixo de rochas, embalada entre os murmúrios das brisas matinais, alimentada com a seiva dos maroiços, saltitando sobre as rochas negras dos baixios, mantém-se uma verdadeira açoriana dos sete costados. Com o rosto ao vento, traz no olhar o murmúrio das ribeiras e nas veias corre-lhe o ancestral sangue dos avós. Teima em manter os cabelos soltos, ao vento e a embrenharem-se nos meandros das ribeiras e nos valados dos grotões. Mantém a alegria de viver e segura, nas palmas das mãos, a infinita ternura das manhãs de primavera. Herdou a frescura dos regatos e guardou, em silêncio, o suave vaivém das marés. Dos primórdios do povoamento da ilha houve nome e agarrou-se à vontade de crescer, de se tornar vibrantemente enternecedora, em terra alheia. Fez seu lema a vontade de mudar o mundo. Mas a sua maior herança foi a estonteante viagem que fez, atravessando mares e oceanos, balouçando-se sobre as ondas, embalando-se nos estonteantes gritos dos vulcões. Brincou com as conchinhas da praia, procurou grilos em luras, saltou à corda, rolou o arco e sujou o rosto com terra ressequida. Correu por canadas e veredas, a pé descalço, subiu montes e outeiros e espreitou, de madrugada, o nascer do Sol. Brincou com bonecas de trapo e cabeça de loiça, construiu cadeirinhas de junco, porquinhos de batata-doce e sentou-se à janela a observar o voo titubeante das gaivotas. Ao sol e à chuva foi levar os bois ao pasto, alimentar o porco no curral e juntar, na cerca, os ovos das galinhas. À tardinha, misturava o seu canto com o dos tentilhões a respigarem os trigais e sentava-se, ao serão, no escuro da cozinha a ouvir as estórias da avó. No fim dava-lhe as boas noites e adormecia no seu regaço.
Voltava ao mar sempre que queria e banhava-se nas suas águas, transformando-se numa espécie de sereia reluzente. O bafo das marés acariciava-lhe o corpo e os caranguejos lambiam-lhe o suco das feridas. O mar era de lã e a água tinha perfume de alecrim. Deitou-se em praia deserta e, numa manhã de bruma cerrada partiu. Partiu para uma terra longe e distante mas que decidiu nunca ser sua.
Tornou-se mulher, senhora e dona. Recheou-se de poucas palavras e fez do silêncio o baluarte da sua defesa. Mas o que nunca se apagou e jamais se apagará da sua memória é apenas o mar e aquela pequena enseada mítica e de cristal, onde, em criança, misturava o seu corpo, meigo e doce, com a doçura fresca da água.