PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
ESTUDO E FUTEBOL
De todos os espaços do Seminário Menor de Ponta Deçgada, aquele onde passávamos mais tempo, quando acordados, era o Salão de Estudo. Com um horário muito completo, rígido e rigoroso, onde eram indicados com grande pormenor, os tempos de aulas, os recreios, as refeições, os tempos de oração e até os dias e as horas em que cada um devia tomar banho, naquela instituição de ensino diocesana, não faltava tempo para o estudo. Este tinha um estatuto especial, um salão próprio e um tempo excessivo, com um total de quatro horas diárias. Uma logo de manhã entre a missa e o pequeno-almoço, duas à tarde, entre a última aula e o jantar e uma quarta à noite, antes de nos deitarmos. Durante estas horas, vigiadas e acompanhadas sempre por um dos prefeitos ou, excepcionalmente, pelo reitor, permanecíamos em silêncio absoluto, sentados nas nossas carteiras, sem nos podermos ausentar para onde quer que fosse, nem sequer nos levantarmos do nosso lugar, estudando, lendo ou fazendo os trabalhos propostos pelos professores das várias disciplinas. Até para ir à casa de banho era necessária autorização explícita do prefeito. Era também no Salão de Estudo que um e outro dos prefeitos “falavam” aos alunos, sendo que neste caso, estes juntavam, em semicírculo, as suas cadeiras à volta da secretária do prefeito, colocada em frente à porta da camarata, mas do lado oposto.
O Salão de Estudo era muito estreito e comprido. Ligado ao corredor do recreio por uma pequena escadaria, estendia-se na direcção sul-norte e a sua área ultrapassava em muito a necessária para as carteiras dos alunos. Estas, acompanhadas da respectiva cadeira dispunham-se em quatro filas paralelas e estavam dispostas de tal maneira que os alunos ficavam voltados para a porta de entrada. A maioria das carteiras eram envernizadas, com uma cor semelhante à da própria madeira com a parte superior a servir de tampo mas muito pequenas, sendo difícil arrumar, dentro delas, todos os livros e cadernos de que necessitávamos. Por isso, e por vezes, alguns livros e outro material eram colocados no chão, debaixo da própria carteira. Apenas duas dúzias, trazidas do Seminário de Angra eram bem mais negras, muito maiores, com o tampo inclinado, mas destinadas aos alunos mais velhos do segundo ano.
A minha carteira, assim como a dos outros mais pequenos, ficava na fila da frente, mesmo ali, junto à porta de entrada do salão. Por isso tinha que ter muito cuidado, pois se o prefeito ou o reitor entrasse de repente e eu não estivesse a estudar era logo apanhado em flagrante e, possivelmente, castigado.
A seguir ao almoço tinha lugar o chamado “recreio grande”, por ter a duração de uma hora e meia e que era, fundamentalmente, dedicado à prática do futebol, uma vez que a maioria dos alunos adorava esta modalidade desportiva. Uns jogavam muito bem, outros razoavelmente, alguns jogavam mal e um ou outro, como era o meu caso, não jogava, rigorosamente, nada. Para que as competências futebolísticas dos melhores evoluíssem e o jogo tivesse mais entusiasmo, emoção e interesse, quer os alunos do primeiro ano, quer os do segundo eram divididos em dois grupos: os bons jogadores e os maus jogadores. A prática do futebol, no entanto, estava facilitada e estendia-se a todos. Era obrigatória, isto é, durante aquele recreio todos tinham necessariamente que jogar futebol, ou estar presentes no respectivo campo a fazer de conta que jogavam, o que para mim era um sufoco, quase um castigo. Os melhores no entanto, jogavam com entusiasmo, alegria, beleza, técnica apurada e espírito competitivo. Os bons do segundo ano, onde se incluíam os dois prefeitos, jogavam no campo maior e principal, situado junto à camarata do primeiro ano e com uma das balizas a fazer fronteira com a rua de Santana e a outra com o salão de estudo. Mais lá para cima, havia um outro campo, com qualidades aceitáveis, onde jogavam os melhores do primeiro ano. Os outros dois espaços onde jogavam os “toscos” de um e outro ano, de campo de futebol, nem o nome tinham. Os do segundo ano jogavam, (se é que se podia chamar jogar futebol aos desajeitados pontapés que davam na bola), num pátio interior, entrincheirado entre o refeitório, o salão de estudo e os aposentos episcopais, onde as balizas eram desenhadas nas paredes. Por sua vez os do primeiro ano, nos quais eu me incluía, tinham como palco da sua inverídica prática futebolística um pequeno recanto situado na parte norte do edifício. Era aí que eu era obrigado a permanecer durante uma hora com o principal objectivo de tentar evitar levar com a bola, quando ela vinha na minha direcção. Um martírio para mim, esta hora em que era obrigado a “fazer de conta” que jogava futebol.
Contrariamente, o Manuel Faria era um excelente jogador, assim como o José Adriano Borges e o Carlos Sousa. Os dois primeiros eram avançados e o Carlos Sousa guarda-redes. Observados pelos craques do segundo ano, e pelos prefeitos que queriam reforçar as suas equipas, depressa foram “contratados”, passando a jogar junto com os bons do segundo ano, formando assim duas equipas: uma orientada pelo padre Agostinho e outra pelo padre José Franco, o qual, habitualmente, jogava de sapatos e batina, desabotoando um ou dois botões na parte inferior da dita cuja e enfiando o buraco daí resultante no pescoço. Alem disso, sempre que falhava um toque de bola ou um remate à baliza, simulava que lhe doía uma perna, O Manuel Faria, em termos futebolísticos, era o meu antípoda, sendo considerado um dos melhores jogadores do Seminário, granjeando o epíteto de Yaúca, um dos grandes jogadores do Benfica contratado ao Belenenses, na altura.