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FÉRIAS DE NATAL

Sábado, 29.03.14

Embora lento e moroso o primeiro período chegou ao fim, iniciando-se de imediato as ferias de Natal. Um dos prefeitos, reuniu-nos à volta da sua secretária e, sentados nas nossas cadeiras, lá fomos, aflitos e ansiosos, ouvindo as nossas notas e as dos outros, umas melhores outras piores. No dia seguinte, os alunos de São Miguel partiram para as suas freguesias, uns de carro, outros de camioneta, deixando o Seminário, novamente, quase deserto. Durante esses dias levantávamo-nos bastante mais tarde, não havia aulas, os recreios eram maiores e as horas de estudo eram em menor número e destinavam-se, sobretudo, à leitura e até nos era permitido conversar. Outras vezes íamos ouvir música e relatos de futebol para quarto do senhor padre José Franco. Não havia silêncio durante as refeições e saíamos a passear pela cidade, todas as tardes, sem ter que envergarmos o fatinho preto e, sobretudo sem irmos “afogados” no nozinho da famigerada grava preta.

Uns dias antes do Natal, fez-se o presépio, encimado por uma enorme árvore de Natal. O salão/corredor de recreio acendeu-se de sons, de cores, de imagens e lâmpadas coloridas, o que despertou em mim grande interesse e assombro, pois nunca tinha visto tantas luzinhas a piscar ao mesmo tempo e com tantas e tão variadas cores, embora, vezes sem conta, me viesse à memória o simples e rural presépio que se fazia na sala da minha casa, sem uma única luzinha que não havia electricidade na Fajã Grande. Além disso, o Carvalho de Dezembro trouxe das ilhas, para alguns alunos, muitas encomendas recheadas de doces, queijo, linguiça, biscoitos, figos passados e outras guloseimas. Até eu recebi um “cake” da América.

À meia-noite do dia de Natal, dirigimo-nos para a igreja Matriz, para assistir â Missa do Galo. Percorri, juntamente com os meus colegas das ilhas, as ruas da cidade que separavam o Seminário, da Matriz, entusiasmadíssimo com o esplendor e graciosidade das montras, com o piscar das dezenas e dezenas de lâmpadas dos arcos que ornamentavam as ruas e as praças, com o apinhado de pessoas que parecia ainda fazer as últimas compras de Natal. Entrei no templo ainda semiescuro, repleto de vultos negros, de bichanar de orações, de cheiro a velas a arder e de uma música melodiosa e suave.

Pouco depois iniciava-se a missa solene. O pároco, o padre Artur de Paiva, acolitado por dois outros sacerdotes, iniciava a celebração, rezando em silêncio e profundamente inclinado, o “Introíbo”, enquanto o coro cantava cânticos alusivos ao nascimento de Jesus. O povo, de joelhos e contrito, no templo semiescuro, batia com a mão direita no peito e inclinava, religiosamente, a cabeça e pedia perdão a Deus, enquanto o sacerdote rezava o “Confiteor”.

Pouco depois, o padre aproximou-se do centro do altar, de costas para o povo, ergueu os braços e entoou com uma voz muito alta mas martelada e ríspida:

- “Gló-ó-ó-ó-óó-ria in excelsis-sis Dé-é-é-ó”.

O sacristão começou a badalar, prolongada e intensivamente, duas enormes campainhas, enquanto os sinos repicavam e, como por milagre, a igreja se enchia de luz, de cor, de som e o coro respondendo à invocação do sacerdote, continuava: “Et in terra pax hominibus…”

Passados estes momentos de êxtase, comemorativos do nascimento do Menino Jesus, a missa continuou, em latim, misturado com os cânticos do coro e o bichanar de preces, louvores e orações dos fiéis.

No fim, o celebrante substituindo a casula pela capa de asperges, dirigiu-se para junto de um presépio, armada numa das capelas laterais. Depois de o incensar com o turíbulo fumegante, tomou o Menino nas mãos, beijou-O e colocou-se no meio do cruzeiro, enquanto os outros sacerdotes, os seminaristas e povo formava uma enorme fila para também O beijar.

Regressámos a casa e havia chocolates forrados com pratas multicolores, em forma de sininhos, de bolinhas e até de guarda-huvas, pendurados na árvore de Natal

Assim como já acontecera no início do ano, o regresso dos seminaristas de São Miguel, no princípio de Janeiro, voltou a trazer ao Seminário, a alegria, o reboliço e até o barulho, que a sua ausência provocara, desfazendo uma espécie de silêncio sombrio e uma indesejada inquietude, em que aquelas paredes centenárias, como que se haviam aquietado e quase adormecido, durante as férias de Natal. Nós, os das ilhas, habituáramo-nos tão bem e de tal maneira ao convívio e à camaradagem com os alunos de São Miguel, que agora sentíamos a sua falta e já quase nem sobrevivíamos com a sua ausência, não tanto pelo vácuo quantitativo que a sua partida provocara, mas pela amizade que se havia solidificado ao longo do primeiro período e pelo convívio em que já nos havíamos envolvido mutuamente. Sem os seminaristas de São Miguel abria-se, no Seminário, um vazio monumental, uma acabrunhamento inexplicável que só o seu regresso havia de desfazer. Sem eles o Seminário nem parecia Seminário e eles bem o sabiam, porque também partiram borrifados de saudades, deixando desvendar réplicas de uma enorme pena de nos abandonarem e, até, lamentando não nos poderem levar para as suas casas e para as suas freguesias. Por tudo isso regressaram desejosos de nos reencontrar e nós, alegres, por voltar a recebê-los. Além disso trouxeram as suas malas bem recheadas de vitualhas diversas e petiscos variados que foram repartindo connosco, durante quase todo o mês de Janeiro.

A vida, um pouco a custo, lá foi retornando ao seu ritmo normal, disciplinar, formativo, de silêncio, de estudo e de oração. Voltámos a levantarmo-nos cedo, apesar de agora mal habituados e com as manhãs a despontarem gélidas, enevoadas e escurecidas. Em Janeiro, ao sairmos da igreja e ao regressarmos ao Salão de Estudo, o dia ainda não havia clareado. Depois eram as aulas com os professores cada vez mais exigentes, aquele temor inicial, de vez em quando, a diluir-se, aquela fragilidade ténue e simples dos debutantes do início do ano, cada vez a desfazer-se mais e mais, o à vontade a crescer exponencialmente e, consequentemente, as infracções às normas regulamentares a tornarem-se mais frequentes e as repreensões, as ameaças, os avisos e os castigos a agigantarem-se, em catadupa.

Agora conhecíamos melhor os cantos da casa e já não nos amedrontávamos com a penumbra perturbante daquelas escadarias, com o silêncio enigmático daqueles corredores, com os mistérios subtis daqueles recantos e até com os desassombros e simbolismos daqueles subterrâneos, cujas estórias, aos poucos íamos descortinando. Contava-se que muito deles até comunicavam com os de outros conventos femininos espalhados pela cidade e que, noutros tempos, teriam servido de esconderijos aos frades e às freiras, sobretudo, em momentos de assaltos de piratas ou de ataques dos hereges e dos inimigos da fé e do império.

Assim e, ou porque o regulamento o impusesse ou porque este nosso despontar para um mais inebriante e atrevido modo de vida o exigisse, fomos confrontados, por alturas do Carnaval, com um retiro espiritual. Terminado o passeio da tarde de Domingo Gordo, fomos conduzidos à capela da igreja de Todos os Santos, onde nos foi feita a primeira prática, durante a qual nos foi explicado o que era um retiro, as normas a respeitar durante o mesmo, assim como os apelos ao silêncio, à meditação, à reflexão e, sobretudo, à penitência e à oração. Assim permanecemos em silêncio profundo o resto do domingo, durante toda a segunda-feira, até à manhã da terça-feira de Carnaval, a rezar, a reflectir e a andar, em silêncio, para trás e para diante, de um lado para o outro, como se fôssemos uns “doidinhos”.

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publicado por picodavigia2 às 08:04





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