PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
LEMBRANÇA DE SAN MIGUEL-O-ANJO
Na igreja da Fajã Grande, na década de cinquenta, ainda existia uma imagem de São Miguel-o-Anjo. Tratava-se de uma pequena escultura em talha dourada, com pintura semelhante à Senhora do Rosário e que se dizia ser muito antiga, tendo pertencido à ermida, construída em 1755 e que antecedeu a atual igreja. Representava o arcanjo São Miguel, empunhando numa das mãos uma espada e na outra uma balança. Estranhamente esta imagem não estava exposta à veneração dos fiéis, encontrando-se guardada, juntamente com a Senhora da Soledade, numas arrecadações que existiam por detrás do altar-mor, junto às escadas do camarim. Muito provavelmente em anos anteriores estaria na igreja e nela se inspirou o poeta fajãgrense, Pedro da Silveira para escrever o seguinte poema, dedicado a Armando Cortes-Rodrigues e Diogo Ivens.
Lembrei-me agora de ti,
San Miguel-o-Anjo de espada ferrugenta e capacete emplumado
De quando eu ia com meu pai à missa de domingo.
Tu não falavas nunca com os meninos da tua idade,
Nem rias quando olhávamos para ti;
Os teus beiços ficaram sempre mudos
Ao meu apelo insistente de criança.
Abismados em não sei eu pensamentos de nuvens,
Teus olhos nunca se abriram para a vida
Que a minha ingenuidade de seis anos te quis dar.
Todos os dias a pesar pecados
Na balança velha do céu…
San Miguel-o-Anjo da minha infância,
Esquecido da vida num canto escuro da igreja,
Nem tu talvez existes já…
Outras vozes acordaram nos meus dias
E chamaram a outros caminhos
O menino que eu era contigo.
Hoje, San Miguel-o-Anjo da minha infância,
Menino santo de pau insensível à vida,
De ti em mim persiste só
A vontade que eu tinha de gritar à tua indiferença
Que deixasses de ser santo
E viesses cá para fora brincar comigo
Nas poças da beira-mar.