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LEMBRANÇAS DE NEMÉSIO

Terça-feira, 28.01.14

(UM TEXTO DE ARTUR GOULART)

 

Desde criança que o nome de Vitorino Nemésio me é familiar. Meu pai, colega de Nemésio no liceu de Angra, como ele partiu para Coimbra a continuar estudos. Embora frequentando faculdades diferentes, a amizade e o companheirismo mantiveram-se intensos no ambiente coimbrão, como aliás acontecia entre ilhéus e, por maioria de razão, da mesma ilha. Meu pai, em virtude de doença grave, felizmente ultrapassada, viu-se forçado a abandonar as matemáticas e o convívio da lusa atenas, mas os anos de Coimbra marcaram sempre indelevelmente as suas recordações. Daí que, anos mais tarde, já casado na vila das Velas, onde o destino e a profissão o fizeram assentar, as histórias coimbrãs com Nemésio dentro, a solo ou acompanhado, faziam parte dos nossos serões familiares.

 Quando os programas escolares me fizeram avançar nos estudos da língua e literatura portuguesas, foi duplamente empenhado e curioso que devorei os escritos de Nemésio. A poesia e a prosa, que iam saindo da imaginação, do saber e da pena do mestre, e que me chegavam às mãos, nutriam a minha admiração e o meu respeito, que mais se consolidaram quando assisti, no Seminário de Angra, julgo que em 1956 ou 57, a uma notável conferência por ele proferida sobre «a cultura como cúspide do saber», tema que desenvolveu, naquele seu jeito improvisado que lhe era peculiar, com profundidade, erudição e elegância.

Aí pelo verão de 1964, estava eu de férias em S. Jorge em casa de meus pais, Nemésio passou por lá de visita. Mal chegou, meu pai tratou logo de o convidar para um almoço em nossa casa e, do programa da visita, já não sei se por iniciativa da Câmara, fazia parte um passeio pela ilha. Conforme combinado, o almoço aconteceu. Com convidado tão ilustre, minha mãe aprimorou-se na cozinha, saíram à cena a toalha e a loiça dos dias de festa, um verdelho velho do Pico viu a luz do dia e evaporou-se, a conversa esteve agradabilíssima, Coimbra surgiu do passado, a Terceira estremeceu entre touradas e cantigas de terreiro. Nemésio, com a finura e simplicidade de homem culto, sociável e velho amigo, saboreava os cozinhados (sem favor, minha mãe era excelente cozinheira) e apaladava-se com as palavras, quando estas temperavam a refeição com o sabor regionalista e insólito de certas expressões. Uma nossa vizinha, moça nova que trabalhava lá em casa a ajudar minha mãe nas lides domésticas, sempre que avistava Nemésio com o prato quase vazio, dirigia-se-lhe pressurosa: «O sr. doutor não quer mais uma niquinha?» Ele aceitava ou rejeitava com um sorriso agradecido a saborear a etimologia e as conotações desta «niquinha» de linguagem.

 Para o passeio pela ilha tive a sorte de ser um dos indigitados para acompanhar Nemésio. Fomos de carro pelo Norte, a estrada e os verdes bordados de hortênsias, as fajãs adormecidas no fundo das falésias, a volta pelo Sul, a pequena joia da igreja de Santa Bárbara das Manadas entretecida de talhas, azulejos e alfarges, a Urzelina e as memórias do barão do Mau Tempo no Canal, anfitrião hospitaleiro de Margarida Dulmo, as velhas casas empertigadas nas negras cantarias de basalto, as Velas reclinadas lá ao fundo junto ao Morro, tudo pespontado com o comentário oportuno, o humor inteligente, o olhar penetrante de Nemésio. Já na vila, a passagem indispensável pela igreja de São Francisco, outrora da ordem franciscana, agora anexa ao hospital concelhio. Nemésio apreciava o altar-mór e os laterais, falava da mestria dos entalhadores, quando reparo que, devagar e ostensivamente, passava o dedo indicador pela bela grade de pau santo do presbitério. Reparando no meu olhar interrogativo perante gesto tão inusitado, apressou-se a esclarecer-me: «Estou a ver se as freiras mantêm limpa esta bela peça!» Na verdade estava impecável, e este gesto, para mim inesperado, de Nemésio trouxe-me à consciência um pormenor que, de tão natural, nem me tinha apercebido. De facto, como pude comprovar muitas vezes, as freiras, então ao serviço do hospital, mantinham a igreja e toda a casa numa limpeza exemplar.

Hoje, ao passar por tanto do nosso património em estado de abandono e sujidade, vem-me sempre à memória o gesto de Nemésio e, parafraseando o mestre, constato dolorosamente que tanta barbaridade e tanto desleixo só pode ser a cúspide da ignorância e da incultura

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publicado por picodavigia2 às 14:06





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