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MADRUGADA DE DEZASSEIS DE DEZEMBRO

Quarta-feira, 16.12.15

Era o dia dezasseis de dezembro. A noite estava escura e fria. Era o primeiro dia de Novenas de Natal. Na véspera, por mandato expresso da minha irmã mais velha, havíamo-nos deitado muito cedo. A ordem até foi cumprida com a alegria. Deitar cedo para nos podermos levantar de madrugada e ir à igreja. Na verdade era nessa manhã que começavam as novenas do Natal. Não podíamos nem queríamos faltar

Ainda o velho exemplar da Ansónia Clok de Nova Iorque, encastoado numa peanha, na parede da sala, não tinha dado as cinco da madrugada e já minha irmã nos abanava, sucessivamente, em violentas tentativas de nos afastar dos braços de Morfeu. Sonolentos, virávamo-nos para o outro lado, mas ela insistia. Por fim acordávamos esbaforidos com a persistente convicção de que ouvíamos o repicar dos sinos na torre da igreja. Na cama ao lado, meu pai ainda dormia. Levantar-se-ia depois de nós, mas com outro destino. Ceifar e carregar um molho de erva à lagoa das Covas. Vestíamo-nos à pressa, passávamos pela cara um pingo de água que ficara da véspera no lava mãos da cozinha e partíamos em correria esbaforida. A noite continuava escura e, agora, mais fria. Das encostas do Pico da Vigia e do Outeiro desciam sibilos de vento que se diluíam sobre os telhados das velhas casas da Assomada, perdendo-se na imensidade escura da noite. Das janelas semicerradas de uma ou outra casa saía uma luz trémula, baça e insegura.

Na torre da igreja, os sinos continuavam a badalar, sobrepondo-se aos sibilos angustiantes do vento e ao bramido roufenho do mar. Ao chegar à Praça cruzamo-nos com as tias que vinham da Fontinha. Seguimos juntos, pela Rua Direita, até à igreja. Como que misteriosamente, de todas as ruas e da maioria das casas saiam vultos negros. Como nós, também enrolados em agasalhos. Os homens em grossos casacões, de gola virada ao redor do pescoço, com bonés a proteger a cabeça e as mulheres cobertas com xailes de lã, apertados com as mãos sob o queixo e a tapar-lhes o cocuruto. Alguns seguiam em pequenos ranchos, transportando lanternas de vidro tisnado e luz amarelada, baça e trémula. Outros seguiam só, guiando-se no escuro, amparados a bordões, às paredes ou aos muros dos pátios. O silêncio escuro da noite era apenas entrecortado pelo contínuo silvar do vento e pelo bater emaranhado das passadas nas pedras da calçada.

Finalmente chegámos ao adro e entrámos no templo quase às escuras. Apenas a lâmpada do Santíssimo e, no altar-mor, algumas velas acesas. Mas já estava repleto de vultos negros, de tossidelas, de rouquidões, de arrastar de cadeiras, de bichanar de orações e de cheiro a velas a arder. De repente, meu tio Chico, o sacristão, de opa vermelha, saindo da sacristia tocou, veementemente, uma enorme campainha. Toda a gente se levantou e, de imediato, fez-se um enorme silêncio. O pároco saiu de seguida, todo de branco, envergando, na cabeça, o barrete negro das três quinas. Fazendo uma enorme genuflexão diante do altar-mor, tirou o barrete e entoou:

- Deus in adjuto-o-rium meum intende.

- Um grupo de mulheres desafinadamente respondeu de imediato:

- Domine, ad adjuvandum me festina.

O pároco continuava:

- Gló-ó-ria patre…

***

Começavam, assim as tão desejadas e maravilhosas novenas de Natal, na igreja de São José, da Fajã Grande. Para além do seu conteúdo religioso orientado no sentido de anunciar preparar os fiéis para a celebração de tão majestoso acontecimento cristão, as Novenas do Natal tinham uma característica interessantíssima: eram sempre celebradas de madrugada, muito antes do romper do dia ou do despontar da aurora. Esse ancestral hábito dava-lhes um sentido especial, um significado transcendente, fazendo com que fossem amplamente desejadas por todos. Na verdade em cada uma das manhãs dos nove dias que antecediam o dia 25 de dezembro, alta madrugada, as crianças e os mais novos acordados pelos adultos, levantavam-se muito cedo. Passavam um pingo de água pela cara, que não se devia sair para o frio da madrugada com o rosto quente da cama, vestiam umas roupas selecionadas de véspera e, bem agasalhados porque o frio era muito. De lanterna de petróleo na mão encaminhavam-se para a igreja, acompanhados pelo alegre repicar dos sinos. As ruas enchiam-se de pequenas e trémulas luzinhas e de vultos apressados. O templo, num de repente, enchia-se de gente e iluminava-se com as titubeantes luzes emanadas das frouxas lanternas de candeeiros tisnados, com o pavio muito baixo a formar uma espécie de penumbra e a exalar um mefítico cheiro a petróleo mas como que a simbolizarem que a verdadeira luz havia de chegar em breve.

Entre preces, cânticos e orações ali ficámos uma boa meia hora à espera que os rituais, os cânticos, o sermão e as orações, liturgicamente, apresentados pelo pároco se esgotassem. Depois era o regresso a casa ainda a noite estava escura.

Nesse dia as vacas iriam para perto, por isso, minha irmã, autorizou-nos a voltar para a cama. Ela também interessada nisso… Nem que fosse mais uma pequenina nesga de tempo.

Mas o que todos mais esperávamos era o canto final, o mágico e deslumbrante, verdadeiro precursor da grande festa que dias depois havia de vir:

 

“Quando virá senhor o dia,

Em que apareça o Salvador,

E se efectue a profecia:

- Nasceu no mundo o Redentor?

 

Aquele dia prometido,

Da antiga fé dos nossos pais,

Dia em que o mal será banido,

Mudando em risos nossos ais.”

 

Quando virá senhor o dia,

Da suspirada redenção,

Encha-se o mundo de alegria,

De Deus se faça a encarnação.

***

Nesse dia coube-me ir levar as vacas, ordenhadas por meus irmãos mais velhos, à Pedra d’Água. Ao subir a ladeira do Covão ainda parecia ecoarem os cânticos que pouco antes ouvira na igreja.

Regressei pela Bandeja e pela Fontinha. Às nove horas em ponto estava na escola.

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publicado por picodavigia2 às 10:23





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