PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
MAIS UMA DE BOLO
Rezam as crónicas que minha avó paterna, na sua senectude, terá manifestado algumas atitudes e procedimentos menos vulgares ou pouco normais assim como certas excentricidades ou manias, que terão levado, os que a rodeavam e tratavam, a julgar que tinha ensandecido.
Entre as suas extravagantes exigências, resultantes de um quotidiano amorfo e monótono, próprio de quem entra numa senilidade demente, havia uma muito simples mas estranha e cuja concretização onerava, significativamente, o parco e reduzido orçamento familiar: exigia ela comer sopas de café com pão de trigo, todos os dias. Mas isso era quase um luxo, pelo menos, coisa rara na altura, não tanto pelo café, que este era de favas e chicória, mas pelo pão de trigo, dado que os campos na Fajã nunca produziram quantidades significativas deste cereal e comprar farinha de trigo era, na altura, uma espécie de magnificência, que só os ricos e endinheirados, que diga-se de passagem eram poucos, o conseguiam.
No entanto, com algum sacrifício e significativas alterações nos hábitos de vida caseira, lá iam, os meus familiares a quem estava confiada a sua guarda, arranjando, de vez em quando, alguma farinha e, no meio do bolo e do pão de milho, iam cozendo, um ou outro pão de trigo, satisfazendo assim os sonhos que quem, agora demente, tivera uma vida dolente e sofrida. Mas coziam pouco, muito pouco. Por isso, impunha-se poupá-lo. É que acendia-se o forno, apenas, uma vez por semana e padarias, apenas, existia uma, em Santa Cruz. Daí que ensaiassem uma velha estratégia, baseada no ditado popular “com papas e bolos se enganam os tolos”, de, junto com os pedaços do pão de trigo esmigalhados no café, juntar alguns pedaços de bolo. Tinham como objectivo apenas e tão-somente aumentar o cardápio à mãe do meu progenitor, garantindo-lhe a quantidade de alimento necessário a uma vida eficaz e salutar. Bem-intencionados, sem dúvida, estavam os meus parentes, pois pensavam que misturando o bolo ao pão de trigo, minha avó alimentar-se-ia muito bem e, devido ao seu aparente estado de demência, não daria por nada, nem se aperceberia da “batota” engendrada. Enganaram-se radicalmente!
Então não é que a minha avó, sempre que lhe enfiavam, por meio das sopas de pão de trigo, uma colherada de bolo pelas goelas abaixo, gritava ironicamente, em alto e bom som:
"- Lá vai, mais uma de bolo!”