PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
MUDEI DE RUMO
Era dia de Páscoa! A cidade metamorfoseara o seu ritmado viver quotidiano, enchera-se de música, de sons, de cores, de vultos brancos. As varandas abarrotavam de curiosos expectantes, Por isso ao iniciar a minha caminhada diária, decidi mudar de rumo, trocando o habitual trajecto ornado de asfalto, cimento armado, a abarrotar de cheiro a combustível e a sons automobilísticos, pela serena pacatez dos campos, embora percorrendo caminhos eivados de pó, veredas encharcadas de lama e trilhos atafulhados de pedregulhos e pedras soltas.
Ao iniciar o percurso, em vez de circular pela bem desenhada, asfaltada e sequenciada estrada que rodeia a cidade, decidi, logo ao sair de casa, voltar à esquerda e atravessar o pequeno monte que se ergue ao lado do meu prédio, com rumo à freguesia vizinha, que percorri de lés-a-lés.
Logo ao entrar no monte, viveiro de pinheiros e eucaliptos de mistura com silvados e outras daninhas, circulando por uma escadeada e íngreme vereda, onde o pó é rei, dei, de imediato, com uma enorme clareira, onde o pinheiral foi abatido para dar lugar a nada. É verdade que parece projectar-se ali uma futura zona habitacional, até porque, mais além já se vê uma ou outra “maison” mas requintada e moderna, do que as velhinhas que se espalham por ali. Algumas abandonadas, a desfazerem-se. De resto tudo se assemelha ao universo, antes da criação das criaturas. Depois, penetrei na zona mais antiga e talvez a mais pobre da localidade e arredores. Com casas velhas e antigas, com portões abertos a deixar ver resíduos de antigas “cortes” de vacas e porcos, paredes meias com cozinhas a fumegar e alpendres, já com mesas postas, Tentando fintar os caminhos eivados de socalcos e pedregulhos, rumei por veredas estreitas ente campos muitos deles a abarrotar de batais, cebolas e latadas de videiras a desabrochar. Depressa cheguei ao antigo e agora novo bairro, epicentro de um falsa modernidade de que o edifício escolar, recente obra de orgulho da municipalidade local, é o mais claro exemplo. Casas reconstruidas, prédios antigos reconstruídos e modernizados. Uma destes a simular testemunhos históricos notáveis.
Logo abaixo, o sussurro da água fresca e corrente. Um açude a transbordar de frescura, espelho linear das margens circundantes, verdes e ofegantes. A água a evadir-se em aqueduto e, no outro lado, a lançar-se em barulhenta catarata em miniatura.
O trilho seguia por entre arvoredos e arbustos, ora sombrio ora iluminado, pleno de pedregulhos e enigmas. Além a enigmática e mítica casa dos espíritos. Ali, houve, em tempos idos, mistérios, bruxedos, crendices em demasia. Hoje até os bruxedos são ruínas. Logo adiante a descida do monte, agora por entre campos, enormes cerrados de vinhedos e batatais, com couves, alfaces pelo meio. De tudo um pouco. E o mais emblemático solar da zona, com capela e brasão de armas sobre a porta principal Tudo num degradante e aflitivo estado de degradação…
Para cumulo, o supermercado, que demandei quando prestes a terminar o percurso, estava fechado. Pois é. Era domingo de Páscoa e, assim, livrava-se de receber o toque da música e o zumbir das campainhas que continuavam a encher a cidade de sons e cores…