PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
NAUFRÁGIOS II
Foram muitos os naufrágios que, sobretudo no século XIX, ocorreram na ilha das Flores, com particular incidência na sua costa oeste, incluindo os extensos baixios da Fajã Grande, uma espécie de fronteira entre a Europa e a América, na qual, naturalmente, se inclui o ilhéu do Monchique – o torrão mais ocidental da Europa e a própria. a Baixa Rasa, pese embora a maioria das embarcações naufragadas se encafuassem nos próprios baixios e laredos que separam a terra do mar. Esta mortandade de embarcações nos mares das Flores atirou para terra uma quantidade de restos dos navios e da própria carga, o que fez com que muitas casas da ilha, na década de cinquenta, se podiam, com toda a propriedade, comparar a “autênticos cemitérios marítimos”, onde tudo, desde a madeira aos candeeiros, desde a ferramenta aos enfeites, provinha de barcos naufragados. A isto juntavam-se os produtos resultantes dos achados, o que constituía em muitos casos, verdadeiros arsenais.
Infelizmente, também se verificaram muitas mortes, com destaque para as nove dos vinte e dois tripulantes da barca francesa Bidart, encalhada em 1915 na Fajã Grande, seis dos 12 que trazia a barca italiana Severo, naufragada em 1882 na Lomba, etc.. No entanto, a generalidade das embarcações naufragadas transportavam essencialmente mercadorias, algumas das quais, pelos vistos, infetadas, permitindo o contágio, por essa via, como sucedeu no Lajedo, em 1843, onde uma epidemia proveniente de um naufrágio causou 18 mortes, para não falar na sífilis que os espanhóis do galeão Nossa Senhora das Angústias e São José trouxeram em 1727 e ajudaram a disseminar pela ilha. Mas verdade é que, regra geral, quase sempre os naufrágios constituíram, para a população costeira, uma oportunidade suplementar de rendimento, desde que aos salvados conseguissem chegar primeiro que as autoridades aduaneiras.
Estranho mas memorável para as gentes da Fajã Grande terá sido o Natal de 1869! É que nesse 25 de Dezembro, deu ali à costa, carregada de açúcar mascavado, um sabor de muitos ainda desconhecido, e de aguardente, a barca francesa Republique, que o povo logo invadiu, levando quanto pôde, numa abundância tal que, nas semanas seguintes, até com açúcar se temperaram caldos de couves.
Foram, todavia, os grandes carregamentos de madeira de pinho resinoso que, de forma mais visível, ajudaram a perpetuar a memória, um pouco por toda a ilha, de algumas dessas já longínquas tragédias marítimas. Pela sua dimensão, o antigo Hospital de Santa Cruz e as Igrejas da Lomba, Ponta da Fajã Grande, Fazenda e Fazenda de Santa Cruz relevam entre as várias obras cujas construções foram essencialmente alimentadas, nas suas mais exigentes necessidades em madeiras nobres, pelos naufrágios da galera Ocean, na Fajãzinha, em Maio de 1876, e da barca Brillant, na Quebrada Nova, em Fevereiro de 1899. Já com os seus 180 passageiros e tripulantes postos a salvo, em terra, Lajes das Flores assistiu também, nos primeiros dias de Março de 1727, ao afundamento do galeão Nossa Senhora das Angústias e São José, que, rebentadas as amarras e levado para o alto mar, ali foi a pique com quase toda a sua preciosa carga, uma parte do espólio anual de ouro e prata das minas do México e de Potosí, na Bolívia. Cuida-se, que em sinal de reconhecimento por se terem salvo, dois desses espanhóis, mandaram edificar a Capela de Nossa Senhora das Angústias, enquanto dois outros ofereceram algumas imagens ao convento de São Boaventura de Santa Cruz das Flores.
A história dos naufrágios nas Flores é corroborada com dois grandes desastres, já em pleno século XX,, o do paquete holandês Prins der Nederlanden, em Agosto de 1966, na Pedra dos Burros, entre o Lajedo e o Mosteiro, de onde só muito a custo foi rebocado, e o naufrágio do Papadiamandis, um cargueiro liberiano, de mais de 14 mil toneladas de milho, na ponta do Baixio, na Fajã Grande, em Dezembro de 1965.
Mas o maior naufrágio e mais rentável naufrágio para a população da ilha foi o do RMS Slavonia, que, ainda hoje, continua presente no imaginário de muitos florentinos, numa memória que lhes é avivada, no Museu das Flores e em muitas das casas da ilha, incluindo algumas da Fajã Grande, por uma panóplia de objetos que pertenceram àquele navio, naufragado a sudoeste da ilha, nas costas do Lajedo. Até o papa Pio X, em sinal de gratidão pelo acolhimento que as gentes da ilha haviam dispensado às 597 pessoas que o RMS Slavonia transportava entre Nova Iorque e o porto italiano de Trieste, ofereceu à igreja Matriz de Lajes um cálice de prata.
(Dados retirados da net.)