PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O CANDEEIRO DA MINHA TIA ADELINA
Havia na casa da minha tia Adelina, moradora nas Courelas, um candeeiro que me deslumbrava sempre que lá ia e me era dada oportunidade de o observar. É verdade que a minha tia nunca o acendia e eu também nunca ia a casa dela de noite, por isso eu não sabia como seria a luz que dele emanava, a claridade que produzia, o brilho que ainda mais o deveria consagrar. Ela mantinha-o sempre apagado, colocado em cima da mesa da sala como se fosse uma relíquia ou mais um objeto de adorno do que um apetrecho de grande utilidade. Mesmo assim, rodeado de sombras e de mistérios, sem irradiar sequer uma frágil e ténue luz que se pudesse ver, eu adorava aquele candeeiro e das poucas vezes que ia às Courelas a casa da minha tia, ficava perplexo perante aquela preciosidade. Não sei se o que mais me fascinava era o fogão de vidro bojudo, todo pintado com desenhos multicolores como se fosse o vitral de uma catedral gótica, se o pé esguio, estampado de um azul a fazer lembrar o mar e encimada por uma enorme bolha redonda, também ela azul mas ramificada de outras cores e que seria o depósito do petróleo. Era talvez único, talvez o mais belo candeeiro da freguesia que mesmo apagado dele parecia desprender-se e difundir-se uma luz benfazeja, serena e que, apesar de muito ténue parecia atrair e contagiar quantos dele se aproximavam.
Mas havia um enorme mistério acerca da origem deste candeeiro que, estranhamente, estava sempre apagado. De dia e de noite. Na verdade, nunca a minha tia o acendia nem ninguém sabia o motivo por que não se servia dele para iluminar a sua sala nos longos serões de inverno, sobretudo quando a casa se enchia de visitas. Mais, se alguma criança brincasse na sala, junto à cómoda sobre a qual estava o candeeiro, rodeado de fotos antigas e pagelas de santos, logo a minha tia corria a protegê-lo e a implorar à ganapada que saísse dali ou que tivesse cuidado para não lhe partirem o seu candeeiro. Minha tia, na verdade, protegia-o como se fosse um tesouro. E no dia em que eu, já mais crescidote, lhe perguntei, onde arranjara aquele candeeiro e porque não o acendia e o poupava e protegia tanto, minha tia simplesmente respondeu: - Essas perguntas não se fazem, - e mudou de conversa.
Percebi, então que ali, na verdade, havia mistério. Que a minha tia escondia alguma coisa ou não queria que se soubesse a origem daquele belo e enigmático candeeiro, daquela magnífica preciosidade. Até a minha mãe me ralhou quando lhe disse que tinha perguntado à tia Adelina onde o tinha arranjado e disse-me que nunca mais fizesse tal pergunta, pois eu nada tinha a ver com origem dos nossos candeeiros, muito menos com os da tia Adelina ou de quem quer que fosse. Não era bonito eu meter-me na vida dos outros. Mas eu não me continha. Por vezes até sonhava que a tia Adelina me havia de deixar, em testamento, aquele magnífico candeeiro e então sim, eu, para além de o acender todos os dias, havia de descortinar a sua origem e o que ele tinha de misterioso e enigmático e que permaneceu oculto em mim durante muitos anos.
Mas não foi preciso. De tanto me intrigar e de tanto indagar anos mais tarde descobri o mistério. Afinal a origem daquele candeeiro era mesmo inédita e estranha, pois tinha sido retirado do acervo deixado no mar pelo naufrágio do Slavónia, o luxuoso e gigantesco paquete inglês, popularmente designado, na ilha das Flores por "Salavónia" que no dia 10 de Junho de 1909 naufragara, junto à Costa do Lajedo. A tragédia aconteceu, segundo alguns relatos da época, por voltada das três horas da madrugada, num baixio das Flores, a cerca de 25 metros de terra e provocou um enorme alvoroço em toda ilha, muito especialmente nas povoações e freguesias da costa oeste, sobretudo, por se tratar de um navio que transportava centenas de passageiros e um precioso recheio. Segundo rezam as crónicas da altura, alguns dos passageiros ao saberem que o paquete passava perto das Flores, fizeram chegar ao comandante, um pedido escrito para que este alterasse a rota de maneira a que se aproximasse da ilha e pudessem observar, em pormenor, a sua beleza. O comandante acedeu ao pedido e planeou rodear as Flores, pelo sul para depois prosseguir no seu curso original. Mas um forte nevoeiro que se abateu sobre a ilha e uma forte corrente marítima que ali se fazia sentir, terão desviado o paquete da rota prevista, levando-o a encalhar. Consta que todos os passageiros e toda tripulação se salvaram mas apenas uma pequena parte da bagagem foi recuperada, pouca a carga se reouve e o luxuoso recheio ficou soterrado no oceano.
Nos dias seguintes, muitas pessoas, não apenas da Costa e do Lajedo mas também de outras freguesias da ilha terão demandado aquelas redondezas, apesar de a zona estar sob vigilância da Guarda Fiscal, na tentativa de procurar, recolher do mar objetos valiosos e algumas sobras da carga do navio. Além disso, era voz corrente de que, para além de parte da carga, estaria perdida, por ali, uma mala do correio com valores declarados e dinheiro. Não consta que tenha sido encontrada, mas muitos populares recolheram louças, talheres, travessas, pratas, mobílias, camas, portas e candeeiros, entre os quais o da minha tia Adelina, cujo destino, hoje, desconheço.