PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O DESCANSADOURO DE SANTO ANTÓNIO
No Largo de Santo António, na Fajã Grande, no caminho que ligava a Assomada aos Lavadouros e, também, à Cuada, uma das vias mais percorridos diariamente pelos habitantes da Fajã na década de cinquenta, havia um interessante e típico descansadouro, conhecido, precisamente, pelo descansadouro de Santo António e que servia de paragem obrigatória e de repouso merecido aos homens que vinham da Cabaceira, da Cancelinha, do Espigão, do Moledo Grosso e da Lombéga, da Alagoinha e dos Lavadouros, assim como os que vinham das terras do lado da Cuada. Tratava-se um local de descanso situado num largo, no cruzamento de três caminhos, rusticamente preparado de modo a que os homens pudessem pousar as cargas que transportavam, descansar e conversar um pouco. Na realidade, em Santo António, como no Alagoeiro, no Pico Agudo ou na Ribeira das Casas e em tantos outros sítios, os homens, ao regressarem dos campos vergados ao peso dos molhos e cestos, uns e outros pesadíssimos, paravam para descansar e cavaquear. Colocando os brutais carregamentos sobre as paredes circundantes, limpavam o suor com as costas das mãos, com lenços ensebados ou até com as mangas das frocas, com as quais também formavam espécies de rodilhas ou almofadas que colocavam sobre as pedras soltas, encostadas às abas das paredes mais altas e abrigadas, para se sentarem sobre elas, de modo a não “apanharem frio”. Sentados sobre essas espécies de toscas bancadas, os homens descansavam, fumavam, trocavam lume e cigarros, por vezes, se o descanso era mais prolongado, até falquejavam troncos de cana-roca ou um garrancho qualquer e conversavam, discutiam, umas vezes a “tirar teimas” outras “acertar contas”, recriminando-se reciprocamente. Uns vinham de longe outros de perto, uns mais cansados outros mais aliviados, mas todos ali se sentavam de manhã, ao meio-dia, à tarde e à noitinha.
O descansadouro de Santo António, ocupava todo o largo e era circundado por três altas paredes. A Sul, do lado do Delgado ficava uma horta pertencente ao José de Nascimento, com paredes altíssimas e um gigantesco portão sobre o qual havia um pequenino nicho com uma imagem de Santo António, padroeiro onomástico do lugar. A Oeste e do lado da Cuada uma outra parede, também bastante alta e abrigada, pertencente a uma terra do Roberto de José Padre. A norte e a fazer esquina com as duas primeiras, uma terra do Augusto Mariano, com paredes mais baixas e uma espécie de maroiço anexo que servia de palanca onde os homens colocavam molhos e cestos. Um pouco acima e logo no início do caminho que dava para a Cuada havia uma relva pertencente ao Josezinho Fragueiro, onde havia uma nascente de água com uma bica que jorrava permanentemente um diáfano e fresquinho fio de água, onde homens, mulheres e crianças que por ali passavam ou ali paravam a descansar iam matar a sede.
No final da década de cinquenta, a nova estrada que ligava o Porto da Fajã Grande aos Terreiros, passou por ali perto e o descansadouro de Santo António, como muitos outros da Fajã, perdeu o seu protagonismo, sendo, neste caso substituído por um, na nova estrada, no sítio em que a mesma atravessava o cerrado do Lucindo Cardoso, um pouco mais abaixo, no Delgado, junto a um palheiro que ali havia.
O descansadouro de Santo António era dos poucos da freguesia que dispunha de água. Logo a seguir, no caminho que dava para a Cuada, do lado direito de quem caminhava na direcção daquela localidade, ao fundo da relva que ali existia, havia uma nascente de água, que havia sido aproveitada e transformada numa espécie de bica ou fonte, donde brotava um fiozinho de água, que corria dia e noite, ténue, diáfano e cristalino e que era vulgarmente designada pela Fonte do Delgado. O precioso líquido que dali brotava, que rareava naquelas redondezas, era muito fresquinho, limpo e deliciosamente saboroso, pelo que dava de beber e matava a sede a quantos sequiosos passavam por ali ou se sentavam no descansadouro contíguo.
No entanto, ao fundo da relva onde se situava a fonte e um pouco mais abaixo desta, havia uma quinta com altas paredes e um enorme portão, encimado por uma cruz, sempre aberto, sempre disponível a quem quisesse por ali entrar. Mas poucos o faziam, com medo de lá entrar. Contava-se que uns anos atrás se enforcara ali um rapaz. Ora como o suicídio, na freguesia, sobretudo através do enforcamento, era raríssimo, o povo, embalado em ensinamentos religiosos onde pontificava o misterioso, o maldito, o coiso-mau e, sobretudo, a ameaça permanente do envolvimento do diabo e das almas do outro mundo na sua vida e costumes, considerava-o como uma espécie de mistério ou algo de terrível, diabólico e do outro mundo, pese embora neste caso, a beatitude toponímica do lugar ofuscasse, parcialmente o macabro do evento que o notabilizara. Mas a maioria dos transeuntes que por ali passavam e, muito especialmente, os que paravam naquele recanto paradisíaco para ir buscar à água à nascente, num contraste mítico, traziam, permanentemente à memória, a recordação do enforcado, cuidando que ele pudesse eventualmente, dada a sua qualidade de condenado ao inferno, aparecer por ali sob a forma de alma penada ou de demónio. Por isso, todos e cada um dos que por ali transitavam ou se sentavam, sobretudo se tivessem o atrevimento de ir buscar água, temiam que sobre si próprio viessem a cair anátemas de perdição moral ou lhe acontecesse alguma desgraça ou desventura.