PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O DESCANSO DO GUERREIRO
D. Paio de Farroncóbias, fronteiro de D. Afonso Henriques, chegou a Lubisonda, sem que ninguém o esperasse. Por isso, logo que a sua comitiva ultrapassou a muralha, começaram a sair dos humildes casebres, homens, mulheres e crianças, com ar de espanto e susto. De repente as ruas e praças encheram-se de povo que aclamava os guerreiros, congratulando-se com a sua chegada e orgulhando-se de acolher aqueles que haviam lutado ao lado do seu valoroso príncipe. Era ali, na humilde vila de Lubisonda que iriam pernoitar os heróicos guerreiros que haviam acompanhado o glorioso príncipe na batalha de Ourique.
Lubisonda era agora um mar de gente. Os guerreiros haviam-se reunido numa pequena praça, em frente ao templo românico, com um portal de arco redondo e paredes escuras, cujas portas se haviam aberto. Os sinos repicavam festivamente, como se de grande festa se tratasse. Ao lado, do templo e da meia dúzia de casas de ricos-homens erguia a mansão do honrado Pêro Fogaça. Era uma casa enorme e esbranquiçada, a contrastar com o escuro do templo e dos casebres de Lubisonda. A frente, voltada para uma pequena praça, era precedida de um ádito e rodeado por um muro coberto de heras, begónias e robínias, rasgada por diversas janelas e duas enormes portas. A maior abria-se apenas em dias de grande solenidade e dava para um corredor escuro e comprido, ladeado por portas que conduziam aos quartos e salas. Ao fundo, do lado direito de quem entrava, uma enorme sala, com uma mesa monumental, onde eram servidos os lautos banquetes durante as festanças em que o quotidiano do honrado comerciante era profícuo. Do lado esquerdo a cozinha.
Foi este pequeno palacete, que D. Paio de Farroncóbias de tanto cansaço de peleja e viagem, decidiu escolher para pernoitar. Pêro Fogaça e os restantes habitantes da aldeia não cabiam em si de contentamento. A alegria do comerciante, no entanto, ultrapassou em demasia a dos restantes lubisondenses e excedeu todas as limitações, quando soube que D. Paio de Farroncóbias escolhera para pernoitar a sua própria mansão. Há muito que ali se contavam os feitos vitoriosos do famoso conquistador, flagelo dos infiéis, ilustre fronteiro do ditoso príncipe, as suas vitórias sobre os infiéis e as suas investidas, cada vez mais intensivas, para libertar o Condado Portucalense do jugo do monarca leonino e transformá-lo em reino independente. Agora, era a fama da vitória de Ourique que se espalhara por todo o condado e que também já havia chegado a Lubisonda.
Ainda o fronteiro e o seu séquito não tinham ultrapassado os umbrais da pequena fortaleza que rodeava Lubisonda e já alguns ricos-homens, à frente dos quais estava Dom Pero Fogaça, vieram recebê-lo. Foi o marido de Dona Aldonça e pai do jovem Banaboião quem primeiro se aproximou de D. Paio e, ajoelhando-se a seus pés, com humilde espontaneidade, gritou:
- Meu senhor! Ilustre fronteiro do Rei de Portugal, sede bem-vindo a Lubisonda!.
Os outros aclamaram de imediato:
- Viva o nosso rei! Viva D. Afonso Henriques, rei de Portugal. Viva D. Paio de Farroncóbias, seu ilustre guerreiro.
Ao ouvir pronunciar aquelas palavras de exaltação do seu amo e senhor, D. Paio de Farroncóbias encheu-se de regozijo e contentamento Depois da vitória em Ourique, aquelas palavras repetiam-se como que por eco e magia. Até então, excepto os que estavam em Ourique, nenhum vassalo ou habitante do condado portucalense, tratara o príncipe de tal forma. E agora ali, aquele povo humilde fazia-o com tamanha espontaneidade e sinceridade como eles próprios o haviam feito em Ourique. Por isso, de ouvi-los, o coração do foreiro encheu-se de júbilo e regozijo. Assim, D. Paio de Farroncóbias, manifestando a sua alegria, contava-lhes como depois daquela gloriosa batalha, na qual para além da força e do valor dos seus homens, o príncipe recebera a protecção e ajuda de Nosso Senhor Jesus Cristo, que lhe aparecera em sonhos, pregado na cruz, sangrando nas suas cinco divinas chagas. Foi tanta a emoção que o esposo da senhora de Cangas e de Freixomil sentiu ao ouvi-lo que, D. Paio de Farroncóbias, aproximando-se, abraçou-o fraternalmente, não permitindo que permanecesse ajoelhado por mais tempo a seus pés. Depois fixando-o seriamente, disse-lhe:
- Honrado cidadão de Lubisonda, D. Paio de Farroncóbias. Foste o primeiro, depois de mim e dos outros valentes guerreiros que com o príncipe combateram em Ourique, que nestas terras portucalenses, tiveste a coragem e a honra de chamar ao valoroso príncipe, rei de Portugal. E tendes razão. Como sabeis, desde há muito que ele deseja ser rei. Não é loucura, é força, vontade e luta. Agora, depois desta retumbante vitória sobre tão vis infiéis, até porque eram muito mais numerosos do que nós e comandados por cinco reis, posso de facto e com verdade, eu um humilde servo do príncipe meu senhor, orgulhar-me também de lhe chamar rei de Portugal e louvar-vos-ei por isso, porque afinal, ele próprio assim já se intitula – D. Afonso Henriques, rei de Portugal. Na realidade só um verdadeiro rei poderia lutar contra cinco reis mouros e derrotá-los copiosamente. Tendes razão, Dom Paio. A partir de agora todos devem reconhecê-lo e aclamá-lo rei, inclusivamente seu primo D. Afonso VII, rei de Leão e Sua Santidade o Papa Celestino II, Sumo Pontífice da Santa Igreja Católica de Roma. Ambos serão obrigados a reconhecê-lo como rei, em breve. Peço-te, agora, que me conduzas à tua casa, e me dês guarida, se isso te apraz, a mim e ao meu servo e fiel escudeiro Gesismundo, durante uma noite. Peço-te que arranjes ainda abrigo para estes valorosos guerreiros da minha mesnada. Amanhã, ao romper do dia, retomaremos a nossa caminhada até Trancoso. O nosso destino, agora que a moirama está assustada e não voltará a atacar-nos tão cedo, é o reino de Leão. Afonso VII vai ser forçado a reconhecer Afonso Henriques, rei de Portugal e a conceder-lhe a independência, transformando este condado num reino independente como já o são Aragão e Navarra – o Reino de Portugal. Se o não fizer de bom grado há-de fazê-lo por força desta espada.
E tirando a espada da bainha, desenhava com ela no ar movimentos convulsivos e maquinais como se estivesse a lutar.
Fonte de Inspiração – Aquilino Ribeiro São Bonaboião Anacoreta e Mártir