PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O DIA SEGUINTE
O dia seguinte ao da tremenda catástrofe amanheceu sombrio, escuro com um tempo ameaçador. O vento soprava de Noroeste, o mar revoltara-se e embravecera subitamente e, sobre o Faial pairavam umas nuvens cinzentas, sinistras, prenunciadoras de aguaceiros. Era evidente que, mais tarde ou mais cedo, havia de chover.
A ameaça de chuva, no entanto, consubstanciava uma ambivalência, aparentemente, intrigante. Por um lado se chovesse seria benéfico, pois a chuva enviada por Deus como que serviria para limpar, para lavar e até para arrefecer todo aquele manto de lava, aquele pantanal de fogo que no dia anterior correra em catadupa por ali abaixo, que ainda fumegava, deixando um pestilento cheiro a enxofre e a carne queimada e deixara marcas atrozes, aterradoras e indeléveis, por aqui e por além, no solo. Por outro lado, porém, a chuva não era bem-vinda, antes pelo contrário, até era indesejada, pois seria uma autêntica desgraça, uma verdadeira tragédia. É que para além de trazer o frio consigo, a chuva não seria condescendente com ninguém, a todos molharia. Na realidade os abrigos eram poucos e a maioria das casas havia sido destruída por completo. Quase todas as habitações, sobretudo as mais débeis e pobres, haviam ruído e até a própria capela de Santa Luzia também sofrera prejuízos enormes, arrasantes, destruidores e irreparáveis, pondo em causa todo o seu interior, nomeadamente, a imagem da padroeira, as alfaias litúrgicas, os altares e até o sacrário onde se guardava o Santíssimo Sacramento. Apenas a coroa do Divino Espírito Santo que Frei José das Cinco Chagas havia retirado do altar e colocado sobre uma mesinha, fora da porta do templo, escapara àquela tremenda e avassaladora catástrofe.
Por volta do meio-dia a previsão confirmou-se. As nuvens escuras e carregadas de água que haviam amanhecido sobre o Faial, durante a manhã, tinham-se deslocado, muito lentamente, na direcção do Pico. Parecia que haviam parado ali mesmo, por cima de Santa Luzia, para dentro em breve se abrirem, despejando águas diluvianas por ali abaixo. Com as casas destruídas, a lava a devastar tudo e, agora, com a chuva a alagar o pouco que sobrara, não havia sítio onde o povo se abrigasse e protegesse, nem migalha com que se saciasse a fome. Sobretudo as crianças e os mais idosos sofriam em demasia.
A meio da tarde, no entanto, começaram a chegar carros de bois, carroças puxadas por cavalos e mulas carregadas de géneros alimentares, de roupas e agasalhos diversos, vindos de Santo António, do Cais do Pico e, sobretudo, de São Roque. O povo destas localidades, apesar de também atingidas por fortes tremores de terra, e as próprias autoridades municipais, sob as ordens do tenente Alçada de Melo, representante do capitão do donatário, sediado na vila das Lajes, haviam recolhido e angariado alimentos, roupas, cobertores, remédios, desinfectantes, chás e mezinhas. Vinham ali trazê-los distribuindo-os pelos doentes, pelos velhos, pelas crianças e sobretudo pelos mais necessitados. Juntamente, também um grupo de fradinhos, sediados num convento, construído uns anos antes e localizado no povoado do Cais do Pico e que pertenciam à Ordem dos Frades Menores, para ali se dirigira a prestar auxílios, a trazer conforto, a fortalecer os ânimos. Na madrugada do dia seguinte chegaram do Faial alguns barcos também carregados de géneros alimentares e de barracas feitas de pano de serapilheira e de peles de animais, destinadas a abrigar os que haviam ficado sem habitação.
José Pereira de Azevedo, a mulher e o filho passaram a primeira noite ao relento. Enrolados em grossos cobertores e em sacos de serapilheira, alguns cheios de lã, de palha, de erva ou de feno. Os pais, com o calor dos seus corpos, foram protegendo o pequeno António do vento, do frio, da chuva e dos rigores matinais.
A meio da manhã e depois de convencer Madalena de São João a permanecer ali, junto às paredes da pequena ermida, José Pereira de Azevedo decidiu ir dar uma volta, no sentido de verificar como haviam ficado os seus parcos haveres: duas pequenas terras de trigo, outras tantas de vinha e, lá mais no alto, uma de incensos e faias. O medo e o terror dominavam-no como se fosse um pássaro ferido, sem comida e sem ninho. Sabia que a lava se havia escoado para os lados das Bandeiras com mais intensidade e aí fizera os mais graves prejuízos. E os seus receios tornaram-se reais. Todas as suas propriedades haviam sido totalmente destruídas pela lava incandescente que no dia anterior a montanha expelira.