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O ENFORCADO DE SANTO ESTÊVÃO

Domingo, 19.01.14

Logo a seguir ao Largo de Santo Estêvão, no caminho que dava para a Cuveba, do lado direito de quem caminhava na direcção daquela localidade, existia uma pequena relva, ao fundo da qual estava uma nascente de água, que havia sido aproveitada e transformada numa espécie de bica ou fonte, donde brotava um fiozinho de água, que corria dia e noite, ténue, diáfano e cristalino e que era vulgarmente designada pela Fonte do Silvado. O precioso líquido que dali brotava, que rareava naquelas redondezas, era muito fresquinho, limpo e deliciosamente saboroso, pelo que dava de beber e matava a sede a quantos sequiosos passavam por ali ou se sentavam no largo contíguo – o Largo de Santo Estêvão - num descansadouro que ali havia, onde muitos homens descansavam nas suas idas e, sobretudo, das suas vindas dos campos, para suavizar as pesadíssimas cargas que acarretavam, para conversar, para fumar ou simplesmente para irem saciar a sua sede à Fonte do Silvado.

Ao fundo da relva onde se situava a fonte, no entanto, e um pouco mais abaixo desta, havia uma quinta com altas paredes e um enorme portão, encimado por uma cruz, sempre aberto, sempre disponível a quem quisesse por ali entrar. No entanto poucos o faziam, porquanto as maçãs, as peras, as ameixas e outros frutos que abundavam em muitas árvores ali plantadas, caíam no chão e apodreciam. Ninguém as apanhava e, por isso mesmo, o solo era um tapete afofado de apodrecimento, um azulejo gigante ornamentado de uma natureza morta.

Contava-se e pelos vistos teria sido verdade, que uns anos atrás se enforcara ali um rapaz – o enforcado de Santo Estêvão. Ora como o suicídio, na freguesia, sobretudo através do enforcamento, era raríssimo, o povo, embalado em ensinamentos religiosos onde pontificava o misterioso, o maldito, o coiso-mau e, sobretudo, a ameaça permanente do envolvimento do diabo e das almas do outro mundo na sua vida e costumes, considerava-o como uma espécie de mistério ou algo de terrível, diabólico e do outro mundo, pese embora neste caso, a beatitude toponímica do lugar ofuscasse, parcialmente o macabro do evento que o notabilizara. Mas a maioria dos transeuntes que por ali passavam e, muito especialmente, os que paravam naquele recanto paradisíaco para ir buscar à água à nascente, num contraste mítico, traziam, permanentemente à memória, a recordação do enforcado de Santo Estêvão, cuidando que ele pudesse eventualmente, dada a sua qualidade de condenado ao inferno, aparecer por ali sob a forma de alma penada ou de demónio. Por isso, todos e cada um dos que por ali transitavam e sentavam, sobretudo se tivessem o atrevimento de ir buscar água, temiam que sobre si próprio viessem a cair anátemas de perdição moral ou lhe acontecesse alguma desgraça ou desventura. Pior ainda, a entrada na horta consubstanciava-se com aparecimentos fantasmagóricos e tétricos que assustavam e aterrorizavam todos, incluindo os mais “anamudos”. Eram, sobretudo, as mulheres e as crianças, umas e outras mais vulneráveis a medos e crendices, que evitavam passar por ali sozinhas e, pior do que isso, nunca iam buscar água às nascentes, a não ser quando acompanhadas.

Mas o mais curioso e anacronicamente inconcebível é que se sabia, com absoluta certeza, porquanto muitos o haviam conhecido, que o “enforcado de Santo Estêvão” afinal, em vida, fora um excelente rapaz, educado, trabalhador, amigo de todos e incapaz de faltar ou respeito ou ofender quem quer que fosse. Mas isso de nada aliviava os medos ou desfazia as crendices, Enforcara-se e era tudo. Suicidara-se, aparentemente por razões desconhecidas – cuidava-se que por rejeição de comportamentos maternos - e isso era o suficiente para que o anátema tivesse caído sobre a sua memória e o mistério se adensasse sobre o local onde decidira por termo à vida. Por isso e durante muito tempo o enigma que envolvia aquele enforcamento havia de aturrear um medonho temor e, anacronicamente, consubstanciar-se numa espécie de maldição permanente e o lugar havia de ficar sempre conhecido como “O Lugar do Enforcado de Santo Estêvão”.

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publicado por picodavigia2 às 21:30





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