PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O MANETA
Júlia Rodrigues escapuliu para a América, ainda muito nova. Nada e criada num emaranhado reboliço de quase uma dúzia de irmãos, por ser mais velha, cedo foi condenada a ajudar, permanentemente, o pai nas lides agrárias, cavando, sachando, mondando, carregando, umas vezes, cestos de inhames e de batatas, outras molhos de lenha e de incensos. Por isso se revoltava vezes sem conta nesta quase espécie de escravatura a que fora condenada pelo próprio progenitor. Mas como isso de nada lhe servisse ou sequer a aliviasse, começou a germinar-lhe na alma o desejo íntimo de seguir as pegadas da irmã mais velha: esgueirar-se para a América. As cartas que recebia davam-lhe ânimo e permitiam-lhe sonhar com uma vida digna, folgada e feliz.
Feita a carta de chamada, contra a vontade dos progenitores, no primeiro Lima que demandou a ilha, partiu sozinha. Depois de uma longa e atribulada viagem, atravessando o oceano e o continente chegou à Califórnia, sendo recebida com muito gáudio pela irmã e pelo cunhado.
Alguns meses depois envolveu-se de amores com o Frederico Portela, de Ponta Delgada, também ele emigrado havia poucos anos. Casaram fixando residência em Benícia, perto de Pinole, onde vivia a irmã. Dois anos depois, nascia Glória, a única filha que lhes havia de fazer companhia até ao fim dos dias. Primeiro Frederico, depois Júlia.
Glória nunca casou. Vivendo sozinha, após a morte da mãe, conservava um enorme sonho, que nascera e germinara no tempo dos pais. Visitar a ilha onde os seus progenitores haviam nascido. Eles muitas vezes também o desejaram fazer, mas nunca o conseguirem. Inicialmente por falta de meios, mais tarde, quando já viviam mais folgados porque os pais de um e outro já haviam partido e segundo diziam, nada lá mais tinham que os atraísse. Mas verdade é que nunca haviam esquecido a sua ilha, da qual sempre lhe falavam, contando estórias, recordando costumes e ditos, descrevendo pessoas, lugares, tradições e festas. Os pais haviam-lhe deixado um legado memorável e inaudito, a memória de uma ilha pequena, pobre, repleta de trabalhos e canseiras mas local de rara beleza e de brandos costumes, a ilha da Flores, nos Açores. Mas era sobretudo a mãe que mais falava e contava estórias, acontecimentos e costumes do pequenino lugar onde nascera, a Fajã Grande. Glória conservava toda essa informação, como um tesouro precioso, reavivada em encontros e convívios com primos e amigos e jurara a si mesma que um dia havia de visitar a ilha de seus pais.
Se bem o jurou, melhor o cumpriu. Contatou uma agência de viagens e, no verão seguinte, rumou aos Açores, mais concretamente às Flores.
Em Ponta Delgada já não se lhe conheciam antepassados ou parentes. Mas na Fajã Grande vivia um primo, filho de uma das irmãs da mãe. Professor de História em Santa Cruz, nas horas vagas dedicava-se à agricultura e à criação de gado. Era pessoa culta, detentor de grande sabedoria e conhecia a ilha das Flores como ninguém. Recebeu a prima com agrado, disponibilizando-se para lhe mostrar a ilha e lhe revelar os mais recônditos recantos da terra onde a mãe nascera e onde ele sempre vivera. Deram longos passeios pela ilha, visitando as vilas, os matos e as lagoas, apreciando os mais belos miradouros. Vasculharam a freguesia de lés-a-lés, percorrendo muitos dos caminhos que a mãe pisara em criança, agora cobertos de silvados e ervaçais. O primo descobria, mostrava, descrevia, narrava, dando-lhe uma perfeita imagem da Fajã Grande, nos anos cinquenta, coincidindo os seus relatos com tudo aquilo que a mãe lhe havia contado.
Certo dia, Glória voltando-se para o primo disse-lhe:
- Primo, quando em minha casa se partia um prato, uma tigela, avariava um mechim, ou sempre que se destruía ou estragava alguma coisa, minha mãe dizia logo: “La se foi para o Maneta”. Segundo ela tudo o que se quebrava ou destruía ia para o Maneta. E eu nunca percebi quem era este Maneta. Primo quem é este Maneta de quem a minha mãe tanto falava?
O primo sorriu e explicou:
- Isso é, na verdade, uma expressão muito usada não só aqui nos Açores mas também no norte de Portugal Continental, para indicar que algo foi quebrado ou destruído. A origem desta expressão prende-se com as invasões francesas. Conta-se que durante as mesmas, um general francês, chamado Loison, que acompanhava o general Junot, comandante supremo da primeira das três invasões que a França fez a Portugal, perdera um braço numa das batalhas anteriores, o que o impedia de combater. Por isso Junot o nomeou como responsável pelas torturas e castigos a aplicar aos prisioneiros de guerra. Ora o general Loison parece que não era nada meigo, pelo contrário era muito cruel e malvado. Os seus castigos eram tão duros e tão violentos que causaram muitas mortes entre os prisioneiros que lhe eram confiados. Por ser tão terrível nas torturas que executava, o povo tinha muito medo dele e chamavam-lhe o Maneta, por não ter um braço. Quando havia o perigo de alguém ser capturado em combate e, posteriormente, ser castigado, ouvia-se logo o conselho: "Tem cuidado, que ainda vais para o Maneta" ou então “Aquele já foi para o Maneta”. A expressão alastrou-se e, mais de duzentos anos depois, ainda é, habitualmente, utilizada.
- E eu que andei toda a vida sem saber quem era aquele Maneta de que a mamã tanto falava! – Exclamou Glória cada vez mais entusiasmada.