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O MINORISTA

Quarta-feira, 05.02.14

Horácio era uma criança loira, franzina, mas simples, inteligente e estudioso. Fora o décimo segundo e último rebento dos Gouveia. Os pais viviam da lavoira, trabalhando, arduamente, ao vento, à chuva, ao sol, sob tempestades e procelas, lavrando os campos e pastoreando os gados. Apesar de pobres, nunca havia faltado aos filhos uma côdea de pão, um pedaço de bolo do tijolo, uma tigela de leite ou um prato de sopa. Vendendo, diariamente, uma boa parte do leite que ordenhava, embarcando uma rês alfeira, de vez em quando, o Herculano Gouveia poupara uns escudos, que guardava, religiosamente, nos “caninos” de uma caixa verde, trazida, em tempos idos, pelo avô paterno, quando regressara, definitivamente, das Américas.

Terminada a quarta classe, o miúdo, muito mimado e poupado pela mãe e mais inclinado para leituras e rezas do que, propriamente, para o trabalho agrícola, impulsionado pelos elogios da senhora professora à sua inteligência e capacidades de aprendizagem, apresentou-se diante do progenitor, afirmando a pés juntos, que gostava de ir para o Seminário. Queria estudar para ser padre.

O pai, apesar de pouco afeito a missas e igrejas, mas afrontado pela sincera convicção do garoto e pelo denodado apoio da mãe que, deslumbrada com a imprevista revelação do filho, começava a sonhar com a sublimidade de ter um filho padre, acabou por anuir. Preparado o enxoval e tratada a papelada junto do pároco, no Carvalho seguinte, Horácio abalou, com destino ao Seminário de Angra, deixando a mãe lavada em lágrimas e os irmãos numa fúria irritante. O pai, que o veio levar à vila, ao despedir-se dele, a bordo do paquete, encolhendo os ombros, apenas murmurou, tentando, sem grande convicção, estancar-lhe as lágrimas: “Foi o que quiseste! Agora, amanha-te como puderes…”

E amanhou-se muito bem, o Horácio, no Seminário, onde a estadia se transformou numa doce vivência. Acompanhado por dezenas de alunos, originários das várias ilhas açorianas, vivia, naquele enorme casarão, dias de estudo, de disciplina e de oração, mas também momentos de lazer, de brincadeira, de convívio, de alegria e, até, de prática desportiva. De regresso a casa, nas férias, ajudava os pais e irmãos no amanho das terras e no tratamento do gado, como se fosse um deles, pautando, no entanto, o seu dia-a-dia, por uma sóbria seriedade, um discreta moderação e por uma salutar convivência com todos. Além disso, cada vez se ia integrando mais em todas as celebrações e actos litúrgicos, ajudando e colaborando com o pároco, recebendo, como recompensa, redobrados elogios. Era voz unânime, na freguesia, que o rapaz “tinha mesmo jeito para padre!”

E no início do penúltimo ano, o terceiro de Teologia, Horácio, depois de muito pensar e reflectir, aconselhou-se com o Director Espiritual e apresentou-se ao Reitor, declarando que queria, realmente, ordenar-se, pelo que vinha candidatar-se a receber as “Ordens Menores”, durante aquele ano. 

Foi na igreja da Conceição, na festa da padroeira, em Dezembro, que recebeu a “Prima Tonsura”. O bispo, munido de uma tesoura, a cortar-lhe umas farripas de cabelo e ele, de tarde, juntamente com outros cinco, a correr para o barbeiro, a fim de que este lhe desenhasse no cocuruto uma pequena circunferência, rapando-lhe o cabelo naquele minúsculo círculo, assinalando-o com a coroa sacerdotal. Era o rito inicial que o entronizava na vida clerical. Nas têmporas da Quaresma, na capela do Seminário, recebeu o “Ostiariado” e o “Leitorado”, sendo-lhe entregue, simbolicamente, uma chave e um leccionário e, no fim do ano lectivo, enquanto os colegas finalistas eram ordenados “Presbíteros”, ele recebia, na Sé de Angra, o “Exorcistado” e o “Acolitado”.

Terminado o ano lectivo, mais uma vez, regressou, de férias, à freguesia que o vira nascer, mas, desta feita, já clérigo, envergando o fato preto e o cabeção e assinalado, na cabeça, com uma coroa igual à dos senhores padres. Em casa e na rua, por toda a parte, todos se admiravam e interrogavam: “Então?! O rapaz do Horácio Gouveia afinal, já é ou não é padre?”

Aos poucos lá foi esclarecendo uns e outros. Primeiro os pais e os irmãos. Aproveitou uma altura em que todos se reuniam à volta de um caldo de couves com toucinho, ainda a fumegar, e bolo do tijolo quentinho - o pitéu que a mãe, normalmente, confeccionava, para comemorar a sua chegada do Seminário - e esclareceu: “Não, ainda não era padre. Tinha recebido apenas a “Tonsura” e as “Ordens Menores”, mas estas não eram sacramento, nem sequer consagravam, de modo definitivo, ao serviço de Deus, quem as recebia. Era apenas “minorista”. No entanto, com estas ordens, já era clérigo e podia acolitar nas missas solenes, de três padres, paramentando-se, neste caso com a dalmática, mas sem a estola. Como se fosse um subdiácono… Apenas, no final do próximo ano, o senhor bispo lhe havia de conferir a ordem de presbítero. Ao regressar, no verão, celebraria, na igreja da freguesia, a sua Missa Nova.”

As irmãs, sempre muito afoitas à igreja, sobretudo agora que iam ser “irmãs do senhor padre”, ainda entenderam alguma coisa. Os irmãos, cedo se desinteressaram pela conversa. O pai percebeu apenas que ele era “minorista” e que já podia rezar missa, contanto que fosse ao lado de outros padres, enquanto a mãe, aproveitou o momento de enlevo, para, mais uma vez, agradecer a Deus, o dom divino com que fora presenteada na sua senectude.

No dia da festa da padroeira, decidiu o pároco que o Horácio havia de fazer a sua estreia na celebração dos divinos mistérios, acolitando-o de subdiácono, na missa da festa.

Horácio paramentou-se a rigor, ufanando-se de pela primeira vez envergar uma dalmática. Aprimorou-se no acompanhamento da celebração, quer no cantar da epístola, num latim fluente e com uma excelência desusada, quer na forma como se aproximava ou afastava do altar, sempre de mãos postas sobre o peito, sempre elegante e digno, ao executar, com sobriedade e primor, quer as genuflexões ao meio do altar, quer as inclinações perante o cruxifixo, à elevação da hóstia e do cálice ou ao “nobis quoque pecatóribus”. Até o segurar do missal durante o canto do evangelho pelo pároco da freguesia vizinha, que fazia de diácono, foi feito com dignidade e aprumo, contrastando, notoriamente, com as atitudes da maioria do clero presente, muitos deles já de avançada idade e, acentuadamente, barrigudos.

No fim da missa toda a população, que nem sequer distinguia uma casula duma dalmática, se ufanou, alegrou e regozijou por ver um filho da terra, ainda ontem criança e agora já a subir o altar, celebrando com tanta dignidade, beleza, excelência e santidade, os sagrados mistérios, naquela missa de três padres.

Todos, menos o compadre Sebastião, que juntamente com a sua Josefa haviam sido os padrinhos de baptismo do Horácio. Indignado, revoltado e amuado, o Sebastião, no fim da missa, procurou o compadre Gouveia, que sempre lhe havia garantido que no dia da “Missa Nova” seria ele e a comadre Josefa, sentados em lugar de honra, na capela-mor, que haviam de segurar a bacia e o jarro de prata, com que o afilhado, antes de se aproximar do altar, lavaria as mãos.

Mas o Gouveia não se fez esperar e esclareceu com clareza:

- Ó home, nã tás bom do juízo. O rapaz é minorista. É verdade que já pode cantar missa, mas acompanhado d’outros padres. Sozinho nã pode. Só para o ano que vem é que senhor bispo lhe vai dar ordem p’ra ele poder dizer a missa sozinho.

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publicado por picodavigia2 às 17:04





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