PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O NAUFRÁGIO DO PADRE ANTÓNIO VIEIRA AO LARGO DAS FLORES E DO CORVO
É por de mais conhecida a passagem pelos Açores do grande orador e escritor português, o padre António Vieira. Esta presença de Vieira, nalgumas ilhas açorianas, verificou-se no ano de 1654 e terá sido meramente casual, pois aconteceu devido a um naufrágio de que foi vítima a embarcação em que viajava, oriunda do Brasil e com destino a Lisboa. Mais curioso ainda é o facto daquele naufrágio se ter verificado relativamente perto das ilhas do grupo ocidental açoriano – Flores e Corvo, embora aquele célebre orador, ao que se crê, não tenha aportado a nenhuma destas ilhas.
Reza a história que, algum tempo depois de proferir o mais que conhecido "Sermão de Santo António aos Peixes" em São Luís, no estado do Maranhão, no Brasil, o padre António Vieira embarcou, às escondidas das autoridades e dos brancos, a 17 de Junho de 1654, com destino a Lisboa, a bordo de um navio da Companhia de Comércio, que carregava açúcar do Brasil para a Metrópole. No entanto, o padre António Vieira só chegou a Lisboa em Novembro do ano seguinte, depois da mais tormentosa de todas viagens que alguma vez realizou. O padre António Vieira vinha em missão diplomática, cujo objectivo era defender, junto do rei de Portugal, D. João IV, os direitos dos indígenas, escravizados pela ganância e pela cobiça dos colonos portugueses. Após cerca de dois meses de viagem, já à vista das ilhas das Flores e do Corvo, a Oeste dos Açores, abateu-se sobre a embarcação em que viajava o ilustre orador, uma violenta e terrível tempestade. Uma rajada mais forte de vento terá arrancado uma das velas, deixando a embarcação à deriva. No meio do mar revolto, entre um vento fortíssimo e ondas altivas, na iminência do naufrágio, o padre António Vieira cuidando que a embarcação não resistiria à tormenta, concedeu a todos os tripulantes e outros passageiros a absolvição geral, bradando: "Anjos da guarda das almas do Maranhão, lembrai-vos que vai este navio buscar o remédio e salvação delas. Fazei agora o que podeis e deveis, não a nós, que o não merecemos, mas àquelas tão desamparadas almas, que tendes a vosso cargo; olhai que aqui se perdem connosco."
Após essa exortação, todos fizeram em conjunto, a Nossa Senhora a promessa que lhe rezariam um terço todos os dias, caso escapassem à morte, por demais, iminente. O navio permaneceu adernado durante mais um quarto de hora, até que os mastros se partiram. Felizmente e com o peso da carga, o navio voltou à sua posição normal, mas permanecendo à deriva, ao sabor do vento, das ondas e das correntes, durante algumas horas.
No entanto, uma embarcação passou por ali e, vendo-os, aproximou-se. Por azar dos azares, tratava-se de um navio de piratas holandeses que tudo saquearam e deixaram Vieira e os companheiros sem roupas e sem bens. Mas como que por milagre, os piratas, acabaram por condoer-se dos náufragos e recolheram-nos, mas afundaram a sua embarcação. Nove dias mais tarde, consta que todos os tripulantes, despojados de seus bens pessoais, foram desembarcados, às escondidas e em lugar ermo, na ilha Graciosa, onde o padre António Vieira, com o auxílio dos religiosos da Companhia de Jesus, procurou providenciar roupas, calçado e dinheiro para todos, durante os dois meses que permaneceram na ilha, após os quais, seguiram para Terceira, onde Vieira pretendia arranjar uma embarcação para que ele e os seus companheiros de infortúnio pudessem seguir para Lisboa. Em Angra, o padre António Vieira ficou instalado no Colégio dos Jesuítas, onde permaneceu algum tempo. Foi durante o tempo que permaneceu em Angra que terá instituído a devoção do terço, que pela primeira vez foi cantado na Ermida da Boa Nova. Além disso foi muito solicitado a pregar em diversos templos da ilha, destacando-se o sermão que proferiu na Igreja da Sé, na festa da Senhora do Rosário. Consta que a catedral se encheu de fiéis como nunca, embora sem presença de bispo diocesano, pois, nesses anos, entre os governos de Dom Frei António da Ressurreição e Dom Frei Lourenço de Castro, a sede da diocese estava vacante.
Uma semana mais tarde, Vieira passou à Ilha de São Miguel. A sua estadia em Ponta Delgada também ficou historicamente ligada à pregação, na Igreja que os Jesuítas possuíam nesta cidade, a igreja de Todos os Santos, do memorável sermão em louvor de Santa Teresa. O estilo vigoroso e inconfundível que o celebrizou como pregador encontra-se bem visível neste sermão, onde também é comentado o naufrágio de que fora vítima, meses antes, fora da ilha das Flores, em metáforas que apelam, com veemência, à emoção. Vieira inicia o sermão com a citação da passagem evangélica das dez virgens: “Quinque autem ex eis erant fatuae, et quinque prudentes”. E depois continua: “Acaso, e bem acaso, aportei às praias desta ilha; acaso e bem acaso entrei pelas portas desta cidade; acaso e bem acaso me vejo hoje neste púlpito, que é verdadeiramente o poço de Sicar, onde se bebem as águas da verdadeira doutrina”.
Logo a seguir refere-se ao naufrágio, explicando-o com uma passagem do Antigo Testamento: “Por certo que não foi tão grande a tempestade de Jonas como aquela em que eu e os companheiros nos vimos. O navio virado no meio do mar, e nós fora dele, pegados ao costado, chamando a gritos pela misericórdia de Deus e de sua Mãe. Não apareceu ali baleia que nos tragasse, mas apareceu — não menos prodigiosamente naquele ponto — um desses monstros marinhos que andam infestando estes mares. Ele nos tragou, e nos vomitou depois em terra”.
Dali o padre António Vieira partiu para Lisboa, a bordo de um navio inglês, onde chegou em Novembro desse ano, curiosamente, após atravessar nova tempestade.
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