PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O NECASPICIAS
Desde que entrámos em casa do senhor Algarvio, ele, a mulher e meu pai não haviam cessado de lamentar a morte da minha mãe. Era sobretudo a dona Josefa quem mais se desfazia em lágrimas e lamentos. Foi o senhor Algarvio que, colocando o braço sobre o ombro do meu progenitor, interrompeu as lamúrias da sua consorte, ordenando, meigamente:
- Ora vamos deixar coisas tristes e vamos conversar é com este nosso homenzinho, que desde que chegou ainda não disse nada. – E voltando-se para mim com um olhar terno e mavioso:
- Como te chamas?
Como eu permanecesse calado, insistiu
- Perdeste a língua?
- Álvaro. – Respondi tímido e envergonhado.
Meu pai, vendo a minha atrapalhação, interveio em minha defesa.
- Ele está um bocado mal disposto. É que nós viemos de barco…
- No do Gregório, que foi levar farinha à Fajã? – Indagou o Algarvio
- Sim, sim. Mestre Gregório apareceu lá na Fajã e ofereceu-se para me trazer. O pequeno, quando soube que o trazia comigo ficou todo contente, porque nunca tinha andado no mar. No início da viagem, vinha bem-disposto, mas depois o mar piorou e ele começou a enjoar. Vomitou e passou mal durante quase toda a viagem… Uma desgraça! Sorte foi ter adormecido a partir da ponta do Albarnaz.
Dona Josefa, olhava-me com um misto de ternura e piedade tentando consolar-me:
- Coitadinho! Então deve estar muito fraquinho e cheiinho de fome.
- Ó mulher, - Exclamou o Algarvio com um enorme vozeirão, recriminando o estaticismo da consorte - E tu aí parada a fazer o quê!? – Depois, retorcendo as pontas do enorme bigode que quase lhe enchia o rosto, ordenou em tom imperioso – Vá lá. Vai buscar alguma coisa para esta criança comer.
Dona Josefa, levantando-se agarrada com ambas as mãos às ancas, aproximou-se de mim:
- O menino quer uma tigelinha de leite e uns biscoitinhos que tenho ali dentro, ainda quentinhos? Quer?
Cada vez mais tímido e envergonhado, imerso num mundo a que não estava habituado fiz sinais negativos com a cabeça:
– Não senhora. Não quero nada. Obrigado.
O senhor Algarvio é que não desistia:
- Ó Josefa, francamente. Isso é pergunta que se faça a uma criança, ainda por cima a uma criança que enjoou toda a viagem, da Fajã até aqui, a Ponta Delgada, que deve estar cheia de fome? – E voltando a retorcer as pontas do bigode, voltou a ordenar com alguma rispidez – Vai imediatamente buscar alguma coisa para esta criança comer. Nunca se pergunta a um doente se quer saúde.
Dona Josefa, arrastando os pés nuns chinelos de veludo acastanhado, entrou na cozinha, chamando:
- Muda! Ó Muda! Despacha-te mulher! Ai meu Sagrado Coração de Jesus! Esta mulher nunca me ouve. Está cada vez mais surda.
O senhor Algarvio, tentando aliviar a minha timidez, continuou:
- Então chamas-te Álvaro. Sim senhor. Bonito nome. Fazes muito bem em acompanhar sempre o teu pai. – E voltando-se para o meu progenitor – Ainda tens dois mais novitos, não tens?
- Tenho uma menina de três e um rapaz de meses. Mas estão quase sempre em casa de minha sogra.
Dona Josefa não demorou. Entrando na sala com uma bandeja com biscoitos e uma tigela de leite, dirigiu-se para mim:
- Ora vamos lá a comer, que deves estar mortinho de fome.
Perante a minha insistente recusa, mais gerada pela vergonha que sentia do que pela falta de fome que tinha, meu pai ordenou:
- Álvaro, não te faças rogado. Se a dona Josefa oferece é de boa vontade. Bebe o leite…
Levantei-me e, levando à boca a tigela do leite, bebi-o sofregamente. Esboçando um leve sorriso e feliz por sentir que eu agora já estava mais à vontade, o senhor Algarvio comentou em tom jocoso:
- Então o leite das vacas cá do Algarvio não é melhor do que o das do teu pai? Quantas vacas tens, agora, António?
- Duas. Mas vou embarcar uma, a Toucada. Já está à engorda. Quero ver se me dá pelo menos um conto, para por água em casa e mandar fazer uma pia para lavar roupa. A água faz muita falta numa casa e a pequena é muito novinha e fraquita, não pode andar a acarretar baldes e baldes de água ou ir lavar sozinha para a ribeira. Tenho uma bezerra deste ano, que vou criar para fazer vaca. – E voltando-se para mim que terminara o bródio: – E agora? Como se diz à senhora Josefa?
Mais animado e recomposto, respondi prontamente:
- Obrigado, senhora dona Josefa!
O senhor Algarvio, continuando a alimentar o seu velho hábito de retroceder o bigode, voltando-se para mim, perguntou:
-Sim senhor! Muito bem, Álvaro. Agora que já recuperaste as forças, diz-me lá: já andas na escola?
- Não senhor. Só tenho seis anos, mas em Março faço sete e a senhora Professora já disse que no dia a seguir entro logo para a escola.
O pai esclareceu:
- Ele já sabe ler. São minhas cunhadas que o ensinam. Depois ouve os irmãos a estudar as lições de cor e aprende tudo.
- Depois de fazer a 4ª classe deves pô-lo a estudar, que ele parece muito inteligente
- Ui! Como, António? Isso é uma loucura. Só se for com conchas de lapas. Já a Amélia também era muito esperta e quando acabou a 4ª classe a senhora professora disse-me o mesmo. Mesmo que fosse aqui na ilha eu não podia… Mas então, ir para o Faial… Nem pensar…
- Isto é uma vergonha! Numa ilha como esta só haver escolas primárias! Não há um liceu! Quem quer continuar a estudar tem que ir para o Faial, para a Terceira ou para S. Miguel. Isto não se admite!...
- As crianças fazem muita falta aos pais para os ajudar nas terras. Olha em toda a Fajã, que me lembre, só duas raparigas é que foram estudar para o Faial.
Enchi-me de coragem e interrompi, orgulhosamente:
- Eu já sei os rios de Portugal todos. Quer ver senhor António: Minho, Lima, Cávado, Ave, Douro, Vouga, Mondego, Tejo, Sado, Mira e Guadiana. E também já sei os reis da 1ª dinastia e os seus cognomes…
- Álvaro, não aborreças mais o senhor António.
- Deixa lá gosto de ouvi-lo. Além disso, com esta idade e já saber tudo isso não é muito vulgar.
- E rezar? Também já sabes rezar? – Interveio dona Josefa, voltando-se para mim.
- Claro que sei dona Josefa. Até já sei o Pecador em latim e o Necaspicias. Sabe o que é o Necaspícias? É a resposta que se dá ao De Profundis, o responso que o senhor Padre reza quando morre alguém: O senhor Padre diz: “De profundis blábláblá até domine.” E a gente responde: “Necaspicias nevisonis”, três vezes seguidas.
- Louvado seja o Sagrado e Imaculado Coração de Maria! – Exclamou, pasmada dona Josefa: - Até já sabe o Necaspicias.