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O PENICO

Terça-feira, 04.02.14

Corriam os famigerados anos da Segunda Guerra Mundial que envolvera a maioria das nações do mundo, organizadas em duas alianças militares opostas: os Aliados e o Eixo. Um conflito tremendo, dramático e o mais letal de toda a história da humanidade, em que todos os países envolvidos se agastavam excessivamente, desfazendo, quase por completo, as suas mais excelsas e dignas capacidades. Açulada pela guerra, a economia mundial suportava um rude golpe, um grande revés e muitos países, para além da angústia e da morte, sofriam o flagelo da fome e da falta de todo o tipo de géneros. Portugal e os Açores, em particular, não foram excepção. Nas ilhas, em cujos mares, em vez dos navios e iates que, tradicionalmente, nelas faziam escala, abastecendo-as e ligando entre si as suas gentes, navegavam, agora, preferencialmente, submarinos alemães, numa zona, para eles, transformada numa espécie de santuário, deserto de navios e aviões inimigos, onde reabasteciam os seus navios de guerra, em trânsito para o teatro das operações ou para as suas bases. Tudo isto fazia com que a vida económica das populações das ilhas começasse a ressentir-se, rareando muitos produtos, nomeadamente, os alimentares e os derivados do ferro.

No Seminário de Angra, nesses tempos a abarrotar de alunos, vivia-se intensamente o drama mundial. Recolhiam-se notícias soltas num ou noutro rádio, liam-se os poucos jornais existentes, discutiam-se as estratégias bélicas e, nos campos de jogos, chegaram a efectuar-se árduas batalhas entre Aliados e Eixo, nem sempre favoráveis aos primeiros. Mas o que mais se fazia sentir era a escassez de géneros, nomeadamente, de alimentos, no minorado pecúlio armazenado nas dispensas anexas à cozinha, e que ia transformando as refeições em momentos de rareza, consubstanciada, sobretudo, na carne, rija, intragável, a originar a lendária “miragaia”. Mas, pior ainda, é que com as restrições à navegação e, sobretudo, com o enfurnar da abastança de muitas famílias, havia diminuído, substancialmente, o acervo de cestas, cabazes, pacotes, sacos, caixas e encomendas que chegavam ao Seminário, quer de São Miguel quer das ilhas de baixo e que, nos intervalos das refeições, alentavam gulosices e sustinham as carências nutritivas que as refeições, cada vez mais limitadas, consubstanciavam. Até a Terceira, por razões mais que óbvias, líder destas remessas, agora fraquejava, tornando-as quase exclusivas de uma ou outra família mais abastada.

Era o que acontecia com o Menezes. A família, residente numa enorme quinta, para os lados da Silveira, possuía bens e terras de tal ordem e riqueza, que por mais que a guerra cravasse as suas garras desoladoras na economia açoriana, não se haviam de esgotar tão cedo. Por isso todos os domingos de manhã, à hora da visita, a mãe e duas tias solteironas, corriam solícitas até à portaria do Seminário, trazendo ao seu menino sacos e caixas com todo o tipo de vitualhas, onde nunca faltava um bolo doce. Mas o Menezes era um sovina, sôfrego, comilão e anafado, incapaz de partilhar com quem quer que fosse uma nica do que tão substantivamente lhe traziam e que tão, avidamente, comia e guardava nas suas malas. À hora do recreio, mal soava a campainha, era vê-lo, de chave na mão, a correr para o porão, a encafuar-se às escondidas, atafulhando-se em bolachas, biscoitos, frutas, filoses e fatias de bolo doce. Os outros, simplesmente, a verem e a crescer-lhes água na boca.

Alguns, mais famélicos, bem o seguiam, a ver se o somítico repartia alguma coisa… Mas ele, nada. Outros, mais atrevidotes, bem o tentavam apanhar de surpresa, surripiar-lhe as chaves, mas ele parecia que tinha olhos no rabo e reflectores nas orelhas. Impossível rapinar o que quer que fosse ao somítico do Menezes.

Revoltado com tamanha sovinice, agastado com tão irritante falta de companheirismo, o Machado jurou a pés juntos que lhe havia de surripiar um bolo, com qual todos se haviam de deliciar. Os outros que não e ele que sim! Que esperassem, que haviam de ver e não demoraria muito.

Foi o Manelinho, o empregado sempre solícito e amigo, encobridor de patuscadas e colaborador na candonga dos cigarros, que comprou um bacio, de alumínio, para não se partir, ao ser arremessado.

Depois, foi aguardar, atentamente, uma manhã de domingo. O Menezes, durante a hora de estudo, chamado à portaria para receber familiares e géneros, foi colocar os sacos e pacotes, na camarata, à espera do recreio seguinte, a fim de os guardar na mala, no porão. Ainda nem tinha regressado o Menezes ao seu lugar e o Machado junto à secretária do prefeito que, muito concentrado, lia o breviário. Tinha uma enorme dor de barriga e precisava de ir à retrete, com urgência. Um desvio pela camarata. Lá estavam as vitualhas do Menezes, entre as quais um bolo doce, excelente, apetitoso, divinal. Retirou-o da caixa de papelão e colocou-o, com cuidado, dentro do penico que, obviamente, nunca tinha sido utilizado.

Mal tocou a sineta para o recreio e o Menezes a correr para a camarata, com o intuito de proteger o seu pecúlio pantagruélico. O Machado e os comparsas com quem compartilhara o ardil, a verem de longe.

Dito e feito. O Menezes, ao deparar-se com a marosca, furioso, pegou no penico e arremessou-o, com violência, para chão da camarata, ficando o bolo, por feliz coincidência, direitinho e inteiro como se, acabado de sair do forno, aguardasse ser retirado da forma. Era o epílogo desejado!

E do bolo, nem uma fevra sobrou.

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publicado por picodavigia2 às 19:40





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