PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O QUEIROAL
O Queiroal era, em extensão, um dos maiores lugares da ilha das Flores que pertenciam à freguesia da Fajã Grande. Situado lá bem no alto e no interior da ilha, o Queiroal distinguia-se pela exuberância dos seus recantos, pelo verde das suas pastagens, pelo abrupto dos seus pináculos e ravinas, pelo esconso dos seus grotões e valados, por um indefinido e silencioso mistério envolvente. Situado no extremo leste da Fajã, do lado oposto ao oceano e muito distante do povoado, o Queiroal era zona de excelentes pastagens, separadas umas das outras por valados e grotões onde floresciam intensos bardos de hortênsias multicolores que lhe davam um colorido inebriante, delicioso e mítico. Situava-se na fronteira com o concelho de Santa Cruz, nomeadamente com as freguesias dos Cedros e de Ponta Delgada. Uma parte do Queiroal, em termos de localização geográfica e administrativa, já pertencia ao Concelho de Santa Cruz, porquanto os proprietários de algumas relvas tinham que ir pagar a faxina às Finanças da vila de Santa Cruz.
Uma parte do território do Queiroal era constituída por montes e por planaltos onde havia grandes pastagens separadas por sebes de hortênsias, valados e grotões. Ao meio e quase a atravessá-lo de este a oeste expandia-se e prolongava-se num vale, aprazível, fresco, verdejante e de uma beleza rara mas encafuado e escondido bem lá no centro da ilha, sem canadas, caminhos ou outros meios de acesso. Apenas através de veredas íngremes e de atalhos sinuosos, atravessando valados e saltando grotões, lá se chegava. Por isso pouca gente conhecia este idílico local, enquanto muitos outros, simplesmente, o ignoravam, pois quase ninguém por ali passava e era escasso e reduzido o número de pessoas que ali se deslocava, nas suas fainas diárias, de acompanhamento e vigilância do gado ou para ceifar os fetos e limpar as pastagens. Para quem partia da Fajã Grande, o Queiroal constituía o fim de todos os atalhos, o termo de todos os caminhos, o início do degredo, do deserto, do emaranhado. No entanto a sua localização era privilegiada, em função da vista que dali se desfrutava sobre uma boa parte da ilha e do oceano, inserindo-se, além disso, num cenário maravilhoso quase bucólico, ideal para um desenvolvimento de aliciantes projetos turísticos, na década de cinquenta ainda impensados e hoje denegridos. Além disso, a sua localização permitia que grande parte do seu território se visse do povoado. Muitos homens sentados na banqueta da Casa do Espírito Santo de Baixo, de tarde, a descansar, conseguiam ver as rezes que pastavam naquelas verdejantes pastagens. Eram, na verdade excelentes as pastagens do Queiroal. Essa a razão por que mesmo muito distantes, muitos proprietários colocavam lá as vacas de leite com a obrigação de ali se deslocarem todos os dias para a ordenha, o que era imensamente cansativo e desgastante. Eram também muito férteis aqueles terrenos e, apesar de situadas no mato, num clima frio e intempestivo, o Teodósio chegou a lavrar alguns e a semear milho. O milho era bom e os resultados da colheita excelentes, mas o diabo era transportá-lo, em cestos, às costas até ao cimo da Rocha e, pior, ao descer a Rocha. Um martírio.
Era no Queiroal que se localizava o Pináculo com o mesmo nome. Era um enorme e abrupto rochedo como que plantado em riste no meio de um enorme e elíptico vale forrado de fresca alfombra e ornamentado de bardos de hortênsias. Apontado para o céu, visto de lado era como se fossem duas mãos postas, mas observado de frente, assemelhava-se ao frontispício de uma gigantesca catedral medieval. O Pináculo, situado num vale amplo, rodeado de vegetação luxuriante, impunha-se, sobretudo, no seu topo com dois picos, um semelhante a uma torre e o outro em forma de triângulo, como que simulando a parte central e superior da fachada de um templo. Esta era, muito provavelmente, a razão de ser do seu epíteto.
O acesso ao Queiroal, para além de longo e demorado, era muito difícil. Primeiro a íngreme subida da Rocha e o atravessar daqueles lameiros das primeiras relvas, onde proliferavam inúmeros e minúsculos mas extremamente pantanosos afluentes da Ribeira das Casas. A partir do Caldeirão da Ribeira das Casas não havia caminho, seguia-se por trilhos que, para além de maus, eram inseguros e pouco acessíveis, uma vez que a vereda, aparentemente, parecia diluir-se, mesmo fechar-se, obstruir-se com bardos de hortênsias, de queirós e de cedros, com copas seculares e enormes, que ali se haviam desenvolvido em excesso. Como alternativa era possível seguir através das relvas, sem trilhos demarcados ou veredas decalcadas sobre a erva, gastando-se em distância o que se poupava em esforço descontrolado e, por vezes, improfícuo.
Outra curiosidade deste idílico lugar onde se situava o famoso Pináculo é que do sentido contrário não havia qualquer tipo de acesso. Era uma floresta densa de cedros e queirós, obstruindo toda e qualquer passagem. Isto porque terminava ali o território da freguesia da Fajã Grande e iniciava-se o da de Ponta Delgada, já em pleno concelho de Santa Cruz. Dados estes condicionalismos, nas belas pastagens do Queiroal grassavam pequenas manadas de gado alfeiro, um manso e domesticado que ali era colocado temporariamente e outro quase selvagem, ali nascido e que dali havia de ser retirado, apenas quando gordo e arrolado, pronto a embarcar no Carvalho com destino a Lisboa.
Resta acrescentar que o Queiroal era limitado a norte pelo concelho de Santa Cruz, a leste pela Água Branca, a oeste pelo Cimo da Rocha e pela Caldeirinha e a sul pela Ribeira das Casas, onde pontificava o mítico Caldeirão. O seu nome deriva, naturalmente, de ser um local onde florescia muita urze, uma endémica açoriana, nas Flores conhecida por queiró.
Quem mais propriedades tinha no Queiroal era o Lucindo Cardoso. Por essa razão deslocava-se para ali quase todos os dias, a mondar a ceifar fetos e a tratar do gado. Por vezes ali passava a noite numa furna. Além disso, referia-se e elogiava com frequência as propriedades que ali possuía. De tanto por lá andar e de tanto àquele lugar se referir foi apelidado de Homem do Queiroal.