PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O TERÇO
Todas as noites, mal terminava a ceia, minha avó, sentada em cima duma caixa verde que ficava enfiada num dos cantos do quarto de jantar, entre o armário onde se guardava a loiça e o tabique da cozinha, benzendo-se e persignando-se, iniciava as rezas:
- In nome du Pai, du Filhe e du Sprite Sante.
- Amen! – Respondíamos nós, em uníssono, ao mesmo tempo que, seguindo o seu exemplo, também nos benzíamos com a mão direita, persignando-nos, de seguida, desenhando com a ponta do polegar três cruzes: uma na testa, outra na boca e uma terceira no peito.
O pequeno quarto de jantar, agora transformado em santuário, com uma janela de vidro no tabique, ficava lado a lado com a cozinha, com a qual parecia geminado. Preso na janela estava um candeeiro a petróleo, de tal forma encastoado que a única e débil luz que emitia, iluminava, simultaneamente e num perfeito e delineado esquema de rentabilização de recursos e de poupança, aquelas duas divisões da casa.
Depois da morte do meu avô, coube à minha avó o direito e a responsabilidade de presidir às rezas nocturnas, ou seja, ao Terço, lá em casa. Segundas e quintas, mistérios gozosos, terças e sextas os dolorosos e, finalmente, às quartas e aos sábados os gloriosos. Aos domingos era dia de folga - o terço era rezado na igreja, antes da missa.
O quarto enchia-se de gente. Meus tios e tias, obrigados a permanecer em casa durante a reza, eram muitos e, além disso, vínhamos nós, que também não éramos poucos e, por vezes, uma ou outra vizinha, acompanhado da família, que ali vinham fazer serão. Uns sentavam-se à volta da mesa, outros nalguma cadeira que por ali rareava ou no banco de lavar os pés e, a maioria, no chão.
- Primeire mistérie – clamava minha avó, rápida e dolente – Agonia de Nosse Sinhô no Horte das Aliveiras. - E sem hesitar ou fazer qualquer prosa ou comentário, atirava de rajada: - Padre Nosso quastás no Céu, santeficade seju vosse nome….
O quarto, de imediato, parecia não caber em si de êxtase com a resposta pronta, volumosa e abruta de todos os presentes que, em uníssono rezavam:
- “O Pan’osso de cada dia nos dai ehoje….”.
Da cozinha, chegava como em eco a voz lenta, grossa, pausada e rouca dos homens que ali haviam ficado, uns por serem menos afectos a rezas, outros por não caberem no quarto.
… E a oração continuava, monótona e sincronizada. Alternavam-se, à vez, as Ave-Marias com as Santa Marias, até ao Glória, depois do qual tudo voltava ao início, com uma pequena diferença: o Padre Nosso assim como a Ave Maria, agora, eram pertença do coro dos circundantes. À minha avó sobravam o “Pão Nosso” e a “Santa Maria”…
A reza era prolongada, lenta, morna, martelada e, além disso, iluminada por uma luz frouxa e titubeante, onde os vultos se distinguiam mais pelas vozes do que pelas feições. A oração, à medida que avançava, ia-se tornando cada vez mais diluída, lânguida e como que desvanecida. Alem disso, depois de um dia de trabalhos exaustivos e de canseiras prolongadas e excessivas, a monotonia do Terço convidava ao sono, ao tédio, ao enfado e ao aborrecimento. Por isso ainda nem ia a meio e já alguns dormitavam, intermitentemente, outros bocejavam e a maioria distraía-se, debulhando as contas maquinalmente. Um ou outro mais folgazão, interrompia a reza com graçolas mais impróprias do momento do que ofensivas de quem quer que fosse, muito menos de Deus ou da Virgem. Mas minha avó não contemporizava. Brincar com as coisas de Deus é que nunca. De imediato, interrompia a reza para enxotar o “Eira-Má”, o “Coiso-Mau”, o “Demónio” que, na opinião dela, era o responsável por aquele descalabro, por aquela pouca vergonha, metendo-se no corpo do provocador. Depois exorcizava, com convicção:
- Sume-te daqui, excomungado e vai-te pru quintu dus infernos, quei nam quer cair em tantaçães. - E voltava a benzer-se vezes sem conta, como se iniciasse, novamente, a reza, para, de seguida, voltar a esconjurar. – Eu me benzo do Coiso-Mau! Reda vaz, Satanaz! Eu tí’sconjuro, Cão-da-Meia Noite!
Perante as ameaças de que a reza ficaria por ali, lá se calavam os incautos provocadores, permitindo que o Terço continuasse e chegasse, pelo menos, ao “Nosse Sinhô cruade despinhos”.
- Tal qual a image do Sinhô dos Passes que temes na noss’igreja, - comentava, em voz baixa, cheia de fervor e crença, tia Graça, muito afeita e conhecedora de todas as celebrações e novenas que se faziam na igreja da freguesia.
…E após muitas Ave Marias e alguns Padre Nossos, lá chegava minha avó ao Calvário, à “crucefixão e morte de Nosse Sinhô” e por fim à “Salve Rainha”, sinal de que o longo e monótono Terço tinha ali o seu fim. Mas minha avó não ia nos ajustes. Depois da Ladainha, rezada num latim típico e invulgar, o fundador e pregador do Santo Rosário – São Domingos – merecia, todas as noites uma oração especial, a que se seguia uma série infindável de “Padre Nossos”, quase tantos como os do Terço, por alma de pai, d’avô, d’avó, de Pai Cristiano, de José do Céu, d’Angelina, “por todes os nosses parentes, amigues e benfeitores e p’las do Purgatórie, especialmente, p’las que mais precisarim”. Depois, uma segunda série, a comtemplar as intenções deste e daquele, a saúde de todos, sobretudo, a dos que haviam partido para longe – para a América.
A noite, apesar de longa, já ia avançada. Mas os homens, ainda, acendiam um cigarro e formavam círculo à volta da mesa, para a sueca. As mulheres, aproximavam-se mais da lamparina, agora com o pavio alevantado, e pegavam nas cardas, no fuso ou nas agulhas e nós, as crianças, sentavamo-nos, à volta da minha avó, ávidas de ouvir mais um conto:
- “Era uma vez uma princesa que numa noite foi três vezes ao Inferno…”