PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
OVELHAS DA BURRINHA
“Ser (não ser) como as ovelhas da Burrinha.”
Os adágios são, incontestavelmente, uma das mais interessantes formas de ensinamento moral, inventadas pelas sociedades a fim de alertar os seus membros para uma vivência de acordo com os mais nobres princípios da moral, da ética e dos bons costumes. Baseados, normalmente, em factos do quotidiano, os adágios exprimem, em pequenas e sucintas frases, sentenças que tem como objectivo moldar a experiência e as acções humanas, geralmente apresentadas em breves e elegantes palavras e são como que um precioso erário, não só de sabedoria popular, mas também do código de conduta moral e cívica do povo.
Ora como todas as sociedades a Fajã Grande, até porque diferenciada por um isolamento acentuado, também criou, naturalmente, ao longo da sua história, costumes, tradições e os seus próprios adágios, entre os quais era muito frequente o seguinte: “Ser (não ser) como as ovelhas da Burrinha.”
Para compreender o significado deste interessante adágio muito utilizado, talvez mesmo exclusivo ou se quisermos “endémico” da Fajã Grande, é necessário recorrer-se a alguns costumes daquela freguesia florense, na primeira metade do século passado, nomeadamente no que se relacionava com a forma como se criava o gado ovino. Na realidade, na Fajã Grande, como aliás noutras freguesias das Flores e até no Corvo, as ovelhas eram criadas de forma comunitária, sendo colocadas numa zona do mato chamada “concelho”, um grande espaço comunitário de pastagens, situado nas zonas mais altas da ilha e, consequentemente, mais pobres e consideradas “terra de ninguém”. Despejadas aí as ovelhas, abandonadas ao seu destino, eram assinaladas nas orelhas com o sinal do seu proprietário, sendo que todos sinais eram diferentes. O povo juntava-se, duas vezes por ano, para as recolher, num “curral” para tal construído, com o fim de as tosquiar. Era o chamado dia de “Fio” a que se atribuía um ar festivo. Nesse dia de manhã, bastante cedo, os homens partiam para o mato, para a zona do concelho, a qual, pelo menos uma boa parte, se situava no lugar chamado a “Burrinha”, onde se distribuíam estrategicamente, a fim de recolher todas as ovelhas, que, sentindo-se perseguidas por homens e cães, caminhavam umas atrás das outras, sem saber qual era o seu destino e muito menos sem o escolher. Foi este costume secular que naturalmente deu origem ao provérbio “Ser ou não ser como as ovelhas da Burrinha”, com o qual se queria significar e transmitir às pessoas que ao fazerem as suas opções, não deviam ser como as ovelhas recolhidas pelos homens nos terrenos da Burrinha no dia de Fio e que caminhavam umas atrás das outras, sem escolherem o seu caminho e sem saber para onde iam. Pelo contrário, o ser humano devia ser livre de agir e pensar por si próprio, evitando deixar-se arrastar pelas ideias ou pelos costumes, pensamentos e atitudes dos outros.
Pensar livremente e por si próprio, agir de forma coerente com os seus princípios, ser responsável pelas suas opções e projectos de vida, ser coerente consigo próprio e construir o seu próprio percurso de vida é o que de mais nobre tem o ser humano e era precisamente isso que se pretendia sintetizar, na Fajã Grande, na década de cinquenta, com este adágio. Em boa hora, pois, era lembrada a estultícia e o desatino das ovelhas da Burrinha e, sobretudo, a sua falta de liberdade.