PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
PIRADA 1974
Véspera de Páscoa, do ano da graça de 1974. A tarde, apesar de inquietante e trémula, aproximava-se, lentamente, do fim, mas disfarçava-se de alegre e folgazona. Garrafas de cerveja e copos de whisky esbanjavam-se em catadupa e misturavam-se gracejos supérfluos e a palavrões insignificantes, provocando um alarido desusado, transformando a pequena messe de oficiais do velho e caquéctico quartel de Pirada, numa espelunca de recordações perdidas, no epicentro duma camuflada alegria pascal, eivada de revolta, de indignação, de raiva e de melancolia.
Um ribombar repentino de obus, sem que ninguém o esperasse, silenciou por completo, a messe e todo o quartel Seguiu-se outro estrondo e mais outro, ainda maior. O silêncio escarrapachou-se em todos os olhares, o pânico instalou-se em todas as mentes.
- Porra! Estamos a ser atacados! – Gritou, exasperadamente o major, Seabra, que substituía, no comando do batalhão, o coronel Matoso que viera passar a Páscoa à metrópole. O alferes Aires reúne os seus homens à pressa e assume uma resposta rápida, com a artilharia. A confusão assume a liderança. Pirada estava a ser atacada massivamente. Continuavam os rebentamentos, aqui e além caiam morteiros, a pequena vila fronteiriça com o Senegal transformara-se, de repente, num mar de medos, de fugas e de gritos: Um tiroteio aéreo, com epicentro no interior do quartel, abalava, assustadoramente, o pequeno povoado.
Todo o quartel se refugiara nos abrigos e nas valas. Apenas o major Seabra, o alferes Aires juntamente com os homens da artilharia, por ele comandados e o furriel Secundino, das transmissões se mantinham nos seus postos. As trémulas luzes do quartel haviam-se apagado por completo. Apenas os holofotes da rede exterior compassavam reflexos dolentes a emperrar e obstruir entradasentradas.
Indiferente aos obuses e morteiros o dr Sabrosa, tenente e médico, calcorreava as valas uma a uma. Vigiava, cuidava, e repetia com desculpa insensata:
- Ando a ver o que se há-de cagar mais de medo!
Cuidava-se que para além de atingidos por uma basuca – o que seria morte imediata - nas incidências de tão abrupto e inesperado ataque, se provocassem danos morais. As valas, eivadas de condenados eram um rio de medo, um recinto de dor, uma arena de desolação.
A noite escurecera por completo e congregava ainda mais medos e sustos. O silêncio emergente da escuridão era apenas interrompido pelo ribombar de um novo rebentamento, vindo de longe, a assobiar como sanguessuga que perfurava o ar e ia cair não se sabia onde. Ao aterrar, apenas uma única certeza: não caíra sobre aqueles que ainda o ouviam.
Só de madrugada os tiros cessaram. Um a um os que se haviam escondido nas valas iam regressando aos seus postos. A escuridão continuava medonha no quartel, alguns oficiais, mais destemidos e habituados à guerra, recolheram-se, rapidamente. Em voz serena e pausada o 1º sargento Benavides, murmurava consigo, mas de forma a que o ouvissem:
- Esta merda tinha que dar torto! Não se esperava outra coisa depois do massacre que ontem se fez no Dambo!
- E sabe, meu primeiro,- acrescentou o Pimenta que caminhando ao seu lado, o ouvira – sabe uma coisa: não é que para além de matarem quase todos os habitantes da tabanca, ainda deixaram lá um letreiro a provocar o inimigo… Parece que o tal letreiro dizia “Amigo turra, esperamos-te, amanhã, em Pirada”
Não se enganara o 1º sargento Benavides. Ao massacre de Dambo, o PAIGC, de uma base anti-aérea sediada no Senegal disparara massivamente contra Pirada, unidade situada junto à fronteira com aquele país. Para garantir a defesa do Quartel e da população civil o comando-substituto deu ordens para a artilharia responder com obuses. A noite de Pascoa de 1974, em Pirada foi longa, ansiosa, terrível e muito dolorosa.
Miraculosamente, nessa noite, não houve mortos…