PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
PRIMEIROS DIAS
Os meus primeiros dias no Seminário de Santo Cristo, em Ponta Delgada, quando pela primeira vez demandei aquela instituição de ensino, foram para mim de grande dor, angústia e sofrimento. Vivia bastante isolado, perdia-me nos corredores do enorme esconso casarão que era o antigo convento dos Jesuítas, por vezes retirava-me para os cantos mais recônditos, a fim de que não me vissem chorar. Muitas vezes porém, por mais esforço que fizesse, não conseguia ocultar as lágrimas. Foi o que aconteceu, quando, num dia de manhã, no refeitório, ao ver toda aquela claridade a entrar pela enormes janelas, os pratos muito limpos e asseados, os talheres a brilhar como se fossem de prata, o café quentinho, a fumegar e muito adocicado e o pão de trigo fresquinho e muito apetitoso, lembrei-me de meu pai, de meus irmãos, sentados à mesa esborralhada da minha velha e esconsa cozinha, cheia de fumo e de tisna, a beberem café sem açúcar e a comerem uma fatia de pão de milho ou de bolo com um pedaço de queijo ou, quiçá, sem nada, antes de zarparem para os campos a ceifar fetos, a cortar lenha ou a sachar milho, não pude conter o choro. Desatei em soluços intercalados com lágrimas e perdi o apetite. Por mais que tentasse, não conseguia engolir uma dentada que fosse. Um dos prefeitos veio ter comigo, interrogando-me sobre a razão das minhas lágrimas. Receoso e tímido, com vergonha de confessar a verdade, respondi que era por causa da manteiga. Eu chorava porque não gostava da manteiga de São Miguel. E fui alvo de chacota geral, quando o prefeito, em voz alta e em tom de gozo, exclamou:
- Olhem, o menino! Não gosta da manteiga de São Miguel! Vamos ter que mandar vir manteiga das Flores!
Levantávamo-nos bastante cedo, mas isso não me incomodava. Estava habituado a fazê-lo na Fajã Grande para ir buscar as vacas. E quando elas estavam nos Lavadouros, levantava-me bem mais cedo do que no Seminário. O que me amedrontava de sobremaneira e me atormentava, permanentemente, era o ter que atravessar aqueles corredores subterrâneos, aqueles recantos tenebrosos até chegar à igreja, o andar para aqui e para acolá, ao toque da sineta, passar o dia inteiro dentro de casa, sem ver os pássaros, as ovelhas e as galinhas, sem saborear o perfume das ervas dos campos, não sentir o barulho do vento, não ouvir tilintar as campainhas das vacas, não me molhar com a chuva e, sobretudo, não ver o mar. Tudo ali era estranho, descomunal e muito diferente da vida que eu tinha na Fajã Grande, antes de embarcar no Carvalho, naquela tarde fatídica em que meu pai me veio trazer ao porto das Lajes.
No entanto haviam começado as aulas e isso alegrava-me bastante. Gostava muito de estudar, de ler, de aprender e adorava a maioria das disciplinas, nomeadamente Matemática, Ciências, Português, Religião e Francês. Apenas a Musica, o Desenho e, sobretudo, o Latim me desagradavam. Haviam-me dito sempre que eu não “tinha ouvido” para a Música, nem “jeito” para Desenho. Quanto ao Latim ainda digeri, relativamente bem, o “rosa - rosae” e o “dominus - domini”, mas quando chegou ao “bónus – bona - bonum”, em que a declinação do adjectivo se devia fazer com os três géneros, embatuquei quase por completo. Além disso o professor de Latim era muito rigoroso e impunha um clima de temor, de medo e de pouco à vontade nas aulas. Por isso mesmo e enquanto nas outras disciplinas tinha boas notas, nestas, geralmente, não passava do dez, do onze ou doze, pese embora nunca tenha tido negativas.