PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
RITINHA
Ela chega todas as manhãs, às vezes, antes do nascer do Sol! Traz consigo o brilho inebriante do astro-rei, o sorriso das estrelas adormecidas, o sabor da aurora debutante, a ternura das madrugadas florescentes. É uma dádiva celeste, um dom sublime, um encanto maravilhoso.
Assinala-a um meigo sorriso, envolve-a um abafado desejo, asperge uma terna vontade de ficar, de estar, de saltar para o meu colo e agarrar-se a mim com ambos os bracitos, como se tivesse medo de eu me evaporar.
Depois despede-se dos que partem: uns para a escola, outros para o trabalho, todos para a vida. Há, ali, escondido naquele olhar meigo e brilhante um misto indeciso, uma vontade partilhada, um não saber se ir ou se ficar. Fica! Não tanto por opção mas mais por imperativo de quem lhe cerceia o destino.
Depois sobe… O elevador parece que a distrai e desperta mais… Se os outros carregam no botão que lhe impinge o subir e o abrir da porta, por que não há-de ela carregar. Novamente os imperativos dos adultos a cercear desejos inocentes, vontades espontâneas.
Espera-a a caminha e o leitinho quente/morno, que a temperatura, naturalmente, tem que ser bem doseada, assim como o conteúdo. No meu colo suga, com suavidade e apetite, o biberon. Canto e embalo. A ternura atinge o epicentro: Junto ao berço, pequenino, Sonha mãe carinhosa, Sonho belo e divino… O encanto metamorfoseia-se em desvelo. É a sublimidade suprema.
Depois, deposito-a no bercito, ao lado da Quitinha, a que há muito se agarrara e ao peluche… Pouco depois, adormece…
Agora dorme, que regá-lo! Deixá-la dormir. Apetece-me reler o poema de António Nobre O Sono do João, e transcrever alguns excertos do mesmo:
O João dorme... (Ó Maria,
Dize àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João, acordar...)
Tem só um palmo de altura
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango
...
O João dorme... Que regalo!
Deixai-o dormir, deixai-o!
Calai-vos, águas do moinho!
Ó mar, fala mais baixinho...
E tu, Mãe! e tu, Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João, acordar...
Ó Mãe, canta-lhe a canção,
Os versos do teu irmão:
Na Vida que a Dor povoa,
Há só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir...
E tu vê-lo-ás crescendo
A teu lado (estou-o vendo
João! Que rapaz tão lindo!)
Mas sempre, sempre dormindo...
Mas para isso, ó Maria!
Dize àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João, acordar...
António Nobre, in 'Só'