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ROSAS BRANCAS

Quinta-feira, 24.12.15

A noite estava escura e do céu caíam flocos de neve que aos poucos iam atapetando o chão, transformando a verde alfombra num gigantesco e esbranquiçado tapete.

Joana há muito que se refugiara na cabana. No inverno, a noite caía bem mais cedo e naquela tarde, o frio descambara sobre os montes, sem dó nem piedade, mais violento, mais agressivo e mais abrupto. As ovelhas, que durante a manhã e uma boa parte da tarde haviam pastado, famintas, as ervinhas verdes e apetitosas, manifestaram, ao fim da tarde, uma enorme vontade de se recolherem, de se enfiarem dentro da cabana, de se enrolarem e enroscarem umas nas outras, protegendo-se do forte nevão que os flocos de neve caídos ao relento, anunciavam aproximar-se, cada vez com mais evidência. Até o Fiel, o seu amigo e companheiro de pastorícia, se apressara a enfiar-se porta dentro e enroscar-se junto ao brasido que Joana, num dos cantos da cabana, acabara de acender. Tirou o leite à Danada, migou-lhe uns pedaços de pão e repartiu o cardápio com o Fiel. Pouco depois, espreguiçando os braços como que a convidar e a abraçar o sono, repartiu o feno pelas ovelhas, despediu-se delas, uma a uma e deitou-se sobre uns montículos de bracéu, embrulhando-se num velho e grosseiro cobertor.

Todos os dias repetia este ritual, embora, noites frias como aquela rareassem. A mãe, há muito que falecera e o pai, pobre, doente, sem eira nem beira, tinha nela e na guarda do pequeno rebanho que pastoreava nos montes contíguos à aldeia, os proventos que lhe adocicavam, levemente, uma existência dolorosa, sofredora, quase mesmo angustiante.

Nos primeiros tempos, após a morte da mãe, o pai, ocupado durante o dia no cultivo duma pequena courela, junto de casa, apenas à noite, abandonava o povoado e subia as íngremes encostas dos montes, levando-lhe o pão, ensinando-a na ordenha e no fabrico dos queijos, pernoitando, ele próprio na cabana para que a menina se habituasse, de futuro, àquele ermitério. De manhã, ainda lusco que fusco, descia a encosta, umas vezes com um queijo que ia vendendo na aldeia, outras, apesar do choro e dos protestos de Joana, com um cordeirinho que, eventualmente, algum lavrador mais abastado lhe encomendava. Joana ficava só, durante o dia, ansiando pela noite e pela companhia do pai. A doença, no entanto, fora galopando, assustadoramente. A petiza compreendera. As visitas do progenitor começaram a rarear durante uns meses, passados os quais cessaram por completo. Agora já se habituara a ficar sozinha, com o Fiel, o seu amigo e companheiro de sempre e com as suas ovelhas. Apenas desejava que a morte, impiedosa e cruel, não levasse o pai como fizera com a mãe, era ela ainda uma criança.

Aos poucos Joana habituara-se aquela vida de solidão, de isolamento, de afastamento do povoado. Ao seu redor, para além da frescura e singeleza dos campos, do vigor e serenidade dos ares, do silêncio eloquente das madrugadas e do vento a confundir-lhe os desejos, tinha a amizade de cada uma das suas ovelhas e a protecção do Fiel. Conhecia as ovelhas uma a uma, chamava-as pelo nome, dialogava como elas como se fossem pessoas e tinha a firme certeza que elas a entendiam. Mas era o Fiel, um portentoso e meigo pastor alemão, o seu grande amigo e destemido protetor.

Naquela noite, porém, uma enorme nostalgia perfurava-lhe o espírito e uma tremenda angústia trespassava-lhe o peito. Não adormecia. Revoltava-se sobre o bracéu, enrolava-se mais no cobertor e sobressaltava-se com o menor ruído. De repente, ouviu um barulho mais forte e prolongado. Erguendo-se, escutou mais atentamente. Pareciam-lhe passos, mas passos leves, suaves, sublimes, deliciosos. Tão afáveis e doces que nem o Fiel, sempre atento ao menor ruido, deles se havia apercebido. Aproximou-se, apreensiva, da única fresta que a cabana possuía e viu que desciam, em rancho, entre cânticos de glória e de louvor, um grupo de pastores e os três Reis Magos. Foi então que se lembrou que aquela era a noite de Natal. Os pastores e os reis, decerto, que se dirigiam, apressadamente, para o estábulo onde Jesus acabara de nascer e onde estaria em palhas deitado, junto de Maria e José. Os pastores levavam presentes simples e pobres mas generosos. Os três Reis Magos levavam ricas ofertas: ouro, incenso e mirra.

Joana, apressada e sem que o Fiel desse por nada, pegou num cordeirinho que nascera dias antes. Como os outros pastores levá-lo-ia ao Menino Jesus. No entanto, a mãe, apercebendo-se de que lhe era retirado o filhote, entrou num berreiro desolado, triste e sofredor. Joana entendeu, de imediato, que não podia, nem devia levá-lo, retirando-o da pobre mãe. O Menino Jesus, decerto não exigia tal sacrifício à sua querida ovelhinha. Mas o que havia de levar se não tinha mais nada? Agasalhou-se, abriu a porta e saiu, cuidando que no exterior da cabana havia de encontrar algumas flores. O chão porém estava coberto de neve branca e nem uma flor se via. Desesperada, na ânsia de se juntar ao rancho dos pastores e aos Reis Magos, Joana arrancou do chão uma mão cheia dos primeiros arbustos que encontrou, cujas folhas estavam cobertas de neve e largou numa correria louca, na senda da gruta.

Ao chegar junto da gruta, donde emanava uma luz brilhante e resplandecia um brilho acariciador, Joana ficou muito triste. Os Reis e todos os outros pastores de joelhos diante do Menino, de Sua Mãe e de São José, estavam muito contentes e felizes, pois todos haviam oferecido os seus presentes. Ela não tinha nada para oferecer ao Menino Jesus, a não ser aqueles pequenos arbustos, cobertas de neve. Começou a chorar. De repente, um anjo, que descera sobre a gruta, ao ver tamanha tristeza misturada com tão sublime inocência, passou junto de Joana e, tocando-lhe ao de leve com a brancura das suas asas, transformou os pequenos arbustos em lindas rosas brancas, que Joana, com o coração carregado de alegria e felicidade, ofereceu ao Menino Jesus.

Na manhã seguinte, ainda noite escura, bateram à porta da cabana, onde Joana dormia. O Fiel, sempre atento e vigilante, latiu. Joana acordou. Veio abrir. Era o pai! Estava melhor. Trazia uma cestinha com doces e vinha passar o dia de Natal com ela.

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publicado por picodavigia2 às 00:05


1 comentário

De Maria Flor a 24.12.2015 às 00:34

E muito bonita esta história, parabéns!

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