PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
SAN FRANCISCO
I
Júlia voltara-se e rebolara-se na cama vezes sem conta. Inicialmente parecia um sonho, depois um imaginar sonolento de algo muito ténue e longínquo e, logo a seguir, um barulho estranho e esquisito a despertá-la definitivamente e a trespassar-lhe o peito, como se fosse um raio. Por fim, já completamente acordada, uma certeza absoluta e irrevogável: eram tiros. Nem sequer esperou para ouvir uma segunda vez ou para se certificar melhor. Levantou-se de rompante, abriu a porta da sala, de maneira a que os pais e os irmãos não dessem pela abalada e deu consigo quase tresloucada, no meio da rua, imersa numa madrugada desentendível e apavorante, sem saber bem o que fazer ou para onde ir.
Era Maio, estava muito frio mas a noite clara. Júlia cobriu os ombros quase nus com o xaile de lã que agarrara à pressa, antes de sair, e rumou, incerta, Fontinha a cima. Os sons martelados e secos de armas, prolongando-se por aqui e por além, cada vez pareciam mais nítidos, mais reais, mais aterradores, estampando-se em eco nas rochas das Covas e das Águas, deixando no ar um rasto de pólvora fumegante,
Ao chegar ao cimo da Fontinha, Júlia, cada vez mais convicta de que o barulho dos tiros vinha do mar, desatou numa correria louca pela canada que dava para o Mimoio. No início, porém, a vereda muito sinuosa, alcantilada de pedregulhos e ladeada com paredes altíssimas a vedar pequenos cerrados de milho e estreitas belgas a abarrotar de batata-doce e de favas já floridas, não deixava ver o mar mas permitia que o martelar contínuo dos tiros se encafuasse naqueles meandros, tornando-os mais reais, mais atribuladores, mais temíveis, mais angustiantes. Agora, se dúvida alguma ainda existisse, desfazia-se por completo no constante ribombar das carabinas e dos fuzis. A sua única preocupação era a de saber se o seu António estaria envolvido naquele aberrante, desmedido e despropositado tiroteio, a quebrar o silêncio íntegro, global, puro e profundo da noite que a penumbra enigmática da rocha lançava sobre a enorme fajã e sobre a baía circundante.
Desde há muito que Júlia e António se amavam como ninguém, se desejavam reciprocamente com ardor, arquitetando construir com harmonia e sublimidade, um lar de felicidade, de bem-estar, de alegria e de amor. Júlia sabia muito bem da oposição cerrada que os seus progenitores lhe haviam de fazer quando se apercebessem do seu relacionamento com o filho do Chibante. Mais se oporiam talvez até a impediriam quando soubessem que ali havia muito amor, que havia uma grande paixão e que conjugavam planos de construírem, em conjunto, o futuro. Fora por isso que ele tomara aquela abruta e radical decisão, por saber que era pobre, muito pobre e que os pais dela haviam sempre de cuidar e de sentir que ele nunca havia de sair da miséria, de um pé rapado, de um badameco de meia tigela e que por isso mesmo nunca haviam de autorizar aquele casamento. Tudo isso levara a que ele, o seu António, decidisse partir, em busca da aventura, do sucesso, do dinheiro necessário para um dia, ao regressar das Américas, lhes aniquilar e desfazer por completo arrelias, consumições e de lhes atirar à cara aleivosias. Mas Júlia nunca concordara com aquela partida para tão longe, para a Califórnia, naquelas condições – fugindo, às escondidas, no escuro da noite, envolvendo-se com os aguadeiros de um bergantim, como se fosse um criminoso. Depois era o perigo mais real do que possível de uma fuga clandestina e que, afinal, agora estava ali bem estampada naquele fatídico e malfadado tiroteio.
Ao chegar ao sítio da canada que encimava a Tronqueira desfizeram-se as dúvidas por completo. Dali ela via tudo e o cenário era bem real: a uma pequena distância da Baixa Rasa, um enorme bergantim, todo branco, com três altíssimos mastros e velas triangulares, aguardava uma pequena chata que momentos antes saíra do Rolo, junto à Ribeira das Casas, carregando homens e barris de água. A lutar contra os socalcos das ondas provocados pelo contínuo ricocheto dos projéteis na água, numa frustrada fuga, a chata era contínua e permanentemente alvejada por tiros emanados pela guarda costeira do Forte do Estaleiro cruzados alternadamente com outros vindos do Castelo da Ponta e que se cruzavam no ar com as respostas vindas da embarcação. Alguns homens já se haviam atirado à água e, ora mergulhando, ora vindo á tona para respirar, lá se iam esquivando ao desfechar incerto mas contínuo das balas dos azougados artilheiros. Sabia-se que em tais situações a ordem era atirar a matar.
Júlia, numa aflição inexaurível e num sofrimento terrífico, assistia a tudo lá de longe, agora do alto do Mimoio, no sombrio da noite, clarificado momentaneamente pelo fulminar contínuo da pólvora, sem poder fazer nada ou coisa nenhuma. Assistia impotente e dorida, àquele terrífico e dramático espetáculo. Apenas uma certeza: o seu António estava ali mas o Senhor Espirito Santo, para quem se voltava com promessas e orações, havia de o salvar.
…E de repente, no meio daquela aflição desmedida e daquela agonia inexaurível uma pequenina e ténue réstia de esperança trespassou-lhe o peito, dulcificando-lhe, momentaneamente, a dor e espevitando-lhe, como em sonho, a alegria: um vulto negro aproximava-se do bergantim e, agarrando-se às grossas escadas de corda que lhe atiravam para o mar, num ápice saltava a amuara da embarcação, onde se refugiava definitivamente. Em seguida, saltaram os outros. De imediato o bergantim voltava-se e zarpava para Oeste. O seu António estava salvo, a caminho da Califórnia!
II
Tia Júlia chegou a casa muito tarde, já noite escura. Vinha da novena das almas. Não que a cerimónia litúrgica, realizada na igreja paroquial, demorasse muito, mas por começar, como era hábito, a horas bem tardias. Sim, porque às nove da noite, ali na Fajã Grande, em pleno mês de Novembro, há muito que era escuro, que o Sol desaparecera lá para bem longe, para o fim do mundo, para o infinito, onde tudo era um mistério escuro e desconhecido. Tia Júlia apenas sabia que era naquela direção em que o Sol se punha, que ficava a Califórnia… A Califórnia dos seus sonhos, dos seus segredos, das suas mágoas, das suas tristezas, do seu sofrimento, da sua miséria, da sua solidão e, sobretudo, daquele enigmático luto que desde há mais de sessenta anos carregava sobre si.
Entrou pela porta da cozinha, que a da sala já não abria nem fechava. Emperrara por completo, a maldita, desde aquele dia em que, muito aflita, a fora destrancar para receber a visita do Senhor Espírito Santo, obrigando a Coroa a entrar pela porta da cozinha. Um pecado de que implorava perdão todos os dias e que a havia de amarfanhá-la para sempre.
De cansada por subir aquele martírio que era a Fontinha, sentou-se num banco, junto à velha e desconjuntada mesa da cozinha, apoiando aí os dois braços devidamente cruzados e sobre eles o rosto quase tapado com um lenço em forma de bioco, a cair-lhe sobre os olhos. Para quê acender a candeia se o sono era tanto e já nada havia para fazer?
… Num de repente, sentiu-se a olhar para longe, para muito longe, para onde o Sol caminhava todos os dias, onde havia uma cidade… Era uma cidade enorme, com prédios altíssimos, ruas muito estreitas e apertadas a abarrotar de pessoas, a empurrarem-se umas às outras. Um vento fortíssimo soprava com rugidos roufenhos, ensurdecedores. Gotas gigantes caíam sobre os edifícios e muitos deles explodiam e desmoronavam-se. A cidade cobria-se de nuvens negras de pó e cinza e o céu transformava-se num tenebroso manto escuro, ora a clarear-se, repentinamente, com o faiscar impertinente dos relâmpagos ora a toldar-se, cada vez mais, com o ribombar aterrador dos trovões. A chuva caía forte, diluviana e destruidora. A enorme cidade, agora parecia quase deserta: as pessoas haviam-se escondido e abrigado em todos os resguardos mais recônditos, com medo da chuva, da explosão dos prédios e do desabar das nuvens. Um vento muito frio percorria tudo, entrava nas casas, levava as roupas penduradas nas varandas, formava rolos de espuma, sobre os quais voavam pássaros estranhos e agoirentos. A chuva caía em gotas gigantes, sobre a forma de pesados pedregulhos, destruindo os poucos prédios que haviam sobrado, transformando-os numa poeira que se espalhava pelas ruas, transformando-as em reluzentes riachos, sem árvores nas margens. Já ninguém existia na cidade. Todos os prédios haviam sido destruídos e as ruas desfeitas. Não ficara pedra sobre pedra. Apenas um enorme tapete preto, debruado a amarelo, com quatro gigantescos castiçais com velas a arder nas quatro extremidades. No meio, sobre o tapete um catafalco e sobre este um gigantesco caixão, todo forrado de negro, com um pequeno cruxifixo em cima e uma faixa branca no lado com meia dúzia de palavras, com as letras tão trémulas, tão desfeitas e tão amareladas que nem se entendiam. Ao longe, um leve dobrar de sinos… Três fortes pancadas soaram na porta. Era a Olinda, a filha da comadre Inácia. Desde há muito que lhe prometera fazer umas cortinas para a janela da sala. Seriam de renda, com desenhos de flores e de frutos, com letras e palavras evocando a felicidade, a sorte e a fortuna. A tia Júlia havia de as colocar na janela da sala no dia em que o Senhor Espírito Santo voltasse a sua casa…
Ao meio da tarde a vizinha Jacinta, que na noite anterior lhe fizera companhia desde a igreja até à porta de casa, perante o estranho e misterioso silêncio que emanava do pobre e humilde casebre, bateu-lhe à porta. Como ninguém respondesse, decidiu-se por abri-la. Tia Júlia debruçada sobre a mesa da cozinha estava morta.
Quando mais tarde a despiam para lhe colocar o corpo inerte entre os velhos e rotos lençóis que a haviam de embrulhar na sua caminhada para o cemitério, encontraram num dos bolsos do velho avental que sempre trazia vestido, muito amachucado, muito amarelado, muito amarrotado, muito regado com lágrimas de dor, muito embalado em suor de sofrimento e angústia, aquilo que parecia ser um envelope vindo da América há muitos anos. Dentro estavam duas cartas: a primeira e única que o seu António lhe escrevera e uma outra que a Tia Júlia nunca percebera e rezava assim:
“San Francisco 14 November, 1906
Mss Júlia Silva
We are sorry to report that António Chibante was found dead among the countless victims of the great earthquake that occurred on April 18, in this city of San Francisco. We further inform that since he had no insurance there will be no right to any compensation.”